1969 é histórico por uma série de acontecimentos: o primeiro homem a pisar na Lua, a primeira mensagem enviada pela Arpanet, a rede precursora da internet, a revolta de Stonewall em Nova York e, sim, a última vez em que os Beatles subiram a um palco. Com a vantagem de ver o passado 52 anos depois, a série The Beatles: Get Back é uma fabulosa reconstituição do que ocorreu em janeiro daquele ano em torno de uma banda, de uma geração de jovens e de por que uma nação até hoje vive à sombra do quarteto de Liverpool.
A sinopse oficial é elucidativa: “The Beatles: Get Back é uma série documental em três partes que proporciona ao público uma visão inédita e privilegiada das sessões de gravação da banda em um momento definitivo na história da música. Peter Jackson foi o único em 50 anos a ter acesso a um acervo particular com mais de 150 horas de áudio e mais de 60 horas de cenas registradas em janeiro de 1969 por Michael Lindsay-Hogg. (…) É a história de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr planejando seu primeiro show ao vivo em mais de dois anos, e acompanha o processo de criação e ensaio de 14 canções originalmente pensadas como parte de um álbum ao vivo com lançamento simultâneo”.
Elucidativa, mas não suficiente para dar conta da originalidade entregue pelo diretor Peter Jackson, vencedor de três Oscar com a trilogia O Senhor dos Anéis e o documentário Eles Não Envelhecerão (2018). Durante quatro anos, Jackson e o editor Jabez Olsen trabalharam na seleção desse extenso material que permaneceu em segredo dentro de um cofre da Apple, empresa fundada pelos Beatles para gerir seus negócios. As imagens filmadas por Lindsay-Hogg foram utilizadas na película Let It Be (1970), mas a maior parte delas acabou não sendo aproveitada. O que aquele diretor captou foram cenas de bastidores, pois o objetivo era documentar a criação e gravação do 12º álbum de estúdio dos Fab Four. Jackson decidiu ir mais fundo na investigação daquele material.
À primeira vista, sabendo-se que no total os três episódios da série somam oito horas de duração, The Beatles: Get Back poderia ser visto como uma espécie de tortura aos não-fãs da banda. Não é mesmo fácil ouvir ensaios intermináveis, quando nada parece acontecer, e escutar a mesma música sendo repetida e interrompida infinitas vezes. É um registro histórico, mas não é só isso o que Peter Jackson queria entregar. O cineasta quis recontar a história do que até hoje se sabia da banda inglesa.
“Vai ser algo incrivelmente hilário daqui uns 50 anos e pensar que eles romperam porque Yoko (Ono) sentou num amplificador”, revela um McCartney, enquanto esperam a chegada de Lennon com sua companheira. A cena, presente no segundo episódio, vai de encontro a um assunto discutido por muitos naquele ano de 1969: o fim dos Beatles. A discussão era tamanha que eles não escondiam, durante o ensaio, a insatisfação com a série de reportagens publicadas pela imprensa a respeito do tema. “Só há um cara que eu queria socar: (Michael) Housego“, afirma Lennon. Housego, acusado de mentiroso pelo músico, havia escrito uma coluna opinativa em que questionava se os quatro integrantes possuíam, de fato, “uma bela amizade”.
Num outro trecho, os Beatles musicam uma reportagem que fala da dissolução da banda, ironizando deliciosamente o texto empolado: “Por mais talento que eles tenham como indivíduos – e quem pode negar isso -, a sua capacidade de ganhar dinheiro está largamente atrelada aos seus shows. E até eles estarem ricos o suficiente para não se importarem ou de saco cheio eles ficarão juntos por necessidade”.
Mostrar as diatribes da banda tem o poder de revelar que os Beatles tinham plena ciência do lugar que ocupavam no fim dos anos 1960, mesmo se revelando pelas imagens como seres falíveis, por vezes arrogantes ou maledicentes para com os parceiros, mas incrivelmente reais e geniais. The Beatles: Get Back é, afinal, sobre amizade, criatividade, perda e arrependimento. É difícil não se impressionar quando Lennon e McCartney conseguem, num simples troca de olhares, harmonizar a canção Two of Us, ou com a íntegra do famoso show no telhado na sede da Apple, o último concerto da banda, exibido em tela dividida por Jackson. Naquele mês de ensaios em 1969, entre altos e baixos, os Fab Four puderam gravar não apenas o álbum Let It Be, como deixaram prontas metade das canções de Abbey Road.
The Beatles: Get Back deixa clara a hierarquia que se estabeleceu na banda, com McCartney agindo como chefe, mas queixando-se de que não gostaria de ocupar esse papel. Lennon viria a seguir, e os dois subjugando ou menosprezando o talento de George Harrison. Tanto que um dos momentos de maior tensão se dá quando George decide abandonar a banda e custa a ser dissuadido para voltar às gravações. Numa conversa captada anonimamente por Lindsay-Hogg, que escondeu um microfone num vaso de flores, a dupla de frente, McCartney e Lennon falam abertamente que ignoravam o parceiro guitarrista. Em outro trecho, com George ausente, eles chegam a brincar que podiam chamar Eric Clapton para o seu lugar. Um pouco antes, George desabafa: “Está na hora do divórcio”.
A série não recorre a depoimentos dos artistas vivos ou testemunhas que vivenciaram a época, como é comum em documentários. Jackson prefere esticar ao máximo a corda das gravações originais, das cenas inéditas, também por acreditar que essa seria a melhor forma de contar essa história, que claramente não possui um roteiro, é tediosa em vários momentos e acaba por se tornar longa. Mas isso não desqualifica The Beatles: Get Back, porque o que a produção da Disney+ entrega é muito superior. Em 2021, o público já se habituou a maratonar por horas em torno de realities shows dispensáveis com participantes igualmente dispensáveis. Por que se incomodar agora com os Beatles?
O filme original, de 16 milímetros, foi colorizado e perdeu a granulação típica. Isso permitiu que a maior parte dos negativos originais fosse aproveitada. A revolução, contudo, foi sobre a restauração do som. Por meio da inteligência artificial, a equipe de Peter Jackson treinou a máquina a diferenciar instrumentos das vozes. Com essa solução, foi possível recuperar falas inaudíveis que os Beatles fizeram questão de torná-las assim. Em vários momentos, enquanto conversavam, os músicos tocavam seus instrumentos, impedindo a boa captação das vozes. As conversas que eles imaginavam que seriam privadas em 1969 se tornaram totalmente públicas em 2021.