“O Novelo” desestrutura tudo pela inversão de papéis sociais

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Cena de "O Novelo" (2021), de Cláudia Pinheiro
Cena de "O Novelo" (2021), de Cláudia Pinheiro

Vencedor do prêmio de Melhor Filme na escolha do público do Festival de Gramado em 2021, O Novelo, de Cláudia Pinheiro, mobiliza menos pelo enredo algo novelesco e esquemático que pelas camadas de reflexão que acrescenta ao já exuberante debate sobre representatividade ou, mais precisamente, sobre representatividades, no plural.

Em primeiro lugar, trata-se de um filme sobre a condição masculina, mas sob um ponto de vista feminino, já que são mulheres a diretora e a roteirista (Nanna de Castro). Se incontáveis cineastas homens já discorreram sobre a condição feminina, o caminho inverso é bem mais raro, um reflexo óbvio da pequena representação das mulheres nos postos técnicos ao longo da história do clube do Bolinha chamado cinema. A exemplo do recente Sol, dirigido pela cineasta Lô PolitiO Novelo planta uma compreensão incomum sobre a masculinidade, ancorada na oportunidade inédita de mulheres ascenderem em volume ao lado de trás das câmeras.

Inspirada em peça teatral da própria roteirista, a trama de O Novelo desenrola as vidas de cinco irmãos do sexo masculino a partir do desaparecimento do pai e da morte precoce da mãe e das repercussões desses fatos em suas vidas adultas. Outra camada dos labirintos da representatividade vem à tona porque os cinco irmãos são interpretados por atores pretos (Nando CunhaRocco Pitanga, Rogério Brito, Sérgio Menezes Sidney Santiago Kuanza), diferentemente da peça originária, na qual eram encarnados como personagens brancos. A simples inversão descortina toda uma galáxia de significados novos, desestruturando correlações de força a que fomos habituados desde sempre. Entre os cinco protagonistas há escritor, advogado, ator teatral, heterossexual, homossexual, alcoólatra, usuário de cocaína, pai ausente etc. – suas profissões não fariam qualquer diferença se fosse branco o elenco nascido num país que até ontem bloqueou cruelmente o acesso dos não-brancos ao estudo e ao progresso social.

Um complicador a mais reside no fato de que não são pretas a diretora e a roteirista de O Novelo – a conversão racial da família nuclear responde a uma provocação pública de Nando Cunha (que interpreta o irmão mais velho) no Festival de Gramado de 2017, em torno da escassez de papéis não-subalternos para atores pretos. Repete-se a argumentação tipicamente branca de que uma obra artística não é obrigada a discutir racismo só pelo fato de girar em torno de personagens negros – mas, mesmo que o termo “racismo” jamais seja pronunciado no filme, o tema salta aos olhos em cada cena, à medida que os irmãos se reencontram num hospital em torno de um paciente terminal que pode ser o pai pelo qual foram abandonados décadas atrás. A diretora amplia o efeito do contraste ao selecionar quase sempre mulheres brancas para diversos papéis secundários (e subalternos).

O novelo é labiríntico: duas mulheres brancas retratam a condição masculina preta, com todos os trunfos e as fragilidades com que as inversões enriquecem e complexificam o contexto. Essa delicada transferência, que hoje discutimos a partir do chamado “lugar de fala”, tendia à invisibilidade quando os inversores das perspectivas eram homens, brancos, heterossexuais, autores e diretores glamurosos de arte ou entretenimento.

Ao fim e ao cabo, o arranjo encontrado proporciona um retrato sensível sobre o que pode significar ser homem preto 123 anos depois da pretensa extinção da escravização de homens e mulheres pretas no Brasil. Saem os estereótipos que coisificam pretos (e pretas) na antiga infraestrutura racista, entram em cena personagens centrados na sensibilidade em vez de na violência, na marginalização social e assim por diante. Não estamos mais no faroeste carioca de Cidade de Deus, muito embora o cineasta homem branco Fernando Meirelles seja um dos donos da produtora que banca o filme.

O território da sensibilidade permite que O Novelo trabalhe para esburacar barreiras também violentíssimas de gênero, sexo, sexualidade etc., que vitimam mulheres, mas também os próprios homens na infraestutura que hoje ameaça desabar. Na espera desconsolada pela vida e pela morte do pai ausente, os cinco homens adultos negros retornam a um costume de infância e fazem tricô juntos na recepção do hospital. Não foi nada disso que nos ensinaram, e no entanto é apenas a “vida real”.

 O NoveloDe Cláudia Pinheiro. Brasil, 2021, 94 min.

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