O artigo definido em The Velvet Underground, documentário de Todd Haynes em streaming na Apple TV+, é cirúrgico. Esta banda foi singular, em múltiplos sentidos. Nascido nos anos 1960, o grupo de rock nova-iorquino ousou fornecer uma contranarrativa à contracultura hippie, tão excessivamente endeusada quanto continuamente venerada até os dias atuais. Já a banda Velvet Underground, influência indiscutível de músicos e artistas, permanece tão misteriosa, pop e vanguardista quanto se propôs a ser, não importasse quantos discos vendesse ou se o mundo à época desejasse outra coisa.
É possível que o nome Velvet Underground seja apenas uma referência vaga para os mais jovens. Um documentário de 2021 falando de uma banda de cinco décadas atrás que não é os Beatles, nem os Rolling Stones pode soar como procurar a agulha em um palheiro. Ainda mais se aos primeiros acordes de Venus in Furs ou All Tomorrow’s Parties tudo soar estranhamente revolucionário para os ouvidos domesticados por algoritmos. Mas essa pequena travessia pelo mar de curiosidade pode levá-los a recuperar o tempo perdido. The Velvet Underground tem esse poder e muito mais.
O enredo do documentário é digno de um filme de ficção. Em meio à cultura hippie, do flower power e do amor livre, uma banda de rock de vanguarda de Nova York se propõe a ir na direção oposta. Vestidos de pretos, com canções depressivas e falando abertamente sobre drogas e sexo decadente, os integrantes do Velvet Underground tinham tudo para dar errado. E deram, em certo sentido, mesmo com o empurrão do artista Andy Warhol, o mentor da pop culture, que se tornou patrono do grupo e queria tornar seus integrantes um sucesso comercial. A banda durou apenas seis anos e se desfez em meio a desavenças internas.
Todd Haynes reconstrói de forma engenhosa essa história reverenciando o Velvet Underground que ele próprio idolatrava. O diretor era fã obstinado da banda que lançou a carreira de Lou Reed e da genialidade do músico John Cale, centrando neles, mas não só, a narrativa do documentário. Numa homenagem a Chelsea Girls, filme experimental de Warhol e Paul Morrissey, de 1966, que retrata a vida de jovens mulheres que vivem no famoso hotel de Nova York, em The Velvet Underground o mesmo recurso da tela dividida ao meio é utilizado, com cenas e sons acontecendo simultaneamente aos olhos e ouvidos do público. A técnica embaralha o fio condutor do documentário, como se quisesse dizer que não há só uma versão para a trajetória da banda.
A espera de mais de meio século para um retrato completo da venerada banda cobra um preço, que Haynes assumiu pagar. Do grupo original, que incluía Lou Reed (guitarra e vocal), John Cale (baixo, viola e teclado), Sterling Morrison (guitarra) e Maureen (Moe) Tucker (bateria), e das pessoas que orbitavam em torno dele, como a cantora alemã Nico (vocal) e o próprio Warhol, apenas Cale e Tucker permaneceram vivos para contar sua versão dos fatos. Quem conhece a banda, sabe que o virtuoso Cale foi expulso por Reed, em setembro de 1968, depois de dois discos gravados, e o próprio cantor decidiu abandonar o projeto para conseguir ser uma “estrela do rock”, seu desejo inconfesso.
Haynes poderia ter produzido um documentário parcial, pendendo para um dos lados. Mas ele optou por contar a melhor história completa por ter tido acesso a um surpreendente material de arquivo, muito dele filmado antes do início dos anos 1970 e obtido junto à fundação de Warhol, a áudios de Reed (que morreu em 2013) e ter contado com a generosidade no melhor estilo de um historiador imparcial diante da versão de um John Cale. Diante desse conjunto, o diretor conseguiu refazer a trajetória da banda de forma precisa. O documentário é surpreendentemente fresco, moderno, como se estivesse falando de personagens da atualidade.
The Velvet Underground não se vale de uma narração, o que evita a condução da história para um viés em particular. Na verdade, o que se tem são observações apresentadas pelos membros da banda, colegas artistas, amigos e familiares. David Bowie, o camaleão do rock, é um deles. Mas a obra tampouco se aventura em ser uma mera enciclopédia multimídia, recheada de sons e imagens didaticamente expostas. Haynes não se vê claramente obrigado a contar uma história que conecte pontos.
O resultado é que polêmicas ou arestas da trajetória e do fim da banda vão permanecer secretos ou incertos, mesmo depois de assistir ao documentário. Os verdadeiros motivos da contenda entre um vanguardista Cale e um intempestivo e visceralmente pop Reed ficam no ar, e não se resolvem. The Velvet Underground segue o tempo cronológico, tomando como base os discos, hoje clássicos, e os diferentes momentos do grupo em cada um deles. É no mínimo delicioso ouvir Moe Tucker desdenhar do movimento hippie e da onda paz e amor que varreu o planeta: “Nós odiamos isso. Caia na real”, a senhora hoje com 77 anos desdenha. A uma canção “Monday Monday” (Tão boa para mim/ A manhã de segunda foi tudo que eu esperava que fosse), do The Mamas and the Papas, a banda vanguardista vem com um “Sunday Morning” (Domingo de manhã, e estou caindo/
Sinto algo que não quero saber).
O documentário The Velvet Underground se alinha a três trabalhos anteriores de Todd Haynes, que dirigiu Superstar (1987), uma biografia velada de Karen Carpenter, Velvet Goldmine (1998), que trata da cultura do glam rock, e I’m Not There (2007), que explora a faceta de múltiplos personagens e atores de Bob Dylan. No primeiro, o diretor já deixava claro no recorte final que considerava a banda Velvet Underground como “lendária”. Nessa sua nova obra, ele entrega o devido tributo de um fã. Ao jornal The Guardian, ele escreveu (em tradução literal): “Quero dizer, é claro, eu tenho uma inveja artística dessas pessoas, de quão plugados em um momento um músico pode ser, quão diferente seu meio é do meu. Mas nenhum dos meus filmes foi movido por isso. Eles são mais sobre o que a música significa culturalmente, como ela mudou o mundo”.