Aos 59 anos, o cantor e pianista Jon Cleary talvez seja hoje o músico que consegue traduzir mais perfeitamente, com suas bandas e seus discos, o raríssimo “terroir” musical da multifacetada New Orleans, cidade para onde migrou no início dos anos 1980. Nascido na pequena vila rural de Cranbrook, Kent, na Inglaterra, Cleary foi de “mochilão” ao Sul norte-americano uma vez, ainda moleque, para ouvir e conhecer o habitat daquela música de gigantes (Jelly Roll Morton, Fats Domino, Professor Longhair, Art Neville) e resolveu que faria dali seu lar. Desde então, vive em New Orleans, e seu talento não demorou para ser notado pelos grandes músicos da terra: ao longo dessas décadas, tocou e excursionou com Taj Mahal, John Scofield, Dr. John, Allen Toussaint, Bonnie Raitt, entre uma constelação de outros, alternando seu trabalho de sideman com o de bandleader (tem 9 discos gravados e um Grammy na estante).

Jon Cleary é o primeiro grande astro da cena do blues, do funk e do jazz a voltar a se apresentar no Brasil nessa abertura da pandemia. É uma das atrações do Bourbon Street Fest, que restabelece sua ponte cultural após o grande hiato dos últimos dois anos. O festival começa no Bourbon Street Music Club, em Moema, nesta quarta-feira, 10, com o trio do organista Delvon Lamarr; Jon Cleary toca com seu trio na quinta-feira, 11; e o saxofonista Gary Brown fecha a jornada no dia 14.

Jon Cleary, num intervalo de sua turnê internacional, falou com exclusivdade com a reportagem de FAROFAFÁ na segunda-feira de tarde, por telefone.

 

FAROFAFÁ – Boa tarde, Jon. Outro dia eu estava assistindo o programa do Jools Holland na TV e, por coincidência, liguei justamente na hora em que você estava tocando ‘When You Get Back’, e no exato momento em que você cantava “Cool and sexy gettin that postcard from Brazil” (“Estilosa e sexy recebendo aquele cartão postal do Brasil”). Aquele foi um tributo ao Brasil ou é só um verso?

JON CLEARY – Oh, aquela é uma história sobre uma namorada que eu tive. Eu costumava, durante turnês ao redor do mundo, enviar cartas e postais para ela. É engraçado, algumas pessoas não entendem muito bem aquela letra. Rs. Muita gente vem ao camarim me perguntar: o que você diz naquela música, sobre juntar-se à guarda-costeira do Brasil? Confundem postcard com coast guard. Hahahahaha.

Como foi o impacto da pandemia em New Orleans, que é uma das mais importantes cidades a viver da música no mundo?

Muito triste. Muitos clubes fecharam, muitos músicos ficaram sem trabalho. Está voltando agora, mas foram praticamente dois anos sem trabalho regular, mas a mesma coisa aconteceu em todo o mundo. Nesses dois anos, eu fiz um disco novo, que estou agora finalizando. E aproveitei para tirar um descanso das turnês. Eu estava havia mais de 20 anos, quase 30 anos fazendo turnês consecutivamente, e foi bom voltar a dormir na minha própria cama toda noite. Foi um break bem-vindo. Trabalhei no estúdio com minha banda e o novo disco está quase pronto. Acredito que em 45 dias ficará pronto, provavelmente para o Natal.

Jon, você é um músico britânico em New Orleans. Desde os anos 1960, os músicos britânicos têm mostrado fascinação pelo som do Sul dos Estados Unidos, especialmente o blues do Delta do Mississippi, caso dos Rolling Stones, Cream, Led Zeppelin. Mas você veio em busca do algo diferente, do som de New Orleans, do chamado R&B shuffle, que é muito diferente do som tradicional do Sul. O que o atraiu nessa música?

Bom, é um tipo de som que tem uma amplidão muito grande, do ponto de vista estilístico e musical. Eu amo o blues, mas o blues tem um vocabulário musical mais limitado, e o R&B é mais rico do ponto de vista harmônico e estilístico. Por causa das influências, que vêm do Sul de New Orleans, contém elementos culturais de Cuba, Haiti e mesmo do Brasil. Quando eu era garoto, comecei tocando guitarra e tinha o blues como um parâmetro. Comecei com 5 anos de idade e toquei diariamente guitarra por 10 anos. Quando cheguei aqui, New Orleans me deu um plano de voo mais ambicioso, porque New Orleans incorpora o blues e também outros elementos ao seu som muito particular.

New Orleans perdeu muitos mestres da música recentemente: Dr. John, Allen Toussaint, Henry Gray, Elis Marsalis, fenomenais pianistas. O sistema educacional de New Orleans ficou bastante abalado, não?

É engraçado… Quando eu cheguei a New Orleans, ainda adolescente, eu procurei aprender o máximo que podia das grandes fontes do piano, e esperava encontrar uma infinidade de jovens músicos tocando o estilo de piano de New Orleans. Mas a verdade era que não havia muitos pianistas que dominavam o estilo. Foi uma surpresa pra mim: havia uma infinidade de trompetistas, muitos bateristas, mas muito poucos pianistas. Era quase como uma geração perdida do piano. Eu fui atrás de ouvir os grandes que estavam tocando ao vivo, como James Booker e Dr. John. Subitamente, me dei conta de que tinha havido uma lacuna entre uma geração e outra no piano. O jeito de tocar piano típico de New Orleans praticamente tinha desaparecido nos anos 1970, porque as novas bandas queriam tocar alto, e o piano é difícil para quem quer tocar alto. Passaram a tocar teclados e sintetizadores e órgãos elétricos, para os discos de funk. São instrumentos distintos, não é a mesma coisa que tocar piano. Eu tive essa vantagem de, ainda menino, poder ouvir os grandes da outra geração tocando: James Booker, Dr. John, Allen Toussaint. E aprender com eles. Quando fiquei mais maduro, acabei indo tocar na banda de Dr. John e fiz turnê com Toussaint. Então, o que faço é isso.

Você também gravou um tributo para a lenda do soul Bobby Womack (1944-2014), não?

Na verdade, eu apenas gravei uma versão de uma música de Bobby Womack, Woman’s Gotta Have It, com um amigo, o músico fantástico Nigel Hall, em 2014. Mas era um tipo de diversão que tivemos, não era para ser algo póstumo. Mas, quando fomos gravar, soubemos que Bobby Womack tinha acabado de morrer, o que foi muito triste. Acabou ficando como uma homenagem, mas não é exatamente um tributo. Bobby foi muito influente para mim enquanto cantor, aprendi a cantar ouvindo seu jeito, sua paixão, e aquilo tudo foi muito importante na definição do meu estilo.

Jon Cleary and Trio. Local: Bourbon Street | Rua Dos Chanés, 127 – Moema – SP. Quinta, 11, 21 horas, 75 reais
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