O Átimo Coletivo e a memória da avó materna

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“Adentro”, do Átimo Coletivo

No cinema brasileiro, especialmente no campo do documentarismo, não são incomuns os chamados filmes de busca, que enveredam, ainda menos infrequentemente, nas artimanhas de uma fissurada história familiar. Já são clássicas obras como Passaporte Húngaro (2001), de Patrícia Kogut, 33 (2002), de Kiko Goiffman, ou até mesmo Elena (2012), de Petra Costa. Lembrei-me delas ao assistir ao espetáculo Adentro, do Átimo Coletivo, que estreia no dia 10 de setembro, às 21h, no YouTube. Nele, porém, a narrativa mnemônica e autobiográfica da bailarina e coreógrafa mineira Bárbara Maia adquire camadas próprias ao evocar a videodança como ferramenta de se escavar esquecimentos.

Adentro, dirigido e performado por Maia, almeja recolher e reunir rastros e registros da sua avó materna, Maria de Sousa Miranda, nascida em Entre Rios de Minas, em 1936. Fica a cargo da artista o desafio de preencher, com a dança – uma forma cultural já pouco afeita à linearidade e à objetividade dos discursos –, as lacunas de uma vida rasurada, da qual restam, tão somente, duas fotografias e as lembranças alheias. Talvez por isso resolva retornar à casa da avó 45 anos após a sua morte, em 1976. Mais do que os fatos e os instantes de uma existência longínqua, os espaços concretos e materiais costumam resistir melhor, mesmo que não impunemente, à impiedosa e corrosiva passagem do tempo.

Entre Rios não é somente cenário para o espetáculo, mas um elemento catalisador da própria partitura coreográfica. Maia parece absorver a sinergia das águasdas árvores entremeadas pela luz. Ela dança com as mãos, com as pontas dos dedos, aracnideamente empenhada na tessitura calma e cuidadosa dos fios da memória. O uso delicado dos desfoques da câmera contribui com o embaralhamento das fronteiras entre corpo e natureza, assim como faz a trilha musical – composta por Gustavo Félix – que, discreta, se embrenha na sonoridade indisciplinada da mata.

Quando de fato na casa de Maria as relações de complementariedade e tensionamento se transformam, Maia passa a se confrontar e se articular com seus próprios reflexos, ou com seus próprios fantasmas. Procura por algo do outro e de si nesse território íntimo, doméstico, investigando vestígios em recursos tão espectrais quanto a sua sombra. Bárbara dança com o sol, multiplicando presenças. É uma cena bonita. Não é mais linda, no entanto, do que aquela em que se figura a sombra, imóvel e observativa, de sua mãe, Aparecida. Projetando-nos na sua contemplação, a obra nos torna, também, testemunhas do encontro instável e fugaz entre avó e neta. Bárbara dança para Cida, pluralizando espectatorialidades.

A bailarina se emaranha na terra descalça, como para fincar raízes. No entanto, ela parece trocar os pés pelas mãos, mas no melhor e mais inesperado sentido do termo. Longe, por exemplo, da plasticidade rígida e verticalizada do balé clássico – apesar da prática ser uma das suas principais bases de formação –, a artista reorganiza hierarquias corporais, liberando o potencial inventivo de um torso maleável que, ao sabor da respiração, faz irradiar poesia pelos braços. Adentro sugere defender, sobretudo, o lirismo dos pequenos gestos. Através deles, é possível descobrir universos.

Além de Bárbara Maia e Gustavo Félix – que, junto com Emília Gomes, compõem o Átimo Coletivo –, participaram do projeto a videomaker Luísa Machala, a colorista Luiza Almeida, o editor de som Fred Mucci, a cantora Juliana Amaral e os músicos Alef Caetano, Diego Mancini e Pedro Ramalho. O espetáculo tem apoio da Lei Aldir Blanc, no âmbito do Estado de Minas Gerais.

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