A rede invisível e a solidariedade silenciosa

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Cena de "M-8" (2020), de Jeferson De
Cena de "M-8" (2020), de Jeferson De

Maurício (Juan Paiva) é um jovem negro que acaba de entrar como cotista na faculdade de medicina, num Rio de Janeiro dominado por carros do Exército. Logo de cara, ele é baqueado ao se defrontar com a sala de anatomia, onde três cadáveres servem de apoio para as aulas. Todos os corpos são de pessoas negras. Maurício fica obcecado em descobrir a identidade de um deles, um corpo nomeado M-8 (interpretado por Raphael Logam), como se se identificasse mais com ele que com os colegas e professores, todos brancos. Essa é a premissa de que parte o filme M-8 – Quando a Morte Socorre a Vida, baseado no livro homônimo de Salomão Polakiewicz e dirigido pelo cineasta Jeferson De, de Bróder (2011) e O Amuleto (2015).

“É importante falar do genocídio da juventude negra neste ano, quando o vice-presidente da República diz que o racismo não existe no Brasil, o presidente da República diz que não há. O filme traz uma vontade de resistência”, afirma o diretor paulista de Taubaté, hoje com 52 anos. O que ele chama de “racismo cordial”, para ele um traço brasileiro, é a bússola norteadora de M-8, sem que o nome “racismo” precise ser pronunciado nenhuma vez em cena. “Tem momentos autobiográficos”, diz o diretor, que cursou cinema na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, “mas estou dialogando também com as várias gerações que, depois do governo Lula, chegaram pelas cotas e vieram de lugares populares”.

Em 2000, quando ainda era estudante na USP, Jeferson redigiu um manifesto que ganhou notoriedade, o Dogma Feijoada – Gênese do Cinema Negro Brasileiro. O texto estabelecia sete exigências mandatórias para a produção de um cinema nacional negro: 1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; 2) o protagonista deve ser negro; 3) a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; 4) o filme tem de ter um cronograma exequível – filmes urgentes; 5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; 6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; e 7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados. 

“Com a provocação dos dinamarqueses de Lars von Trier e Thomas Vitenberg, veio o nome de Dogma Feijoada, aquela antropofagia básica”, explica o diretor, citando os cineastas que redigiram o manifesto Dogma 95. Outra inspiração veio do filme Faça a Coisa Certa (1989), de Spike Lee, que iluminou a concepção do Dogma Feijoada. “Na faculdade pesquisei nossos diretores negros e conheci vários, como Zózimo Bubul, Waldir Onofre, Odilon Lopes, Benjamim de Oliveira. Aí o (professor de cinema, ex-presidente da Embrafilme e ex-secretário de Cultura do estado e do município de São Paulo) Carlos Augusto Calil me perguntou: ‘Se você acha que Glauber Rocha e Cacá Diegues não fizeram cinema negro, o que é esse cinema negro?’. Com essa provocação, comecei a desenhar o que seria esse cinema negro brasileiro”.

Jeferson diz que somente agora, 20 anos mais tarde, conseguiu fazer um filme que respeita todos os preceitos do Dogma Feijoada. “No M-8, tentei manter um protagonismo negro, não só em frente da câmera. Tive um fotógrafo negro, um diretor de fotografia negro, um montador negro, os protagonistas negros. Eu jamais imaginaria num filme poder contar com Zezé Motta, Léa Garcia, Lázaro Ramos, fazendo figuração.” Ele admite que, à diferença de seus filmes anteriores, M-8 apresenta personagens negros que não orbitam ao redor de personagens brancos. Na tela, os amigos do curso elitista de medicina, quase todos brancos, não conseguem sequer entender o porquê da fixação de Maurício no M-8.

O filme revela um segredo da comunidade negra, segundo o diretor: “Eu queria falar de uma rede invisível, que está em vários personagens. Eu queria falar dessa rede de proteção que se faz em torno desse menino negro”. A rede de proteção, quase sempre silenciosa, se estabelece entre personagens como a mãe auxiliar de enfermagem (Mariana Nunes), a secretária da faculdade (Zezé Motta), os funcionários que cuidam do necrotério (Ailton Graça e Alan Rocha), a mãe  de santo (Dhu Moraes), as mães mobilizadas para que o poder público encontre seu filhos desaparecidos, e assim por diante. Talvez herdada dos antepassados escravizados e perseguidos, a rede de proteção se dá para além do verbal.

À rede silenciosa negra, se contrapõe outra rede, a dos brancos. “O meu desafio é tocar no racismo silencioso, naquilo que não é falado, que não se dá de forma oral. Você tem hoje toda a situação do Beto (João Alberto Freitas) no Carrefour, e a palavra racismo parece que é proibida. Parece que ele não foi morto por racismo, mas por uma questão eventual”, critica. Essa modalidade aparece em situações como quando Maurício é confundido como um funcionário por um colega branco ou quando a mãe da namorada branca lhe pergunta, em tom áspero: “Mas por que medicina?”.

A questão das cotas é abordada como uma homenagem ao movimento negro: “Obviamente essa é uma luta da esquerda brasileira, do PT, que estava naquele momento no poder, mas essa rede de que falo tanto é a rede invisível, de pessoas que nem conheço, e que lutaram para que eu fizesse esse filme, para que Maurício estivesse na universidade. E Maurício nem sabe, nem cita”. 

Ao contrário de seus personagens, o cineasta não hesita em pronunciar a palavra proibida: “O cinema mainstream brasileiro é o grande lugar do racismo estrutural. Chegar à grande rede de streaming ou à sala de cinema ainda é estabelecido sobre o racismo estrutural. Ele já é um lugar do homem branco”. Nesse contexto, Jeferson celebra o fato de M-8 estar em cartaz em cem cidades Brasil afora. “Fico feliz pessoalmente, mas na medida em que sou exceção confirma a estrutura nada democrática do cinema brasileiro, mesmo após esses anos de Ancine. Neste momento de ataque do governo Jair Bolsonaro ao cinema e à memória brasileira, se torna mais difícil ainda o acesso, para todo mundo.”

Está nessa chave a conclusão que Jeferson De grita em M-8: “Para mim esse cadáver tinha muito o que contar sobre a história dele, e Maurício entendia o que esse morto queria dizer. No filme não é dito, mas para mim as mortes de George Floyd, Amarildo (Dias de Souza), Marielle (Franco), menino Miguel (dos Santos Rodrigues), Beto não podem ter sido em vão. Não é em vão”. Vale também para o M-8, cujo nome real e a existência o jovem estudante de medicina luta para desvendar.

M-8 – Quando a Morte Socorre a Vida. De Jeferson De. Brasil, 2020.

(Texto publicado originalmente na edição 1136 de CartaCapital, de dezembro de 2020.)

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