Onde você estava quando Amy Winehouse morreu?

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Amy Winehouse durante show em Madri, em 2008

Eu? Eu estava no lugar de sempre, ouvindo, lendo e escrevendo e sendo brutalmente surpreendido pela realidade. As câmeras de TV entravam e saíam pelo portão de ferro da casa dela em Camden Square, nº 30, e as informações eram desencontradas, sempre havia a possibilidade de que informassem um ressuscitamento médico de emergência. Até que três homens de ternos pretos saíram da casa carregando um grande volume numa maca envolta em veludo vermelho.

Nesses momentos, as redações ficam num burburinho danado, as compartimentadas editorias perdem as fronteiras, o assunto é único, mas você sabe o que esperam de você e o que lhe pedirão em alguns minutos. Toma um café, começa a pensar: o que exatamente Amy Winehouse significou, em sua vida meteórica de apenas 27 anos, para a história da música? Não terá muito tempo para rebobinar o tape dos shows que viu na memória, terá menos tempo ainda para checar as datas.

O dia de ontem foi todo de evocações pela morte, há 10 anos, da cantora britânica. Para lembrá-la, o Canal BIS retransmitiu o show Live at Porchester Hall, gravado na casa de shows de Bayswater, em Londres, em 2007, quando Amy tinha somente 23 anos.

Em casa, na frente da TV, achei interessante e emocionante rever Amy depois de tanto tempo e em pleno controle de sua arte, embora trôpega como sempre, bebericando seu vinho. E conseguir perceber, em suas próprias palavras, a essência do seu grande drama de artista.

“Você faz músicas quando está triste. Daí, no show, você tem que cantá-las em sequência. É deprimente pra caralho!”, ela discursa.

O público riu, mas, essencialmente, Amy estava fazendo uma dolorosa confissão nessa frase. A música era sua  vida, não era pra ser uma prisão. Ao se profissionalizar, tinha que repassar sentimentos, obrigatoriamente, a cada novo concerto, a cada nova turnê – que iam se tornando mais e mais lucrativas, e maiores do que sua vontade.

Há artistas da música que veem a performance como uma grande visão cênica, e isso também é legítimo. Mas, para Amy, aquilo era quase angustiante, ela imaginava que toda a expectativa fosse para que desmanchasse toda noite, e era o que fazia.

Amy também demonstrou no show de TV uma notável aversão à idolatria. Fustigava os tietes de beira de palco, incomodada com suas intervenções. “Eu te amo, Amy!”, berravam. Ela respondia: “Eu amo mais. Mas não precisa ser uma competição”. Ou então: “Eu te amo, Amy!”. E ela: “Preciso pagar melhor vocês. Da próxima, pago 50 pratas”.

Amy Winehouse parecia que tinha sido enfiada à força num sapato pequeno demais para sua ânsia de liberdade. Era filha de um taxista “que tinha a sorte de fazer seus próprios horários de trabalho”, fazia questão de dizer à plateia, com uma ironia extemporânea.

A atmosfera vintage do show de Amy era forçosa e tinha artimanhas de butique de produtor, mas a voz carregava a capacidade de dar credibilidade a tudo. Ela simulava desencontro e improvisação, mas a potência, quando vinha, vinha sem freios, como em Wake Up Alone, e a isolava como uma intérprete para o topo de tudo. E, além de tudo, dominava um espectro amplo de emoções e gêneros – basta ouvir como se desincumbe de Wake Up Alone, He can only hold her ou Some Unholy War. A angústia adolescente parecia comum, mas era mais funda. “Uma vez só já basta/Para eu me apegar”, cantava.

Ela foi de fato um acontecimento único (eu cheguei a duvidar, confesso).

Quando ela morreu, em 2011, eis o que escrevi sobre a tragédia, depois daquele cafezinho, no dia 23 de julho, no antigo jornal:

Num mundo de ídolos feitos para consumo imediato, de artistas fabricados pelo marketing, dóceis e sem radicalidade, Amy estabeleceu a diferença. Nunca virou passarinho de gaiola. Resistiu à cartilha do show biz, com suas regras previsíveis, sua falsificação de comportamentos e de discursos. Esse é certamente o seu maior legado, o de ter se tornado um corpo estranho dentro de uma fábrica de corpos iguais, vozes iguais, comportamentos pré-estabelecidos.

Ao mesmo tempo em que exibia uma fragilidade embasbacante no palco, também afirmava uma vontade de ferro na negação dos mandamentos do sucesso. Sua voz parecia condensar diversas vozes radicais como a sua: a doce sujeira do canto de Billie Holiday, o discurso libertário de Nina Simone, o amor trágico de Etta James, a potência orgulhosa de Aretha Franklin.

Em vez de alistar-se entre os mortos famosos da Maldição dos 27 Anos, a tragédia de Amy Winehouse talvez se alinhe com mais conforto ao lado de um outro ídolo meteórico, Jeff Buckley, com seus discos-testamentos, suas vidas esquivas. Ambos encarnaram a voz do seu tempo, mas sem verniz geracional. O jeito de quem parecia que ia se desmanchar no palco, a caminhada trôpega, o olhar perdido no vazio enquanto empunhava os versos de convocação feminina, tudo isso dava a Amy Winehouse um lugar não-descartável na história do pop, no qual vai permanecer.

Fez a delícia dos tabloides com seus passeios amnésicos pela noite, os barracos nos bares e nas boates, os seios fartos escapando para a delícia dos paparazzi, a boca faltando dente, o jeito desavergonhado de cheirar em público. E nisso não havia grandeza, apenas falta de jeito e de limite. Curioso é que essa vontade de se espatifar em público, que ela transformou em letra e performance, era também seu trunfo. Ela parecia uma taça de cristal esquecida na beirada de um balcão de pub – um empurrãozinho e tudo viraria estilhaço, como de fato virou.

Suas tatuagens sugeriam grafites em muros demolidos. Desde que surgiu, com o coque e a maquiagem e os vestidinhos retrô, virou modelo feminino. Os arroubos de excesso amoroso pelo namorado, o fichado Blake, as canções que relatavam a própria via crúcis existencial (como Rehab, Addicted, Back to Black, Tears Run Dry e You Know I´m no Good) e a decisão de viver com intensidade a qualquer custo (“Nunca é seguro para nós, nem mesmo de noite, porque eu tenho andado bebendo”, dizia o verso da canção que habitualmente abria seus shows, Just Friends).

Tinha uma curiosa ascendência de band leader sobre seu grupo de branquelos ingleses e os vocalistas de apoio negros. Eles a admiravam com firmeza e aguardavam que tivesse os momentos sóbrios com paciência. A alternância de soul, funk, reggae e black music setentista só funcionava quando Amy, por ironia, se tornava o elemento de equilíbrio, o amálgama da coisa toda. No Brasil, em janeiro, na sua primeira e única apresentação aqui, em 1h12 de show ela não conseguiu estabelecer essa conversação, e fracassou. Mas até no fracasso ela era grande. E, quando esteve em forma, foi absurda. Estabeleceu sua própria noção de eternidade.

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