O que é o blues, do que se imanta e que tipo de travessia ética ele carrega consigo? Para dar a resposta a essas questões, você pode simplesmente ouvir o blues. Mas pode também vê-lo, e nessa tarefa talvez ninguém tenha conseguido ir tão longe quanto o cartunista norte-americano Robert Crumb. Por amar de forma desmesurada o que chama de “old music” (blues, jazz, bluegrass, country music), Crumb pode enxergar a alma dos músicos para além das circunstâncias em que viveram, embora fossem moldados por elas.

“Conheci uma de suas esposas, chamada Lizzie, e ela me disse que um dia Charley simplesmente saiu com seu violão e nunca mais voltou. Ela não tinha feito nada pra ele, e ele não tinha feito nada pra ela. Bem, depois disso Lizzie me falou bastante sobre como ele era péssimo. Mas mantinha uma foto dele sobre a lareira. Ficou lá até ela morrer”, conta Crumb sobre um dos fabulosos perfis biográficos que desenhou, a respeito do pioneiro bluesman Charley Patton (1891-1934). O autor nutre não apenas carinho pelos seus personagens, mas também consegue descrevê-los com imenso respeito, longe da tentação de se arvorar juiz.

Uma nova edição do álbum Blues de Robert Crumb no Brasil (publicação derivada de seu trabalho no clássico R. Crumb Draws the Blues) revigora a sensação liberalizante e purificante que Crumb obteve ao desenhar a saga de alguns gêneros-chave do desenvolvimento musical do século 20 e dramatizar, de forma vigorosa, as biografias de três fenômenos do blues: além de Patton, a vida tormentosa do pianista Jelly Roll Morton (1890-1941) e o destino trágico do também pianista Kansas City Frank (Frank Melrose, 1907-1941).

Essa é a espinha dorsal de Blues, mas o que se extrai dali vai muito além: é um estudo da formação social e estética de uma nação, ao inventariar o custo humano da gestação de obras-primas. Por exemplo: no episódio “É a Vida”, Crumb conta a história de um artista anônimo fictício, Tommy Grady, que gravou um único disco sem êxito num quarto de hotel em Memphis, mas cuja música-chave, Po’boy, Loong Way f’um Home, vira cult uns 70 anos depois (po’boy, que é como se batizou o famoso sanduíche sulista). Os colecionadores ouvem Tommy Grady com seu background erudito, cheio de explicações, mas o que gestou a música de Tommy foi uma sequência de deslizes humanos, um cipoal de abandonos. Isso é o que Crumb garimpa.

A abordagem moral em torno de figuras artísticas de mundos distanciados geralmente turva a visão de seus legados. Em suas séries de perfis biográficos ilustrados de figuras da música original americana, Crumb decantou um elixir contra o moralismo e a parcialidade, e esses desenhos sempre retornam – dessa vez, numa nova edição que adiciona alguns “extras” do cartunista, páginas soltas e esquetes que fez nos últimos anos acerca do tema musical. O historiador gráfico sabe que boa parte das histórias que rondam os heróis do blues são feitas de rumores e suposições, mas que esse acúmulo de fantasias conduz à essência, e que é preciso buscar o ritmo desse balé mitológico. “Se fosse apenas aguardar o diabo em um cruzamento para conquistar talentos musicais, se fosse assim tão simples… todo mundo iria comparecer”, ele brinca.

Blues. De Robert Crumb. Veneta Editora. Tradução de Daniel Galera e Rogério de Campos. 120 páginas, 75 reais
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