João Gilberto nunca estudou violão, aprendeu sozinho com um violão emprestado. A batida no instrumento foi inspirada no jeito que Vadu Corta Passe, um jogador de futebol ruim de bola de Juazeiro, fazia percussão numa caixinha de fósforo. Em seu primeiro grupo musical, Enamorados da Lua, ele e os outros três músicos se apresentavam de smoking, gravata borboleta e sapato branco.
As histórias que o letrista e músico Luiz Galvão, dos Novos Baianos, conta no livro recém-lançado João Gilberto, a Bossa (Lazuli Editora) não se destinam a elucidar o grande mistério de um dos maiores da MPB, mas certamente trazem ainda mais sabor ao imenso folclore da vida do excêntrico músico baiano. “Causos” de uma convivência de uma vida inteira (o autor, como o violonista, nasceu em Juazeiro) ajudam o próprio Luiz Galvão a entender aquele monólito de talento e predestinação com o qual conviveu durante toda a existência. “Mesmo sendo João e eu filhos da mesma cidade — Juazeiro da Bahia — e termos a amizade de toda uma vida, com certa proximidade, se há uma pessoa que não conheço é João Gilberto”, conta Galvão.
Uma vez, Galvão insistiu muito para João recebê-lo, e o músico resistia, dizia que não estava bem naquele dia. Mas o apelo da urgência acabou fazendo com que ele abrisse a porta para Galvão. Enquanto conversavam, João pegou o violão e o deixou cair. “Está vendo o que você fez? Eu te avisei que o astral aqui não está legal”, lamentou, com cara sofrida, a barba por fazer, pia cheia de pratos sujos. O episódio ilustra a ideia de que a vida, para João Gilberto, era uma questão de timing e de percepção, assim como sua música.
São muitas histórias, todas deliciosas. Um amigo que tentou impressionar a mulher, com quem estava em litígio, convenceu João Gilberto a ir com ele à sua casa, mas a mulher berrava: “Que porra é João Gilberto? Eu sei lá quem é João Gilberto!”. As amizades nas quebradas de Juazeiro, amigos que ele salvou de perder a casa retirando um rolo de dólares embrulhados em uma meia, coisas fabulosas. E a mística de sempre. Quando se preparava para um show no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, João Gilberto (como de hábito) passou a reclamar ostensivamente de um ruído que o incomodava. Ninguém ouvia ruído algum e o produtor Fernando Faro, que dirigia o espetáculo, já estava chateado com aquilo. Foi quando chegou Luiz Galvão para assistir ao ensaio. Vendo a aflitiva situação, Galvão puxou Faro para a rua, para esfriar a cabeça. Na calçada, havia um trabalhador usando uma britadeira conhecida pejorativamente (e ironicamente, no caso) como “Lambreta de Baiano”. Eureka! Após negociar com o trabalhador a suspensão do serviço, eles constataram, com alegria, que João parou imediatamente de reclamar lá dentro do teatro.
Uma vez, Moraes Moreira, Luiz Galvão e João Gilberto estavam em um carro cortando o Rio de Janeiro, João ao volante. Era madrugada e ele passava vários sinais vermelhos, já que não havia trânsito. Num deles, no entanto, estancou de repente no sinal verde. Parou e ninguém entendeu nada. Foi quando passou um outro veículo a toda velocidade, furando o sinal vermelho. Se tivesse avançado, teriam batido. “Como você sabia, João?”, perguntou Moraes Moreira. “Pelo som”, ele respondeu.
Não se trata de uma biografia convencional, nem tem a pretensão de ser uma obra de referência sobre a trajetória de João. Galvão reflete sobre as especificidades do trabalho do amigo, sua contribuição original, a incorporação de canções ao repertório, forma como se encontrou com suas almas gêmeas (Vinicius, Tom, Caetano). Os ecos de um violão e uma voz parecem ressoar enquanto rimos com as histórias.