Em 9 de maio de 2021, dois dias depois de Cassiano, morreu outro pioneiro da chamada black music brasileira, o compositor, cantor e guitarrista Luis Vagner. Uma parada cardiorrespiratória (mais uma…) levou, aos 73 anos, esse artista especializado em promover fusões sonoras de várias vertentes da música negra mundial, como soul, funk, jazz, reggae, samba, rock, blues, ritmos latino-americanos etc. Para desacerto de convenções e clichês, ele nasceu negro no extremo Sul do Brasil, em território de pampas gaúchos, na cidade de Bagé, já quase fronteiriça com o Uruguai, o que ajuda a explicar a presença, por vezes, de características de uma América Latina mais espanhola do que portuguesa em sua obra. Nasceu negro na região Sul, onde, é doloroso lembrar, há quem afirme que não existem cidadãos afrodescendentes (nem, portanto, música negra).
Vivendo na adolescência em Porto Alegre, integrou o conjunto de iê-iê-iê Os Brasas (inicialmente Os Jetsons), ele nos vocais e na guitarra, mais Anires Rodrigues na guitarra, Franco Scornavacca no baixo e Edson Aymay na bateria. O Brasil ainda ouviria falar do paranaense Franco, primeiro como postulante a astro do samba e do samba-rock (entre 1972 e 1978), depois como empresário de artistas populares como Zezé di Camargo & Luciano, Roberta Miranda, Roupa Nova e Lulu Santos, enfim como pai (e empresário) do trio pop adolescente KLB, formado por Kiko, Leandro e Bruno Scornavacca.
Em 1966, quando Luis tinha 18 anos, Os Brasas se transferiram para São Paulo, onde passaram a se apresentar em programas jovens de TV e a atuar como conjunto de acompanhamento de artistas vinculados à jovem guarda, como Demetrius, Marcos Roberto, Gilberto Lima e o futuro sertanejo Sérgio Reis, mas também do comediante e parodista paulistano Zé Fidélis em “Meu Boi”, uma paródia de “Girl” (1965), dos Beatles. Em 1967 saiu pela Continental o primeiro compacto d’Os Brasas, com uma versão de balada pop italiana (“Vivo a Sofrer”) e uma imatura composição original, “Lutamos para Viver”, sem participação de Luis na autoria.
Fora d’Os Brasas, ainda em 1967, começou a despontar o Luis Vagner compositor, inicialmente em baladas adocicadas gravadas nas vozes de Demetrius (o primeiro a interpretá-lo, em “Magoei Seu Coração”), da dupla Deny & Dino (“Precisa Acreditar em Mim”) e de Paulo Diniz (“Só Que a Minha Pele É Preta”). Demetrius era um galã dos primórdios do rock nacional que tentava se reacomodar à já desgastada jovem guarda de Roberto Carlos; Deny & Dino haviam feito sucesso em 1966 com o roquinho infanto-juvenil “Coruja”, já integrados à jovem guarda; o pernambucano Paulo Diniz, futura voz de trovão da black music nacional, se lançava com o disco de iê-iê-iê Brasil, Brasa, Braseiro.
Na voz negra de Paulo Diniz, a balada soul “Só Que a Minha Pele É Preta” tentava introduzir de mansinho a temática racial no pop nacional, no mesmo momento histórico em que Wilson Simonal estava lançando seu pré-politizado “Tributo a Martin Luther King“. “Sabe/ a vida foi que me ensinou/ que nós não somos tão iguais/ porque, porque/ eu gostava tanto de você/ e sei que um dia você já amou um rapaz igualzinho a mim/ só, só, só que a minha pele é negra”, cantou Paulo Diniz, sem grandes chances de emplacar uma canção sobre preconceito e desigualdade racial no Brasil garroteado pela direita de 1967.
A baladinha “Precisa Acreditar em Mim” marcou o começo daquela que seria a parceria mais longeva e produtiva do Luis Vagner autor, com o paulista Tom Gomes (que passaria para os bastidores da indústria cultural e, a partir de 1989, viraria jornalista ligado à grande indústria fonográfica). A parceria engrenou no apagar das luzes do iê-iê-iê, quando Roberto Carlos se preparava para abandonar o programa Jovem Guarda (e o movimento musical de juventude). As baladas da dupla foram gravados em 1968 por artistas colaterais da onda jovem, como Bobby de Carlo (do hit “Tijolinho”, 1966) em “É de Mim Que Você Precisa”, o protegido infanto-juvenil de Roberto Carlos Ed Carlos em “Acho Que Estou Apaixonado”, Silvinha em “Bem Mais (Do Que Deveria Gostar)” e “Não Posso Ser Feliz”. Ensaiando um efêmero retorno ao meio musical, a desbravadora Celly Campello incluiu a florida “Marquei Encontro com Você em Meus Sonhos” e a lenta “No Outono (Nos Encontraremos Outra Vez)” no álbum Celly, também de 1968.
Ainda em 1968 Os Brasas conseguiram lançar seu primeiro e único álbum, pelo selo Musicolor. Os Brasas se dividia mais ou menos entre iê-iê-iês luminosos que eram versões de rocks internacionais e, principalmente, baladas românticas açucaradas assinadas pela dupla Vagner-Gomes. Do primeiro clube se destaca a ensolarada “A Distância”, versão musicalmente fiel para “Oriental Sadness” (1966), da banda inglesa Hollies.
Outras versões animadas são “Quando o Amor Bater na Porta”, de “When Love Comes Knockin’ at Your Door” (1967), gravada pelos estadunidenses Monkees, a apenas instrumental “Theme without a Name”, dos ingleses The Dave Clark Five, e a tex mex “Pancho Lopez” (1966), recolhida da gravação homônima do norte-americano (filho de mexicanos) Trini Lopez, que, por sua vez, já era uma versão da balada country “The Ballad of Davy Crockett” (1955). Mas o LP é caracterizado principalmente pelas baladinhas de Luis e Tom (“Um Dia Falaremos de Amor”, “Meu Eterno Amor”, “Sou Triste por Te Amar”, “Não Vá Me Deixar”), que perdem em eficiência para o baladão “Beija-Me Agora”, do jovem-guardista e futuro ídolo romântico Márcio Greyck. Único ponto fora da curva da lavra de Vagner-Gomes é o rockinho serelepe “Benzinho Não Aperte”: “Minha menina é muito dengosa/ vive a reclamar/ quando eu pego em sua mãozinha/ começa logo a falar/ ‘benzinho, não aperte, você pode a minha unha quebrar’/ então já é motivo/ para começarmos a brigar/ qualquer um dia desses/ pego tudo e vou me mandar”.
A seguir, Os Brasas voltaram ao ofício de banda de apoio, para a paulista iniciante Vanusa, outra artista firmada nos últimos suspiros da jovem guarda. No primeiro Vanusa (1968), o grupo acompanha “Aonde Estás”, “Pra Nunca Mais Chorar” e “Só Você”, todas compostas pelo futuro soulman paraguaio-brasileiro Fábio com o agitador da música juvenil Carlos Imperial, mas também num hoje clássico kitsch-psicodélico composto pela própria Vanusa, “Mundo Colorido”. “Sou tão negra quanto os negros/ que são brancos como a mim/ (…) eles não têm culpa de ser negra a cor até o fim”, canta a loirinha, em versos desastrados que não seriam aceitos nos anos 2000. Era racista, mas também um prenúncio de que o black power brasileiro vinha aí.
Na sequência, Os Brasas acompanharam a íntegra do segundo LP Vanusa, de 1969, que soprava novidade roqueira, por exemplo, no solo pesado de guitarra de encerramento de “Meu Depoimento” ou no arranjo psicodélico de “Atômico Platônico”. O mesmo ano testemunhou também o último lançamento próprio d’Os Brasas, um compacto com o baladão deprê “Agora Que Estou Sozinho”, de Luis e Tom Gomes, e o beatleesco “Você Está Longe”, de Luis e Franco. No contrapé da dissolução da jovem guarda, dissolveu-se também o conjunto gaúcho-paranaense-paulistano. Num primeiro momento, Luis foi viver no Rio, onde morou no mitológico Solar da Fossa. Franco iniciou imediatamente uma carreira solo, com um compacto de 1970 com o precoce samba-rock “Carolina” de um lado e do outro “Se Você Quiser Assim”, mais uma balada composta por Luis Vagner.
Ainda em 1969, Vagner e Gomes continuaram acendendo a fornalha de composições românticas para artistas que (como eles) procuravam uma identidade própria ao final do iê-iê-iê. Isso incluiu a própria Vanusa (que pela primeira vez gravou uma balada da dupla, “Que Você Está Fazendo Neste Lugar Tão Frio”) e seu marido ascendente no estrelato romântico, Antonio Marcos (“Se um Dia Nosso Amor Terminar”), de novo Deny & Dino (“Se Eu Te Perder”), o pré-jovem guarda destronado Sergio Murillo (o rock cigano “As Estradas”), a queijinho-de-Minas Martinha (a alegrinha “Sou Feliz Só por Te Ver”) e o quarteto vocal Os Caçulas (a reluzente “A Moça do Kharmann Ghia Vermelho”). A veia lacrimosa prosseguiu em gravações pós-iê-iê-iê de Adriana (“Justo Nesta Noite”, “Agora Que Estou Sozinha” e “Não Digo Nada”, todas de 1970), Joelma (“Os Últimos Dias de Setembro”, 1970), Vanusa (“Sem Mistério”, 1972) e Antonio Marcos (“Cinco Lágrimas ou Mais”, 1970, “Errei Demais – Agora Que Estou Sozinho”, 1972).
A mudança de prumo começou a se insinuar com o lançamento de “Silvia: 20 Horas, Domingo” (1969), do célebre “álbum tropicalista” de Ronnie Von, em que o “pequeno príncipe” do iê-iê-iê se filiava, aparentemente sem querer, à soul music que então fazia a cabeça de músicos não-negros como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Elis Regina, Marcos Valle e Ivan Lins. Na cola de Roberto Carlos, “A 120 Quilômetros por Hora” (1969), lançado num compacto por Coisas de Agora, mas atribuído também a Ronnie Von, é um soul-rock automobilístico coral assinado por Luis, Tom e o produtor (de Ronnie) Arnaldo Saccomani. Em seu segundo (e futurista) álbum de 1969, Ronnie gravou “Pare de Sonhar com Estrelas Distantes”, um soul espacial menos retumbante que “Silvia: 20 Horas, Domingo”.
Em 1970, Luis Vagner começou a tentar a carreira solo, primeiro num compacto com “Viagem para o Sul” (uma tema melancólico de saudades do Rio Grande do Sul) e a tristíssima balada “Moro no Fim da Rua”. Ao reinterpretar essa última, Wilson Simonal deu novo sentido à veia black de Vagner e Gomes, gravando-a com forte acento funk/soul e vários melismas e improvisos vocais, no álbum black power Simonal, um de seus últimos gritos musicais antes da queda. “Moro lá/ no fim da rua/ onde tudo é escuro demais/ escuro demais”, Simonal traduzia com perfeição o refrão de abandono negro. O Trio Esperança regravou no ano seguinte, bem desacelerado e com ímpeto menor, mas ainda assim puro soul.
O que começava a se impor a essa altura, além da sonoridade black, era o tom de celebração à natureza das parcerias de Vagner-Gomes, que ganharam títulos como “Novos Planos para o Verão” (Os Diagonais, 1971), “O Que Fazer em São Paulo na Primavera” (numa linda leitura em soul branco pelos jovem-guardistas Leno e Lilian, 1972) ou “Depois da Chuva no Posto 4” (1971). Essa foi gravada em versão de vozeirão por Nilton Cesar e em todo seu potencial black-soul pela efêmera dupla Tony & Frankye, formada por mais dois nomes relevantes do black brasileiro, Tony Bizarro e Frankye Adriano. É a grande faixa do subestimado álbum Tony & Frankye, em que o vozeirão black power e a celebração da natureza dão novo sentido às letras e levadas românticas de Vagner & Gomes: “Os trovões seguiram os meus passos/ a chuva caiu pela cidade/ pelo meu corpo todo ela deixou seus traços/ em meu pensamento só deixou saudade”.
Paralelamente à atividade de compositor, Luis testou trocar o lado do balcão e trabalhou nos bastidores de discos como coordenador artístico do segundo LP d’Os Diagonais (já sem Cassiano, mas com guitarras de Luis Vagner e de Hyldon), de Um Violão em Primeiro Plano, da soberba violonista Rosinha de Valença, e da Orquestra Namorados do Caribe. Também atuou como músico de estúdio, por exemplo em Vida e Obra de Johnny McCartney (1971), disco que o jovem-guardista Leno gravou sob supervisão de um ainda desconhecido Raul Seixas, mas, censurado, permaneceu arquivado até 1995.
Em 1972, ainda houve a gravação do lindo não-samba “Vou Pular Neste Carnaval”, pela sambista impura (porque essencialmente mestiça) Eliana Pittman, quando já perdia combustível a usina de produção da dupla Luis Vagner-Tom Gomes. A primeira gravação de uma composição assinada solitariamente por Luis acontece no mesmo ano, e bota para quebrar: trata-se do maior sucesso comercial do gaúcho, primeiro na interpretação do fundo d’alma do soulman nordestino Paulo Diniz, no ano seguinte no lado B de um compacto do próprio autor (com a marcha-soul “Agora Que o Carnaval Passou” no lado A), e depois em várias regravações ao longo das décadas. É “Como?” (1972), dos arrebatadores versos “como vou deixar você/ se eu te amo?/ sei que a minha vida anda errada/ que já deixei mil furos, mil mancadas/ talvez esteja andando em linhas tortas/ mas por enquanto eu vou te amando, é o que me importa/ mas você também não é rota principal/ e toda estrada tem final”, indecisos entre o romantismo mórbido de sempre e a libertação estrada afora. Segundo Luis Vagner contava, “Como?” foi escrita para a chacrete Índia Potira.
“Como?” deu um novo rumo à trajetória de Luis Vagner, que começou a compor, sozinho, canções cada vez mais suingadas e afrocentradas – é quando toma impulso o conceito difuso de samba-rock, que vinha se infiltrando na música brasileira desde a década anterior, primeiro como “jovem samba”, ou seja, uma fusão entre o samba e o rock leve da jovem guarda. A nova tendência, mais escancarada que o samba-jazz de nomes como Elza Soares e Miltinho, tinha como expressões de alcance nacional Jorge Ben (no futuro Ben Jor), o Trio Mocotó e, menos engajados, Os Originais do Samba, além de incursões ocasionais de Elizabeth Viana (“Meu Guarda-Chuva”, 1969), Doris Monteiro (“É Isso Aí” e “De Noite na Cama”, 1971), Erasmo Carlos (“De Noite na Cama”, 1971, “Mané João”, 1972), Wanderléa (“Kriola”, 1973), Abílio Manoel (“Pena Verde”, 1970, “Luíza Manequim”, 1972) etc.
A miscigenação musical (primariamente de samba com rock, mas nunca apenas isso) refletia a miscigenação étnica, branca-e-preta (e indígena, por vezes até nipônica), de músicos que aderiram à fusão de ritmos que até então evoluíam mais ou menos estanques. Não por acaso, o supostamente europeizado Rio Grande do Sul (além, eventualmente, da Santa Catarina de Orlandivo) foi um dos principais polos irradiadores do samba-rock, como destrincha o músico gaúcho Mateus Berger Kuschick no livro Suingue, Samba-Rock e Balanço – Músicos, Desafios e Cenários (Medianiz, 2013). O mesmo gênero flutuava, designado ora suingue (no Rio Grande do Sul), ora samba-rock (em São Paulo), ora balanço (no Rio de Janeiro). Kuschick colhe dados de origem, como os que Luis Vagner expõe ao falar dos “espaços criados e mantidos pelos e para os negros” desde a virada do século 19 para o 20, na cidade gaúcha de Santa Maria:
“O 13 de Maio era dos colorete, da negadinha, e também o União Familiar, onde eu fui participar de um concurso de rock. Fui dançar, eu e minha irmã, e ganhamos o concurso! E, nesse mesmo clube, a orquestra acompanhou Cauby Peixoto! No União Familiar vi Jamelão, Angela Maria. Lá, (o gaúcho) Lupicinio Rodrigues começou a sua carreira de compositor, quando servia no 7º RI ou na 21ª Cavalaria, sei lá”.
Sulista era também o grupo de samba(-rock) Pau Brasil, formado em 1974 em torno da figura do gaúcho Bedeu, outro militante-chave da onda nascente e espontânea do samba-rock. O primeiro LP do grupo só saiu em 1978, sob o significativo título O Samba e Suas Origens (e, surpresa!, influenciado menos pelo tradicional samba carioca que pela cultura subterrânea do Rio Grande do Sul, pela influência latino-americana e pelas periferias de São Paulo). Antes disso, em 1973, Bedeu fez uma de suas primeiras aparições públicas, como personagem central do samba-rock “Só Que Deram Zero pro Bedeu”, composto por Luis Vagner e gravado pela cantora pop-MPB (branca) Claudia (hoje Claudya). (No mesmo LP, ela gravou o suingue “Deixa Eu Dizer”, de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza, que em 2008 o carioca Marcelo D2 incorporou à sua “Desabafo”, transformando-o em samba-rap-rock.)
“Só Que Deram Zero pro Bedeu” conta uma história eloquente sobre o que era (e é) o Brasil (ou o mundo) para quem vem das margens e das franjas da sociedade branca e não faz questão de despistar essa origem: “Lá no festival/ que julgam músicas/ o Bedeu levou um samba/ que falava da esperança de alguém/ e a mulher do padeiro lá da padaria/ a senhora padeira disse/ ‘que bonito samba’ (…)/ alta sensibilidade, espirituosidade/ só que deram zero pro Bedeu”. E Claudia ainda arremata, irônica e didática: “Que nota é essa, negão?”.
A historinha ajuda a entender a ausência (ou o eventual fracasso), nos festivais que inventaram para a música popular (universitária) brasileira o codinome MPB, de roqueiros jovem-guardistas, “cafonas”, soulmen etc. Para os artistas negros que não faziam samba, em particular, só houve sinal aberto já na fase de decomposição do formato festival, depois da debandada emepebista no pós-AI-5. Aconteceu no Festival Internacional da Canção de 1970, na emergente Rede Globo, com o pantera negra Toni Tornado e o maestro-explosão Erlon Chaves (1970), e prosseguiu em 1971, com Trio Ternura e Helio Matheus, em 1972, com Jorge Ben e Maria Alcina (no hino futebolístico samba-soul “Fio Maravilha”), por fim no extemporâneo Festival Abertura de 1975, com Luiz Melodia e Djavan. Em 1970, a edição mais negra dos festivais, fortemente influenciada pelo “black power” e o “black is beautiful”, terminou em escândalo entre as esposas dos generais (pela mistura de raças esfregada do palco à telinha da TV), censura, perseguição, prisões e tortura.
Em 1973, Luis ganhou as vozes do veterano do sambalanço Miltinho(na lenta “Vida Maravilhosa”), do coral black do organista da jovem guarda Lafayette (“Não Desanime”) e do sambista santista Luiz Américo (o sucesso popular “Camisa 10”, um samba-rock matreiro na linha futebolística do “Fio Maravilha” de Jorge Ben), essa em parceria com o craque carioca do samba suingado Helio Matheus.
Em 1974, Luis Vagner foi representado pela voz de veludo da lady soul carioca Evinha (ex-cantora infantil do Trio Esperança), em “Virou Lágrimas”, e pelo ex-companheiro d’Os Brasas Franco Scornavacca, que tentava carreira no samba (e logo mais no samba-rock) como simplesmente Franco, em “Copacabana” (da já esmaecida parceria com Tom Gomes). E, seis anos após o solitário LP d’Os Brasas, o compositor conseguiu enfim estrear num álbum solo 100% composto por ele sozinho e lançado pelo selo menor Chantecler, sob o título Simples e assinando-se Luis Vagner Lopes. De não-inédita, havia apenas a versão de autor para “Só Que Deram Zero pro Bedeu”, com uma introdução nova entre o libelo e a ode à natureza (“já raiou liberdade/ e o céu é tão bonito”).
O álbum começa totalmente mestiço com a indefinível “Chula Louca” (uma chula gaúcha?), cuja letra demonstra, logo de cara, um esgar de desencanto (e contradição): “Eu não quero nem saber, perdi a fé/ eu não quero nem saber, perdi/ eu não quero nem saber, perdi a fé/ seja tudo como Deus quiser”. A descendência indígena é o mote para o tema de natureza “Nas ‘Planices’ Muitas Luas de Paz” (também gravado pelos Golden Boys, em 1975): “Eu lhe darei um cocar/ chefe eu sempre fui/ disse o meu velho pai”. Mas a letra não contempla as raízes indígenas gaúchas, e sim a estereotipia dos faroestes norte-americanos, entre sinais de fumaça e provocações aos “caras-pálidas”.
Entre garbosos arranjos de cordas de Chiquinho de Moraes (então maestro de Roberto Carlos, inclusive no hino gospel “Jesus Cristo”, de 1970), latinidades (“Você Já Viu Né?”) e muita mestiçagem musical, Simples era presa fácil para quem quisesse classificar Luis Vagner como “indefinido” ou “indeciso”. O álbum não toma partido nem pelo samba-rock, que só fala mais alto na homenagem agridoce a Bedeu e na rudemente carinhosa “Nega Véia”. O disco tem um final inesperado, quando, no desfecho da melancólica “Eu Queria Ir pro Céu”, Luis se põe a desejar “feliz natal” e “feliz ano novo”, sobre um fundo de “bate o sino pequenino/ sino de belém”. Curiosamente, Simples termina no mesmo lugar em que começará o Cuban Soul 18 Kilates (1976) de Cassiano (cuja primeira faixa se chama “Hoje É Natal”). Quanto às saudades do Sul, só aparecem de passagem no texto que Luis assina na contracapa: “Sem sombra de dúvida, só faltou a cuia e a bomba e a erva para um relaxante chimarrão”.
Noutras vozes, 1975 trouxe à tona mais três composições de peso de Luis Vagner. A primeira é a versão soul de “As Estradas” (cantada por Sergio Murillo em 1969), aos cuidados de Paulo Diniz. A segunda é o suingue arrasa-quarteirão “Embrulheira”, lançado por um Wilson Simonal tristemente enredado na derrocada comercial (mas não na criativa, pelo menos nesse momento), com letra sob encomenda para o intérprete: “Eu sempre soube que havia um leva-e-traz/ (…) essa foi demais/ estou sabendo, vão rasgar o meu cartaz/ (…) digam por favor o que se passa/ o que querem que eu faça?”. A terceira é o formidável samba-rock picaresco “Segura Nega”, composto em parceria com Bebeto e inserido no álbum de estreia desse cantor e compositor mestiço paulista que se tornaria, a partir daqui, a maior referência do samba-rock depois de Jorge Ben.
O flerte com a “cafonice” manifestou-se em 1975 em duas composições divididas com Silvio Brito, que subia na crista da onda (e irritava Raul Seixas) com “Tá Todo Mundo Louco” (1974) e “Para o Mundo Que Eu Quero Descer” (1976). Fizeram juntos os rocks “Espelho Mágico” (também com Tom Gomes), mais acelerado, e “Um Menestrel na Cova dos Leões”, mais lento e ao gosto messiânico que Silvio Brito copiava de Raul Seixas. Mais elegante é “Na Cara Desse Cara” (1976), funk de Luis Vagner que abre o fabuloso disco em que Zeca do Trombone e Roberto Sax (codinome de Roberto Simonal, irmão de Wilson) apresentam autores emergentes do samba-soul, como Luis Vagner, Cassiano e Carlos Dafé, num dos trabalhos fundadores da chamada black Rio.
Coisas e Lousas (Alvorada/Chantecler, 1976), o segundo LP solo de Luis Vagner, não é exatamente seu segundo LP, e expõe precoces desacertos com a indústria fonográfica: seis das 12 faixas repetem o repertório de Simples. Outras quatro reeditam dois compactos já lançados: “Agora Que o Carnaval Passou” e “Como?” (de 1972), “Na Ponta da Sandália” e “Comigo Vai Tudo Bem” (1974). “Ô, nega,/ não vá embora/ cuide do seu nego/ que não tem sossego sem você/ ô, preta,/ não vá embora/ cuide do barraco, nega,/ e cuide dos meus trapos, preta”, canta em “Na Ponta da Sandália”, um samba impuro e algo machista que toca de modo neutro em questões identitárias, sete anos após a primeira tentativa (em “Só Que a Minha Pele É Preta”, 1967). Apenas duas são inéditas, a sedosa faixa-título e “Vovó de Ipanema”, uma réplica taciturna à “Garota de Ipanema” (1963) da bossa nova (“bossa nova é saudade”, cutuca). Ao que tudo indica, o LP Coisas e Lousas existiu para fechar o contrato com a Chantecler, e não para ser um segundo trabalho autoral.
A prova é que ainda em 1976 sai um novo álbum, agora pelo selo Copacabana. Luis arma pela primeira vez os dreadlocks (segundo contou em 2002 numa grande entrevista ao pessoal do saudoso site Gafieiras), mas os mantém escondidos embaixo de um gorro na capa de Luis Vagner. A faixa de abertura, “Guitarreiro”, foi definidora para o artista, ao chamar atenção para sua relação carnal com a guitarra, e acabou por tornar-se quase um sobrenome artístico, “Luis Vagner Guitarreiro”. É fusão do início ao fim, de música e de letra: “Naquele tempo eu gostava dos Beatles/ mas tinha uns nego velho/ que eu gostava muito mais/ (…) sou guitarreiro brasileiro, toco samba, transo Mengo e futebol/ sou guitarreiro brasileiro, toco samba e ainda pago o aluguel/ sendo guitarreiro brasileiro toco samba, represento meu papel”. Entre os “nego velho” citados certamente estão os inventores jamaicanos do reggae – Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff etc. -, um gênero que aparece em primeiro plano nesse apimentado segundo Luis Vagner: samba-rock-reggae, a mistura ficava cada vez mais intensa e complexa.
Na entrevista ao Gafieiras, em 2002, Luis refaz o nexo Jamaica-Rio Grande do Sul: “Se você pegar a música regional, que faz a fusão mesmo no sul do Brasil, você tem uma influência cisplatina. Já corre isso. Porque esse lado da América do Sul é o elo: cisplatina, andina, tem essa ligação, e os negros dali desenvolveram um modo de tocar. Por exemplo: quando se toca um xote, um vanerão, uma rancheira no sul do Brasil, percebe-se que é muito parecido com a reggae music”.
Mas o disco não pertence apenas ao reggae. O soul-rock afro-indígena “Lá no ‘Partenon'” é a canção de saudades, fazendo referência direta ao bairro onde o autor viveu em Porto Alegre, antes de Os Brasas migrarem para São Paulo. O Sul negro que o Brasil desconhece é representado também pelo grupo Pau Brasil, que cuida dos coros e das percussões do disco. “Sufoco” fica nalgum lugar entre o blues, o soul de fossa e o samba-canção à moda de Lupicínio Rodrigues. “Cobra Criada” se move entre o samba-rock e os descaminhos do amor (ou da profissão?): “É cobra criada, olha o veneno, olha a picada”. “Camponesa” brinca com as fronteiras do rock rural dos anos 1970, talvez um samba-rock rural. “Estás Loca de Linda Rita” recombina afro-latinidade, candomblé, samba de roda, música chilena dos anos 1970… Os cariocas Zeca do Trombone e Roberto Simonal tocam os metais na faixa de encerramento, o funk “Tesourão”. Talvez o segundo disco soasse também estranho a ouvidos não acostumados à black music gaúcha, e o repertório não saiu mesmo do anonimato, a não ser por conta do clássico do suingue “Guitarreiro”.
Sem grande sucesso individual, Vagner seguiu fornecendo samba-rock para a música popular brasileira, como em “Se Quiser Chorar por Mim” (1977), com parceria e interpretação de Wando, quando o artista mineiro trilhava os descaminhos do não-movimento samba-rock, bem antes de virar mito do mais deslavado romantismo/sensualismo. A parceria Wando-Vagner se repetiu em “Gandaia” (1978), gravada em samba-rock por Wando e mais funkeada por Marcia Maria, a sacudida “Onde Bate Fica” e a mais romântica “Conversando com as Borboletas” (ambas de 1981). “Pelas Noites do Brasil”, exemplar extemporâneo da parceria Luis Vagner-Tom Gomes, deu título ao LP de Wando em 1981, que além das citadas incluiu ainda uma regravação de “Camponesa”, em transição rumo ao Wando ultra-romântico dos anos 1980 em diante.
Em 1978, Franco, o ex-companheiro d’Os Brasas, publicou seu segundo (e último) LP individual, colocando Luis Vagner em lugar privilegiado. Franco regravou “Guitarreiro” (numa versão mais explícita que a do autor, com citação a “She Loves You”, dos Beatles), “Como?” e “Moro no Fim da Rua”, além de apresentar o inédito balanço “Fazer Molho É na Cozinha”. Mas a faixa-símbolo não é de Vagner, e sim de Helio Matheus – “O Rock do Rato” é um manifesto da miscigenação samba-rock: “Rock’n’roll/ misturou o boogie-woogie no meio do samba e veio/ o rock’n’roll”.
A essa altura, a disco music, uma continuação abrandada e diluída do funk, se impunha como som do momento nos Estados Unidos e inspirava a novela Dancin’ Days, da Rede Globo. Ao mesmo tempo, emergia por aqui a chamada black Rio (em torno da Banda Black Rio de Oberdan Magalhães), de funk pesado influenciado pelo samba, mas em nada abrandado ou diluído. Luis Vagner se beneficiou da nova onda black, com sua “Guria” inserida na trilha-coqueluche de Dancin’ Days (1978), ao lado de petardos disco, como “Dancin’ Days” (com as Frenéticas) e de petardos funk, como “Hora de União” (com Lady Zu e Totó Mugabe), que institucionalizou o subgênero samba-soul e levantou libelo black power, “é muito importante o clima dessa união/ vem dançar/ vem dançar irmão/ é a vez do samba-soul”, “este é o momento certo/ dessa libertação/ se a gente usar a força/ dessa canção”. A conclusão vinha na voz black power de Totó: “Samba é soul/ e soul é samba/ ambos são negros como eu/ e importantes como a noite/ temos as mesmas origens/ Brasil/ África”.
Malemolente e manhosa, “Guria” passava batida pela onda disco e pegava pesado no mais suingado samba-soul, totalmente integrada ao black Rio, em total sintonia com Banda Black Rio, Lady Zu, Tony Bizarro, Gerson King Combo, Miguel de Deus, União Black, Robson Jorge & Lincoln Olivetti e outros artistas funk que se levantavam contra o paredão pop da discothèque. Essa fase rendeu o álbum Fusão das Raças (1979, Philips/PolyGram), Luis Vagner pela primeira vez assimilado por uma multinacional do disco, com um naipe de músicos diversos, do maestro Nelson Ayres nos arranjos, regências e teclados a Bedeu na percussão e Cláudio Bertrami (do jazzístico Grupo Medusa) no baixo.
A faixa-libelo, o reggae sulista “Fusão das Raças (Pro Planeta Melhorar)”, faz uma síntese dos princípios que norteiam a obra mestiça do artista, ao sabor dos “ventos fortes do sul”: “Yo comprendo su luta por su pueblo, señor/ por isso bah, tchê, bah/ como o alimento que surge desta terra fértil/ estou aqui pra dizer/ que a fusão das raças procura a supra-força que cura/ fertilizando a nossa pátria, salve o mundo, ó, Brasil”. No final, mestiçagem musical e humana se somam e complementam: “Sarará, negão, mulato, preto, branco, amarelo, tudo!”.
Fusão das Raças traz nova versão autoral de “Como?” e a primeira leitura própria do suingue “Embrulheira”, que o desterrado Simonal lançara. Cantada com o emergente pop-disco Dudu França, “Rockeira” demonstra que, apesar das influências sem fronteira, para Luis Vagner fazer molho é na cozinha brasileira: “Eu sei que tu és rockeira/ e não cansas de em inglês cantar/ mas vou te amar à brasileira/ e o molho vai te cozinhar”.
O tema de saudade da vez é “Só pra Renascer”, que celebra os carnavais gaúchos de avenida pré-influência carioca e homenageia Lupicinio, Pixinguinha, Raul de Barros e o maestro Edmundo Peruzzi, entre outros: “Eu juro, meu povo, que eu morro de novo/ só pra renascer/ diz que santo de casa não faz milagre”. “Medicado por Deus” brinca a sério com o baque dos amores desfeitos: “Já estou curado, completamente medicado por Deus/ o meu coração dodói/ curou-se à base do sofrer”.
Uma faixa que o tempo tornou inviável é “Entendida” (um jargão de época para designar homossexualidade), pelo teor homofóbico da letra (“por favor, moça, não negue sua natureza”). Ela fica lado a lado com o ponto mais excêntrico do LP, “Garota de Ipanema”, a bossa clássica que o autor de “Vovó de Ipanema” (1976) subverte completamente, entoando-a como um mantra soul e chamando a famosa garota de “gatinha de Ipanema”.
Por essa época, Luis forneceu baladão soul deprê para Lady Zu (“Eu Queria Falar com Você”, 1978), funk buliçoso também para Lady Zu (“Pantera”, 1979), pop-funk para Dudu França (“Me Leva”, 1980, “Se Teu Amor Partir”, 1982), samba-funk para Cidinho e O Som Tropical, do suingueiro gaúcho Cidinho Teixeira (“Tô Dando um Toque”, 1980), samba-rock para Bebeto (“Retremendando” e “Ser Poeta”, 1982) e novas tentativas de hinos de Copa do Mundo para Os Incríveis (“Gôôôô-ôôl Brasil”, 1982) e Mussum (“Camisa Um”, idem). No LP Fêmea Brasileira (1979), Lady Zu e Luis Vagner atualizaram para o samba-soul, em dueto, o clássico racial (duvidoso aos ouvidos de hoje) “Boneca de Pixe” (1942), de Ary Barroso e Luís Iglesias: “Da cor do azeviche/ da jabuticaba/ boneca de pixe/ és tu que me acaba/ sou preto e meu gosto ninguém me contesta/ mas há muito branco com pinta na testa”. Em 1979, o cantor Sócrates dedicou todo o disco Na Ponta da Sandália a reler, sempre em ritmo de samba-rock, a obra de Luis Vagner.
Em 1981, a veia samba-rock do compositor ganhou ênfase nas regravações de “Como?” e “Embrulheira” por Bebeto, mas mais ainda numa composição original de Jorge Ben chamada “Luiz Wagner Guitarreiro” (com a grafia errada do nome), feita em sua homenagem: “Luis Vagner guitarreiro/ ligue essa guitarra e anime o terreiro/ toca jogo, samba, partido, maracatu e calango/ funk, rock e baião/ toca Luis Vagner guitarreiro, meu amigo partideiro/ mostra um som de Jimi Hendrix/ que eu acompanho no pandeiro”. Surrealista, mas provavelmente ligado à fusão de raças (e ritmos musicais) pregada pelo homenageado, o suingue de Ben desvia o rumo da letra colocando o “guitarreiro” para tocar no casamento de… Lady Diana. No especial de Ben na Rede Globo (Energia, 1982), Vagner evolui na guitarra ao lado do anfitrião. O balé de guitarristas samba-rock sublinha e reafirma, pela negação, a troca histórica do violão pela guitarra, que Jorge Ben consumara anos atrás. Em 1985, Luis comporia a banda de apoio de Jorge, mas tocando baixo.
Os afagos de Bebeto e Jorge Ben, no entanto, aconteceram num momento em que Luis se distanciava gradativamente do rótulo samba-rock. O compacto com “Patrulhas” e “Povo-Passarinho” aproxima-se mais do reggae, inclusive no conteúdo de contestação da primeira: “São essas patrulhas/ que fincam agulhas/ espalham medo/ que andam em bando e vivem matando/ sem nenhum segredo/ (…) covardes sem luta/ são filhos daquela maldita colmeia/ que mata os homens, mas não as ideias”.
De volta à gravadora Copacabana, o álbum seguinte, Pelo Amor do Povo Novo (1982), forma o grupo Amigos Leais e ressalta a negritude militante e o reggae, nos cabelos soltos da capa e em faixas como “Papai Chegou, Mamãe”, “Lava Alma” e o black gauchíssimo “Crioular (Milonga Yé)”. Além de parcerias com Bedeu (o pedido de socorro “Duro sem ‘Love’ sem Nada”) e Helio Matheus (“Lava Alma”), o álbum inclui um tema futebolístico inédito de Jorge Ben, “Crioulo Glorificado”, apresentado (e desclassificado) no anacrônico festival MPB Shell 1982 da Globo. Mais um raro cruzamento musical com Jorge Ben aconteceu no ano seguinte, com o delicioso suingue rebolado “Ela Tem Raça, Charme, Talento e Gostosura”, que Ben compôs para Gretchen e ela gravou em dupla com Vagner.
Em 1985, Luis participou do Festival dos Festivais, da Rede Globo, com visual rastafári, gorro à la Che Guevara e um reggae sulista chamado “Não Negai”, uma dupla negação que tentava fazer desabrochar uma afirmação: “Fé na nossa crença/ o crime não compensa”. Segundo o autor contou ao Gafieiras, “Não Negai” foi negado pelo festival de MPB, e, sabendo previamente da desclassificação, o autor-cantor executou de propósito uma versão longuíssima da música, ao vivo, em rede nacional pela Rede Globo. Num obscuro festival da Record em 1991, ele foi mais bem-sucedido e conquistou o terceiro lugar com “Oh, Raios”.
As solicitações de composições por outros intérpretes começaram a rarear, mas Luis Vagner continuou frequentando as gargantas de Wando (“Sabor Tropical”, 1983, “Alma Francesa”, 1993, “Novo Milênio”, 1996), Sidney Magal (“Siga Menina”, parceria com Tom Gomes, 1985), Os Originais do Samba sem Mussum (o divertido samba-rock “Nega do Cabelo Sanfonado”, parceria com Bedeu, 1989) e o samba-roqueiro Branca di Neve (“Oi”, 1989, lançado pouco depois da morte do intérprete).
Luis se entregou completamente ao reggae no altivo O Som da Negadinha (1986, Beverly/Copacabana), um disco gravado ao vivo (como demarca a capa), mas em estúdio, sem plateia. Um pouco no rumo dos reggaes de protesto do bravo rastafári baiano Edson Gomes, O Som da Negadinha converte Luis Vagner como nunca às letras de consciência social/racial, em temas irados como “Mamãe África” (parceria com Bedeu), “Homem Rasta” e mais uma canção de socorro, “Homem Assim Não”. “Você não sabe o que eu tenho passado/ você não sabe mais nada de mim/ não sabe nada/ não sabe nada nem tenta e tá a fim”, canta, secundado pelo coro de “não chore homem assim, não/ não sofra homem assim, não”.
“Homem Rasta” faz o balanço de uma vida e de uma riquíssima cultura: “Eu vi punk no metrô/ new wave dar alô/ os metaleiros, os metaleiros/ beatniks ao luar/ eu vi hippie arrepiar/ eu vi roqueiros, eu vi roqueiros/ black power no poder/ eu vi break na rua ser/ eu vi os junkies, eu vi os junkies/ vi mulata rebolar só pra gringo endoidar/ eu vi sambeiros/ vi caboclo saravá/ nego véio a girar/ os batuqueiros, os batuqueiros/ eu vi cara inventar e a história adulterar/ os embusteiros, os embusteiros/ eu vi políticos/ vi artistas inimigos/ eu vi bandidos, eu vi bandidos/ homem rasta quer respeito”.
Diz “Mamãe África”, irmã mais velha da “Mama África” (1995) de Chico César: “Foi num culto rastafári/ que eu te encontrei/ curtindo samba, rock, blues, reggae/ até desfalecer, mama/ reunião da raça, cheiro, ervas e cachaça rolando no sarau/ mas tinha nego das malocas, das favelas, becos, guetos e bibocas/ sofridos, oprimidos, libertando a expressão/ tirando a cultura das tocas/ os tambores, as maracas e os timbaleiros/ ritmando o ar/ gritos, urros, vozes e lamentos da senzala/ que embalava os corações dos filhos livres da mamãe África”.
Faixas longas de sonoridade viajandona são a regra, com momentos de hedonismo na divertida e marijuaneira “Olhos Vermelhos” (“aí, Joana,/ nesses olhos vermelhos/ nessa boca de fogo/ o que me importa/ eu quero é me queimar de novo”), parceria com Helio Matheus, e no centro-americano “Calipso Colapso” (“quem não dançar calipso/ vai ter um colapso”). Nessa última ele mapeia, mais uma vez, a matéria de que é feito: “Gente que dança forró, baião, frevo e rancheira/ gosta de jongo, lundu, cateretê, capoeira/ sente no sangue maculelê, bolero e samba/ cai no chorinho, maracatu, rock, guarânia/ suingue, afoxé, batuque/ tudo que é bom pode estar certo que faz bem ao coração”. De natureza parecida é “Skuliba”, mais um reggae de saudade: “Eu vou pra Porto Alegre/ feliz da vida/ (…) skuliba/ arriba, arriba, tchê/ vou abraçar irmãos/ tomar chimarrão/ vou ver o por do sol/ nas margens do Guaíba”.
Um menosprezado projeto coletivo chamado Alma Negra (1988, Ali Records/Continental) buscou a utopia da união black em pique black power, reunindo Luis, Toni Tornado (de volta a um estúdio musical 18 anos após “BR 3”), Tony Bizarro, Lady Zu e Carlinhos Trumpete. Não chegava a ser um encontro, no entanto: cada intérprete cuida sozinho de duas faixas – Luis grava as inéditas “Guri Guru” (funkão latino em parceria gaúcha com Bedeu) e “Cobertor”, além de entregar a dinamite “Dr. Swing” a Tony Bizarro e o rap-suingue “Motim” a Toni Tornado.
Ainda em 1988, nasceu o segundo álbum reggae de Luis Vagner e Amigos Leais, Conscientização (Copacabana), que só se desvia para o samba-rock em “Negona” (de Luis e Bedeu, “chegar, cheguei/ não sei se cheguei na hora, mas cheguei”). Menos impetuoso que O Som da Negadinha, acumula tentativas como “Toquem Blues (Só Que Tem um Toc…)” (“se a África é o começo de tudo/ ela não pode se acabar/ rastas, rezem pela nossa mãe”), o reggae praieiro gaúcho “Tramandaí” e a faixa-título engajada (“nação brasileira/ de sangue, raça e cor/ raízes negreiras/ líder lutador”). O já habitual reggae de pedido de socorro é “Burriçe” (grafado com “ç”): “Vai dizer que estou errado/ me xingar de descarado/ que eu não tenho nem dinheiro pra comer”.
Em 1993, o parceiro gaúcho constante Bedeu lançou uma expressiva parceria com Luis Vagner, “Saudades do Jackson do Pandeiro“, em honra ao cantor da primeira música a usar o termo “samba-rock”, “Chiclete com Banana” (1958), composta por Gordurinha. Para além de Jackson, a homenagem se estende a uma série de outros suingueiros brasileiros, entre os quais Luis insere vários tocadores de sanfona (um instrumento que faz a ponte improvável entre o Nordeste e o Rio Grande do Sul): “Gordurinha, Chocolate, Gasolina, Caco Velho, Bola Sete, guitarreiro, suingueiro/ Dominguinhos, Caçulinha, Oswaldinho, Borghettinho, mestre Sivuca, Luiz Gonzaga/ vão sanfonando esse Brasil”. Dois gaúchos compõem o rol de Luis e Bedeu: o pré-suingueiro Caco Velho e o sanfoneiro Renato Borghetti.
Morando temporariamente em Paris no início dos anos 1990, Luis Vagner gravou e lançou na França o álbum Cilada (Phoenix Spink, 1990), metade ao vivo, metade em estúdio, até hoje inédito no Brasil. Ele só foi estrear no formato CD no Brasil em 1994, no independente Vai Dizer Que Não Me Viu… (Daaz Music), constituído de 13 faixas inéditas que recuam na predileção reggae e voltam, sem grande inspiração, à fusão de “raças” musicais apregoada pelo guitarreiro.
Aparentada do massivo balanço “W/Brasil (Chama o Síndico)” (1993) de Jorge Ben Jor, “Feijoada”, a faixa-síntese em pique farofafá, equipara a mistureba musical às fusões culinárias, fervendo num mesmo caldeirão couve, banana e caipirinha, “samba-rock, samba-reggae, samba-funk/ samba de breque, sambalanço, sambalaço/ só no remelexo”, norte, centro e sul (“eu venho lá do sul/ pelos ares, pelos mares, pela terra ensolarada/ pela vida, pela morte, pela sorte desse céu azul/ eu venho lá do sul/ bah, tchê”). O recado magoado, aparentemente, é para a música pop que ganhou os rádios na década de 1980: “Alô, rapaziada do rock’n’roll do Brasil/ a memória é curta, a memória é curta/ mas vai dizer que não me viu?”.
Com o estouro de “W/Brasil” por Ben Jor e do novo pagode suingado puxado por grupos como Raça Negra, a década de 1990 começou a testemunhar primeiras ondas de revalorização do samba-rock, enquanto a cultura de bailes suburbanos se deslocava para o sisudo rap paulista e para outra categoria de funk, o funk carioca. Clássicos de Vagner passaram a ser relembrados e regravados por gente diversa como o colega samba-rock Dom Mita (“Como?”, 1993), o axezeiro Netinho (“Como?”, 1994), Swing Manero (“Segura Nega”, 1994), o discípulo Marco Mattoli (“Segura Nega”, 1996), o pagodeiro Molejo (“Camisa 10”, 1998), o belga-congolês naturalizado brasileiro Bukassa Kabengele (“Como?”, 2000), o forrozeiro Frank Aguiar (“Neguinha Boa”, 2001), o romântico Fábio Jr. (“Moro no Fim da Rua”, 2003), o r’n’b-rap Sampa Crew (“Como?”, 2004), o carnavalesco Monobloco (“Segura Nega”, 2010), o veteranos Pery Ribeiro (“Embrulheira”, 2013) e Evinha (“Virou Lágrimas”, 2016).
A redescoberta atingiu bandas novas como as neo-samba-rock Farufyno (“A 120 Km por Hora” e a inédita “Dançarino”, 2004) e Sandália de Prata (a inédita “Despertar”, 2009). O Rio Grande do Sul também se reencontrou com o filho desgarrado, por intermédio das bandas locais Papas da Língua (“Como?”, 1998), Video Hits (“Silvia: 20 Horas, Domingo”, com participação de Ronnie Von, 2001), Ultramen (uma parceria inédita, “Coisa Boa”, 2002) e o grupo neo-nativista Tchê Garotos (“Saudades do Jackson do Pandeiro”).
Ao fundar a big band Clube do Balanço, o paulistano Marco Mattoli trouxe Vagner para participar de quatro faixas do álbum Swing & Samba-Rock (Regata, 2001): o inspirado suingue “Só Vejo a Criola”, de e com Bebeto, “Falso Amor”, de Bedeu, “Trilha Guitarreira”, de Mattoli e Luis, e de novo “Segura Nega”, dividida com Ivo Meirelles e Seu Jorge. O CD traz ainda a versão do Clube do Balanço para “Saudades do Jackson do Pandeiro”. Adiante, Mattoli e Luis compuseram juntos “Dentro dos Olhos Dela” (2009) e “Menina da Janela” (2014), ambas para o Clube do Balanço, e “Quando Vi Geraldo Filme“, em homenagem ao pioneiro sambista paulista, gravado por Mattoli com Carlinhos Vergueiro. Na mesma pegada, Wilson Simoninha e Max de Castro, filhos de Simonal, compuseram “Ela É Brasileira” (2008) com Seu Jorge, que a cantou com Simoninha e Luis Vagner.
Em 2001, Luis Vagner lançou dois CDs simultâneos pelo selo Paradoxx, um chamado Swingante, com regravações e versões autorais para “Saudade do Jackson do Pandeiro”, “Vou Pular Neste Carnaval”, “Onde Bate Fica” e “Dr. Swing!”, e o outro com novas composições, batizado Brasil Afro Sulrealista. Nesse, o artista mais uma vez privilegia o reggae e acerta contas com o passado gaúcho, em pepitas afrogaúchas como “Negros do Sul” (com trechos do poeta fronteiriço gaúcho Oliveira Silveira), “Gente Simples”, “Rola na Ginga” e “Pedra Que Não Lasca”. “No Sul/ negro charqueou, lavou, carreteou/ no Sul/ negro remou, teceu e o diabo a quatro/ (…) a negra no Sul cozinhou e lavou/ e o diabo a quatro/ no Sul/ o negro brigou, guerreou, se libertou/ quer dizer que ainda se liberta/ de mil disfarçadas senzalas, prisões/ onde tentam mantê-lo/ mantê-lo aguilhoado”, denuncia “Negros do Sul”, em versos de Oliveira Silveira.
Em “Pedra Que Não Lasca”, Luis produz nova e eclética homenagem à música brasileira (e gaúcha), em versos em rap gauchesco para “Zé Keti, João do Vale, Elis e Jackson do Pandeiro/ Edu, Raimundo, Luiz Gonzaga/ Teixeirinha, Pixinguinga/ Chimbinha e Barroso, Noel Rosa e Lupicinio/ Bedeu, Branca di Neve, Bola Sete, Caco Velho/ Tim Maia, Raul Seixas/ Cazuza, Renato Russo/ Villa-Lobos, Carlos Gomes/ Chiquinha e Nazareth/ Nelson Gonçalves, Ataulfo, Adoniran e Chico Alves/ Lamartine, Vinicius, Candeia, (?) e Cartola/ Simonal, Clementina, Moreira, Nogueira/ maestro Peruzzi, 500 anos de Brasil”. São vários os gaúchos incluídos: Elis Regina, Teixeirinha, Lupicinio Rodrigues, Bedeu, Caco Velho, Nelson Gonçalves. Quanto ao sambista carioca que puxa o comboio, Luis Vagner contava que deixou um disco gravado com Zé Keti, retido pelo filho do compositor depois de sua morte. “É um disco em que toco com o Zé Keti. Ele cantando uma fusão de reggae music comigo, como ele queria”, declarou ao Gafieiras, surpreendentemente, em 2002.
Nestes anos 2000, Bebeto regravou “Como?” com Zélia Duncan e apresentou a inédita “A Profecia”, de Luis com César Belieny, em 2006. Em 2008, Jair Rodrigues começou o álbum Em Branco e Preto com “Orquestra Popular” (gravada nos anos 1990 em samba-rock por Cissa e por Paulo Urias, esse último num CD inteiro de músicas de Luis), de Vagner e Bedeu (que morreu em 1999, deixando apenas três discos solo lançados, além dos dois anteriores com o Pau Brasil). No último disco de Vanusa (Vanusa Santos Flores, 2015), produzido pelo maranhense Zeca Baleiro, a cantora e o compositor assinaram juntos o tema de solidão “Tapete da Sala”.
Ainda ao lado do Clube do Balanço, em 2007, Luis Vagner foi contemplado no disco coletivo Eu Não Sou Cachorro, Mesmo, inspirado pelo livro do historiador Paulo Cesar de Araújo sobre a música “cafona” brasileira (Eu Não Sou Cachorro, Não, 2002), cantando “Como?” mais uma vez. Desde sempre, ele flutuava nalgum ponto secreto entre a hibridez do samba-rock e a hibridez da música chamada “cafona” ou “brega” (ou seja, das misturas todas pelas quais a MPB universitária não sente afinidade ou proximidade).
Os derradeiros trabalhos do músico, 19 anos depois dos álbuns gêmeos de 2001, foram a faixa avulsa futebolística “Gigante da Beira-Rio” (2020), com a banda black gaúcha Funkalister, e o álbum independente Samba, Rock, Reggae, Ritmos em Blues & Outras Milongas Mais (2020), com 16 faixas inéditas de alternância e fusão dos ritmos citados no título. O balanço “Ironia Informatal” condensa o estado de coisas: “Você sabe quem eu sou/ o meu som você curtiu e dançou/ e até acho que gostou/ já faz tempo eu não estou/ não estou na mídia e o mercado mudou/ é ironia informatal/ (…) eu já não sei que vou dizer”.
Entre paredões guitarreiros, o rock “Xabu” extravasa mágoas e tenta espantar o baixo astral: “Já falaram tanto mal de mim/ disseram que não é assim/ eu insisto/ não desisto/ o moderno, sim, está no eterno”. A irreverência contamina “Plantando Bananeira”, suingue pesado em tempo de pandemia: “O meu trabalho segue a trilha guitarreira/ sorrir nem sempre significa brincadeira/ (…) acordei/ e vi que o mundo tá plantando bananeira/ tá de cabeça pra baixo/ tá de pernas pro ar”. “Que Bela Milonga” mantém aceso o orgulho gaudério, com referências a chimarrões e churrascadas. Por fim, o samba balançado “Saiba Que Foi Você” acende o alerta: “Se o meu coração parar de bater/ saiba que foi você”. E o coração parou de bater.
Segundo Mateus Mapa (nome artístico do semi-biógrafo Mateus Berger Kuschick), Luis deixa pronto mais um álbum totalmente inédito, chamado Música Planetária Brasileira. Deixa também, como legado, todo um lençol freático de música “na confluência afrobrasileira, eurocisplatina e andina” (e também afrocisplatina, por que não?), como escreve o guitarreiro no prefácio do livro de Kuschick. “Para mim, você nunca ter ouvido falar dos negros do Sul é um ponto falho na discografia, no mundo artístico brasileiro”, queixou-se Luis Vagner no Gafieiras, lá em 2002. Mesmo migrante no Sudeste, dedicou grande parte de sua vida musical fa desvendar e expor a presença da música (e da população) negra e indígena no Sul do Brasil, que uma maioria de sulistas e de brasileiros em geral não deseja enxergar nem ouvir.
Muito bom. Profundo, completo, esquadrinhante. Parabéns.