Ao ler Pisando fora da própria sombra: a escravidão por dívida no Brasil contemporâneo (Civilização Brasileira, 2004), de Ricardo Rezende, o cineasta Bruno Barreto decidiu enfrentar esse tema em profundidade. Juntou-se a Marcelo Santiago e a dupla saiu em busca de histórias de escravidão que persistem no século XXI. Encontraram desde trabalhadores ludibriados por contratos em fazendas longínquas a mulheres exploradas sexualmente e bolivianos atuando em lúgubres oficinas de costura.
A investigação resultou em cinco episódios documentais para a HBO, que impressionam por revelar a complexidade da escravidão moderna. Uma mulher enviada ainda criança pela família para um falso trabalho doméstico consegue se libertar da condição de escrava e é ainda condenada pelo pai. Barreto admite que faltou o chamado “outro lado”, porque os algozes se recusaram a dar entrevistas. A única exceção foi a marca Zara, que admitiu o problema na confecção das suas roupas e diz ter mudado a prática.
Quando o cidadão Bruno Barreto se conscientizou sobre a escravidão moderna?
Sempre ouvi falar disso, leio jornal, sou uma pessoa informada. Mas por que quis contar essa história? O que me move é a condição humana, e não uma causa. Eu chorei revendo a série toda, nos últimos dois dias. Eu li o livro do padre Ricardo Rezende, só sobre o personagem Zé Pereira, que foi um pouco o “caso zero”. Tinha pensado em fazer um longa, mas o papai (Luiz Carlos Barreto) teve a ideia de fazer uma série documental. Daí comecei a me interessar muito pelo tema, que tem o sexo na escravidão, a globalização…
A escravidão contemporânea está ao nosso redor, mas por que a maioria parece não ver ou se importar?
São várias razões. As pessoas não querem ver, é negacionismo. Incomoda muito. É um problema do mundo inteiro, não só do Brasil. Aliás, somos um dos países, e essa série deixa bem claro, que mal ou bem, com idas e vindas, acabou atacando esse problema, começando no governo Fernando Henrique e continuando no governo Lula. Virou um ponto de referência.
Os personagens da série são o retrato da negação. Qual das negações mais chocou a equipe de produção?
No último episódio, tem uma mãe que vende a casa dela para mandar para o filho que está num golpe, como escravo sexual no Rio de Janeiro. Ela mandava mil reais por dia. Quer negação maior que essa? Ela achava que o filho dela ia ser um ator famoso.
O que falta para que exista na sociedade uma indignação moral contra a escravidão?
O buraco é muito mais embaixo. A escravidão é uma consequência da desigualdade. O problema está na má distribuição de riqueza. É claro que tem de reprimir, e isso é feito. Mas vai resolver a essência do problema? Não vai. A concentração de riqueza está cada vez mais exacerbada e coloca a democracia em risco.