As tintas do realismo fantástico colorem a obra-prima que é “O último jogo”, golaço de estreia do documentarista Roberto Studart na ficção, com uma livre adaptação de “O fantasista”, do chileno Hernán Rivera Letelier. O filme aborda de forma original a rivalidade entre brasileiros e argentinos no futebol.
Habilidosamente retratadas estão ali a malandragem, a catimba, a paixão, o delírio, o esporte enquanto arte, antes de certa mecanização, com a fabricação de ídolos em série e a transformação de tudo em mera questão de marketing.
Em uma cidade moveleira prestes a se tornar uma cidade fantasma, com o fechamento de sua única fábrica em operação, apesar do iminente desemprego e migração em massa, a única coisa que parece importar é uma partida de futebol que se realizará em uma semana, uma espécie de tira-teima da anunciada rivalidade.
Com direção de fotografia (Michel Gomes) e música (Julian Carando) impecáveis, mergulhamos num universo de fantasia e poesia, aquelas coisas que nos fisgam, despertam paixões e dispensam explicações.
“A lateral do campo está abarrotada de gente que assa sob esse sol escaldante, mas vale qualquer sacrifício para ver o último jogo entre esses rivais de uma vida inteira”, anuncia o picaresco Casemiro (Lúcio Tranchesi), o narrador barbudo, dono de metáforas inusitadas – “juiz com cara de tumor de ovário”, jogador “mais perigoso que o tétano”, “estendido na área como um tumor recém-operado”.
Expedito (Bruno Belarmino), o fantasista que dá título ao livro adaptado ao cinema, um andarilho que lida bem com a bola fazendo embaixadinhas, acaba se convertendo em uma espécie de salvador da pátria, a esperança dos habitantes de Belezura contra o selecionado de Guapa, as cidades brasileira e argentina envolvidas na contenda.
Há ainda uma sutil homenagem a Sócrates, ídolo da democracia corintiana, no personagem de Pedro Lamin, o jogador Califórnia, camisa 10, que chega a fumar em pleno jogo e mata o tempo escrevendo poesia e entornando aguardente.
A trama bem urdida (o diretor assina o roteiro com Ecila Pedroso), com seus quês de cômico e trágico (nada mais brasileiro), envolve intrigas, traições, corrupção e a magia do esporte que, se ainda visto por uns como ópio do povo, pode ajudar a entender e explicar um pouco do Brasil enquanto sociedade (não à toa o diretor desta ficção é, originalmente, documentarista, convém lembrar).
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