Gilberto Gil e Gal Costa fizeram um show “em Londres, para uma plateia de sortudos em 26 de novembro de 1971” – as aspas são do texto da contracapa do disco duplo que traz o registro da apresentação, lançado apenas em 2014, pelo selo Discobertas, graças aos esforços do pesquisador Marcelo Fróes.
Uma das músicas do repertório é “Sai do sereno”, de Onildo Almeida, a quem Gil se refere, ao fim do número, dirigindo-se em inglês à plateia, como “groove man”, referindo-se à peculiaridade da vasta obra do compositor pernambucano, dono de um balanço todo próprio, entre forrós, xotes, baiões, xaxados e toadas.
É dessa saudação de Gil que Helder Lopes e Cláudio Bezerra, extraem o título do documentário “Onildo Almeida groove man” [Brasil, 2017, 70 minutos], que remonta a trajetória artística de um nome fundamental para a cultura brasileira, que, como muitos de seus pares, é menos conhecido do que merece.
Autor de mais de 600 músicas, como ele mesmo contabiliza no filme, muita gente certamente já cantou ou assobiou temas como “Feira de Caruaru” (gravada por Luiz Gonzaga e Mestre Ambrósio, entre outros), “Hora do adeus” (parceria com Luiz Queiroga, também gravada por Gonzagão e citada por Caetano Veloso em “You don’t know me”) e “Morena bela” (parceria com Juarez Santiago, sucesso de Jackson do Pandeiro), entre outras.
O filme acompanha o passeio que Onildo Almeida faz até ir ao encontro de Gilberto Gil, no camarim de um show. Ele autografa para o ex-ministro da Cultura um exemplar de um livro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sobre a Feira de Caruaru, tombada pelo órgão – a publicação traz, entre fotografias e histórias, a letra de seu clássico. O compositor também conversa com o conterrâneo e colega de ofício Junio Barreto, a quem conta várias histórias deliciosas, e com quem divide alguns números, acompanhados por André Julião (sanfona) e Filipe Barros (violão).
Há uma inocente vaidade quando ele conta o porquê de Luiz Gonzaga nunca mais tê-lo gravado e no quanto colaborou para Marinês manter-se por 11 anos no topo das paradas de sucesso. Roda, para a produção, alguns vinis de sua coleção, incluindo a gravação de Agostinho dos Santos, com declamação de Maysa Matarazzo, de “Meu castigo”, contando a história da composição, uma de suas raras incursões pelo bolero.
A história de “O pracinha”, gravada por Jackson do Pandeiro, é curiosa: há tempos Onildo Almeida não via um colega com quem costumava jogar bola; o reencontro o marcou profundamente. Nego Tomaz, o nome do amigo, estava “aleijado” – é a expressão usada pelo compositor – visitando os amigos, pedindo uma ajuda. Havia sido mutilado numa guerra. “Eu tinha 18 anos/ quando a pátria me chamou/ era forte, bem disposto/ cheio de força e vigor/ vocês que tão me escutando/ vejam o que aconteceu/ o Brasil entrou na guerra/ e convocado, lá fui eu/ fui no meio de muitos filhos/ desta pátria tão querida/ pra lutar, morrer, vencer/ em terra desconhecida/ recebi com muita honra/ minha condecoração/ de uma guerra que ganhamos/ na Itália, do alemão/ fui pracinha brasileiro/ na Itália eu lutei/ derramei meu sangue vivo/ mas graças a Deus voltei”, diz a letra. “O Brasil tinha sido campeão mundial [em 1970] e cada jogador recebeu um carro e uma casa, enquanto o cara deu a vida. São essas injustiças que a gente como poeta tem um canal pra denunciar”, diz, consciente de seu papel.
Em 1985, Onildo Almeida esteve na plateia do primeiro Rock in Rio. Elba Ramalho era uma das atrações da primeira noite e foi vaiada por 150 mil pessoas durante 20 minutos, segundo suas contas. Ela segurou a onda e botou o público roqueiro para cantar “Baião” (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira). Inspirado pelo episódio e em outros convidados da edição pioneira do festival, ele compôs “Forrock”: “eu vi lá no Rock in Rio/ um grande desafio/ do rock com o forró/ eu vi o George Benson, James Taylor/ Nina Hagen, Rod Stewart e um tal de Al Jarreau/ mas vi também do meu Nordeste/ três cabras da peste/ cantando pra valer:/ Moraes Moreira, Elba e Alceu/ o forró comeu/ com o rock se misturou”, diz um trecho da letra.
As cerca de 640 composições de Onildo Almeida, “todas elas contam um fato”, como ele revela ao barbeiro que há tempos cuida de seu visual. Alguns destes estão contados em “Onildo Almeida groove man”, que inaugurou ontem o Ocupa Cinema, temporada de sessões gratuitas e online do Centro Cultural Vale Maranhão, transmitidas sempre às sextas-feiras, às 19h, pelo canal do CCVM no youtube.
*
Veja o trailer de “Onildo Almeida groove man”: