À frente de boa parte das atividades humanas (levemente em desvantagem principalmente em relação ao cinema), o futebol é uma grande construção dramática simbólica.

O futebol argentino tinha se firmado, até a Copa de 1978, como uma contribuição de força e persistência que não se conformava jamais com a derrota, mesmo quando ela era irreversível. Também não hesitava em apelar para a trucagem, mesmo que grosseira, o que lhe dava leve peso de apelação extrajudicial.

Maradona chegou para mudar tudo isso. Pequeno e insolente, imprevisível e instável, ele mostrou ao futebol argentino como jogar com um favoritismo inato, com a crescente empáfia da possibilidade de vencer.

Lembro que o vi em campo pela primeira vez no jogo em que a Argentina perdeu para a seleção de Telê, em 1982. Ele era muito jovem e inconformado e foi expulso por entrada desleal justamente em Batista, nosso homem de choque. Não conseguia acreditar naquele nível de insubordinação num homem ainda tão inacabado, aquela pequena promessa de vingança sendo retirada de campo em meio a pragas rogadas às claras.

Depois, ele foi consolidando sua presença como se sempre tivesse existido, como se nada tivesse havido antes dele abaixo dos pampas. Colou a bola no pé de forma sobrenatural num dos dribles com gol mais fantásticos da mitologia do fut, no 2 a 1 contra a Inglaterra, na Copa de 1986. No território da vendetta, transformou um gol ilegal, com a mão, em uma revanche temporã contra a Inglaterra colonialista das Malvinas. La mano de Dios.

Sinto até hoje a sensação de orfandade com que ele deixou todo o Brasil em 1990, na Itália.
Marcado ostensivamente em todo o campo, Maradona estava cercado por quatro jogadores (não lembro se eram Alemão, Dunga, Branco e Ricardo Gomes, corrijam-me os experts). Atraiu todos para um córner inexistente do campo, uma armadilha que inventou na hora, e desvencilhou-se deles já sabendo onde localizar Caniggia, o centroavante, que fez o gol e matou o jogo, eliminando o Brasil.

Maradona, num universo dominado pela falsa isenção de Deus ou pela pura e simples dedicação canina aos próceres do poder, resolveu ser dono do próprio nariz. Um acinte. Abraçou os destroços da revolução cubana, o truco bolivariano, a mística peronista, e desafinou o coro dos razoáveis e pragmáticos da política e da vida pública. Sua existência confirmava ruidosamente, a todo momento, a existência daquilo que era estrategicamente negado pelo hemisfério norte: a América Latina.

De quebra, Maradona deu um nó na cabeça da moralidade de botequim, que pensa ter o futebol e a virtude como reféns, e expôs publicamente seus excessos como um rock star de filme do Alan Parker. Atirou com espingarda de chumbinho em plantonistas de tabloides e marcou posição como uma antítese das estátuas vivas, como Pelé.

Ouso cravar que Maradona foi quem possibilitou a utopia de Messi, a anarquia física de Romário, a força antigravitacional de Marcelinho Carioca, a visão de satélite de Hagi e a aguda precisão de Juninho Pernambucano. E é possível, quem sabe, que ele mesmo tenha sido um discípulo apenas de Rivellino, grande dançarino antes dele a transformar deficiências em qualidades.

Sua crença na religião bocajuniors também o projeta como um ídolo diferente, atavicamente ligado ao princípio de tudo, preparado para juntar-se aos hinchas na glória e na ruína, na negação e na afirmação. Seus fracassos são tão estrepitosos quanto suas vitórias, como foi quando da passagem-relâmpago como treinador da sua própria criação, a seleção argentina.

Mesmo sozinho, cercado e fustigado, Maradona nunca nos deixou sozinhos. Quando surgia, criava instantaneamente a sensação de multidão, mesmo de longe. É muita trapaça do destino que tenha morrido com apenas 60 anos.

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