O novo álbum do artista e antropólogo André Toral revisita a saga antropofágica do Brasil
Como se fosse resultado de um cruzamento entre Hans Staden e Darcy Ribeiro, o álbum em quadrinhos A Alma Que Caiu do Corpo (Veneta Editora, 2020), de André Toral, faz um mergulho em temas da história indígena brasileira que são raramente encontrados em trabalhos de ficção. A explicação vem rápido: o quadrinista Toral é antropólogo e indigenista, trabalhou por 30 anos com grupos indígenas brasileiros e é doutor em História pela Universidade de São Paulo.
Isso dito assim pode sugerir que A Alma Que Caiu do Corpo vai se revelar um trabalho tecnocrático, profundamente ligado a questões de correção histórica e antropológica, mas é principalmente um notável trabalho gráfico. Veterano das HQs, Toral publica desde os anos 1980, quando fez seu primeiro álbum, O Negócio do Sertão (Editora Dealer, 1992). Mas a reputação cimentou mesmo com Adeus, Chamigo Brasileiro – Uma História da Guerra do Paraguai, em 1999, pela editora Companhia das Letras. De lá para cá, fez mais dois álbuns clássicos: Os Brasileiros (Conrad, 2009) e Holandeses (Veneta, 2017).
Parte do material que Toral utiliza nas nove histórias desse novo álbum tem origens em álbuns anteriores, mas com texto e desenhos “atualizados”. A violência do contato entre indígenas e não-indígenas é o elemento comum, mas além do elemento épico (a descrição da vitória de Kremur e os 223 Caiapó contra os paulistas é um episódio gigante, à semelhança de Touro Sentado contra Custer), há também outras narrativas: rituais, sociais, xamânicas, místicas, éticas. O clima de sanguinolenta deterioração moral (que passa pelas observações sanitárias) é por vezes chocante.
Em Holandeses (Veneta, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti de 2018, a astúcia metalinguística de Toral consistia no seguinte: ele examinava a presença holandesa no Nordeste brasileiro a partir da história de dois irmãos gêmeos, Cástor e Esaú, judeus aventureiros, e como um deles era artista, Cástor, que tinha trabalhado no ateliê de Rembrandt em Amsterdã, Toral pontuava toda a história com desenhos ou apontamentos do próprio personagem.
Neste novo trabalho, ele inicia um estudo que encontra na mestiçagem o elo mais frequente, contando as histórias como se oferecesse elementos para a compreensão do que foi a construção cultural do Brasil. Essas “pistas” estão nos rostos dos personagens, que vão se tornando híbridos conforme os séculos avançam, assim como seus apetrechos, sua ética, sua compreensão do mundo que vai se fundindo com a do colonizador. É um canibalismo sem fim, a antropofagia que prossegue moldando o País que ainda está em construção ali adiante.
A Alma Que Caiu do Corpo. De André Toral. Veneta Editora, 104 págs., 60 reais