O maranhense “A carroça é nossa” será exibido na edição do festival do Itaú Cultural dedicado às artes cênicas. Farofafá conversou com exclusividade com o elenco
O espetáculo “A carroça é nossa”, do grupo Xama Teatro, é um hit da produção teatral maranhense. Premiado em edital da Fundação Nacional de Artes (Funarte), quando o Brasil tinha um Ministério da Cultura, a peça circulou por todo o Brasil, incluindo diversas regiões do Maranhão – a alguns lugares chegou tornando-se o primeiro contato do público com um espetáculo teatral.
Entre 2005 e 2012 a peça foi encenada como na Commedia dell’arte, seguindo um roteiro, mas permitindo improvisos aos atores.
“Esse texto [da versão que será exibida no Arte como Respiro – Edição Cênicas], na real, é de 2012, quando o espetáculo foi aprovado pelo edital Artes na Rua, da Funarte. De 2005 até 2012 não tinha um texto formal, “A carroça” era um roteiro, que nem as peças Commedia dell’arte, que tem os números, a gente tinha os números, um roteiro, não tinha um texto pré-definido, então a gente jogava com isso, meio improvisado, até; claro que a gente tinha o roteiro, sabia o que entrava, o que saía, a sequência, mas não tinha o texto formalizado, não tinha personagens bem definidos. Ainda assim, em 2011, a gente viajou pro Festival de Teatro de Rua em Porto Velho e nesse festival o espetáculo recebeu muito retorno, muitas críticas positivas e também críticas negativas, entre aspas, mas que na verdade nos impulsionaram muito, fizeram que a gente reinventasse o espetáculo. Em 2012, quando a gente ganhou esse edital, ainda com o formato antigo, a gente optou por reformular o espetáculo; aí o Lauande criou um texto, esses personagens são baseados no que a gente fazia antes, n“A carroça”, em 2005, mas eles são bem delineados, têm características nossas, como atores, aí o texto já ficou todo formalizadinho, mais fechadinho mesmo, como um texto teatral”, explica a atriz Renata Figueiredo.
“A nossa proposta inicial com esse projeto Arte como respiro era realmente a gente exibir o vídeo e fazer um debate, socializando com a galera as nossas impressões e experiências. “A carroça” foi um espetáculo que mudou com o tempo, a gente viajou para vários lugares, viajou o Brasil inteiro, a gente fez duas turnês bem importantes pelo Maranhão, por regiões quilombolas, por regiões que nunca tinham visto teatro. Essa ação, onde a gente faria esse debate, foi cortada do projeto, então agora vai ser só a exibição, mas de qualquer forma, o fato de o espetáculo estar sendo exibido na internet e de isso chegar às pessoas como uma ação do Itaú Cultural pode suscitar esse desdobramento em forma de discussão, de uma forma espontânea, não necessariamente ligado ao projeto”, continua.
“Eu sinto que esse grande momento histórico que a gente está passando hoje no planeta já me atravessou de diversas maneiras. Eu iniciei a pandemia finalizando um mestrado [em Estudos Contemporâneos das Artes, na Universidade Federal Fluminense], atravessando um processo de finalização de curso encerrando um ciclo, vindo pra São Luís, pra estar com minha família, para ajudar nos processos com a minha mãe. Acho que esse retorno para minha cidade, embora eu não tenha saído, estou saindo muito pouco, para o trabalho, quando vou para o estúdio, esse processo foi muito interessante por que eu mergulhei em mim, eu não fugi de mim nesse momento de pandemia; eu me deparei comigo mesmo, com minha solidão neste processo e isso tem sido muito transformador. Eu tenho sido acompanhada por processos terapêuticos, de meditação, e eles têm me ajudado a conduzir esse processo com os pés no chão. É um momento extremamente delicado para a classe artística; eu, por exemplo, parei total minha produção no sentido de produção que recebe grana; estou num momento de extrema produção criativa, fazendo processos para a internet e fazendo processos pessoais que não dependem da apresentação nesse momento para as pessoas, mas me tornou um ser com possibilidades de criar muito grande, então eu sou também, hoje, atravessada por um olhar de criatividade muito intenso, seja no campo de criar músicas, seja na possibilidade de fazer lives como cantora ou como contadora de histórias. Eu tenho aproveitado bastante o tempo para criar”, revela a também atriz Cris Campos.
“A classe artística foi uma das mais afetadas e continua sendo. Vários setores da economia nacional já retornaram, mas esse setor, que faz parte da economia criativa, que são as artes cênicas, ainda não retornou, e tem sido ainda tratado com bastante descaso, tanto pelo poder público quanto por diversas instituições, que podem inclusive promover políticas e apoios para esse tipo de arte, que realmente precisa da presença do público. Quando a gente foi selecionado no Itaú Cultural, logo no começo da pandemia, foi realmente um respiro. Nós temos um grupo em que muitas pessoas dependem do seu fazer artístico; não é o meu caso; eu sou professora universitária e não tive meu salário afetado pela crise; porém, as pessoas que compõem o grupo tiveram, e esse edital foi um respiro para essas pessoas, para que realmente cobrisse coisa básica, como o supermercado, aluguel, foi um valor pequeno, que teve que ser dividido para outras pessoas do grupo; é um valor pequeno, mas é um respiro. É um edital que premiou menos de 12% do total de inscritos; a demanda é muito grande; a gente precisa de políticas que acolham e que sustentem esses artistas, por que eles precisam se manter”, comenta a atriz Gisele Vasconcelos.
“Eu já chorei muito, já ri muito, já experimentei as dores e as delícias daquilo que a gente vive hoje no planeta, em relação tanto ao coronavírus e àquilo que a gente vive no nosso país em relação ao nosso governo, aos desmandos, aos destratos que a nossa classe artística tem; eu já vivi e sobrevivi de muitas maneiras; acredito que estou bem, que as possibilidades de hibridização das artes só retornam ao seu lugar original de ritual e a um olhar não eurocêntrico, não hegemonicamente centrado no sentido de que as artes são separadas por linguagens. Cada vez mais que eu pesquiso o fazer do Xama Teatro, ou do Grupo Afrôs [de que ela também é integrante], ou do próprio fazer no meu corpo, eu percebo que a transversalização de linguagens é apenas um termo em detrimento a tudo aquilo que a arte é nesse planeta e quando a gente retorna, por exemplo, a uma tradição griô africana, essas diferenças de linguagem elas nem existem. O griô é o recitador, o curandeiro, o artista que canta, o artista que narra, o artista que tem a arte da palavra aplicando para um método de cura ou de resguardar saberes do seu povo e é cada vez mais nesse sentido em que eu acredito que elas só estão retornando à sua fonte ritual de ser”, pontua Cris Campos.
Gisele Vasconcelos revela as adaptações por que o teatro em geral tem passado em tempos de pandemia. “Quando a pandemia começou a gente teve que refazer todo nosso processo de criação; eu estou em um processo de criação desde setembro, que é a montagem do espetáculo “A vagabunda” [com campanha de financiamento coletivo aberta]. A gente tem pensado muito em que formato vai ser esse espetáculo. Hoje o teatro tem pensado muito em como vai ser esse teatro pós-pandêmico; é um vírus que afasta pessoas, que quanto mais longe, mais seguro, e o teatro, principalmente nós do Xama Teatro, trabalha com uma proximidade muito grande de palco e plateia; todos os nossos espetáculos são muito íntimos, então esse a gente já está pensando num formato para palco mesmo, palco do [Teatro] Arthur Azevedo, sabe?, onde a gente pode fazer um trabalho com mais segurança; mas o Arthur Azevedo está fechado, então a gente ainda não pode apresentar presencial; isso mudou totalmente o modo de criação do espetáculo. Então, um espetáculo que era para ser feito com mais pessoas no palco, hoje sou eu no palco, embora a equipe esteja muito grande, a gente está trabalhando com uma equipe de mais de 22 pessoas, ainda de forma remota; a gente grava as cenas, grava o texto e se reúne, toda segunda, com a equipe de dramaturgia, de forma remota, mostrando o vídeo e tudo; me reúno toda quarta com a iluminadora, toda quinta com o figurinista, toda terça e quinta com o preparador vocal, isso tudo de forma remota, usando os aplicativos de redes sociais e mídias; então a gente criou esse formato e esse formato permitiu ainda reunir mais pessoas. O trabalho de gravação, com uma banda só de mulheres, a gente manda as guias, as partituras, e quando elas entram no estúdio, entra uma de cada vez e até aí a gente consegue cumprir as medidas de isolamento. Se o teatro for online a gente precisa criar uma nova estética; eu, por exemplo, não gosto do teatro filmado”, comenta.
“Nós fazemos teatro porque acreditamos no contato, na troca, e na construção de saberes, imagens e sensações que se constroem entre duas partes uma única vez. Esse momento mágico tem assegurado a sobrevivência do teatro ao longo de milênios e acredito que seu fim não será dessa vez. O atual momento impulsionou uma série de ferramentas que apontam outras formas de construção de uma cena. Há quem aposte que essa será a nova tônica à qual os “teatreiros” deverão se adaptar. Não me vejo assim. Acho muito importante a iniciativa do Arte como Respiro, mas apenas como respiro. Um sopro de vida, de esperança, de acolhimento, de valorização com uma arte tão importante. Mas não vejo bites e pixels como substitutos dessa estreita relação que se estabelece”, pontua Lauande Aires.
Gisele pondera: “é interessante por que foi o início d“A carroça”, foi em 2012, o início desse formato, dentro de uma comunidade, pessoas que não têm acesso à cultura teatral; tudo isso traz uma questão que a gente trabalha muito no Xama, que é a memória, a tradição e a oralidade. A nossa proposta era que depois do vídeo a gente abrisse para um diálogo; era a proposta aprovada, mas o Itaú Cultural teve uma demanda muito grande; como eu falei, poucas instituições estavam apoiando e estão apoiando a cultura, e o Itaú Cultural é uma das poucas, então recebeu uma demanda muito grande e seu espaço ficou reduzido e acabou cortando nosso debate, então o público vai apenas apreciar uma filmagem do espetáculo, que foi feita na comunidade do Renascer, uma comunidade rural aqui da grande ilha”.
Cris Campos revela a própria felicidade com o Xama representando o Maranhão no Festival Arte como Respiro – Edição Cênicas. “É uma companhia que circula e inspira outras companhias e artistas, assim como nós fomos inspirados por outras companhias e artistas. São muitos anos que a gente está nessa jornada, se inscrevendo em editais, isso é fruto de nossa trajetória, de nosso currículo, de tudo aquilo que a gente já fez, seja em termos de arte, pesquisa, educação. Aliar todos esses saberes na prática do Xama Teatro é um caminho que traz muita felicidade pra gente. É uma linda representação o espetáculo “A carroça é nossa”, que fala tanto das tradições do Maranhão, mas não necessariamente num sentido somente da cultura popular, sendo que a cultura popular já é um caminho riquíssimo e maravilhoso de se mostrar, mas a partir desse olhar desses brincantes, Joaninha [ela], Pedoca [Lauande Aires], Toinha [Gisele Vasconcelos] e Cecé [Renata Figueiredo], que são os integrantes da carroça, a gente através desses brincantes da cultura popular, a gente fala de chão, de Maranhão, de partilha, de compartilhar, de família, de amor, de pertencimento, de como acolher uns aos outros numa jornada de vida, então é um espetáculo que sobretudo fala do amor; eu acho que semear amorosidade nos tempos de hoje… ah, é lindo demais, e eu me sinto tão feliz, agraciada, abençoada em fazer parte disso, que sou só suspiros, muita gratidão mesmo”.
Gisele Vasconcelos resume a questão: “Teatro é pele, teatro é ao vivo, teatro é presença, teatro precisa do outro e da outra, junto, próximo, olho no olho. A gente está tendo que olhar uma câmera, a gente está tendo que olhar um celular e isso altera formato, mas nem por isso a gente não vai fazer. A gente vai olhar para essa câmera, a gente vai olhar para esse celular e a gente vai continuar fazendo, por que nós somos artistas e nós não podemos parar de criar, por que isso nos mantêm vivos, com saúde e mantêm os outros também vivos e com saúde, por que arte é muito importante para todas as pessoas, tanto para quem faz quanto para quem consome”, finaliza.