Uma colaboração tardia ao debate saudável
Uma busca simples pelo termo “prato e faca” na seção instrumento do site Discos do Brasil – heroicamente mantido pela pesquisadora Maria Luiza Kfouri – aponta para 55 discos com a presença do instrumento musical em ao menos uma faixa. Obviamente não estão lá todos os discos que o contêm – o site é baseado na discoteca particular de sua autora, iniciada em 1965, quando ela contava apenas 11 anos de idade e é um recorte possível, entre tantos, sobre a riqueza e a diversidade da música popular brasileira.
Digo isto tão somente para entrar no debate acerca do erro em que incorreu a revista Rolling Stone Brasil, hoje em dia com edição apenas virtual, especializada na cobertura musical. Um texto publicado no site do veículo afirmava algo como Moreno Veloso, o primogênito de Caetano, ter usado o prato e faca para tirar um som diante da falta de instrumentos musicais – cabe lembrar que ele tocou violão, pandeiro e folhas de lixa ao longo da live que o pai fez no dia de seu aniversário de 78 anos, sexta-feira passada (7), com transmissão pelo Globoplay.
O texto não estava assinado e tão logo a coisa virou meme, piada, polêmica, debate e um misto de tudo isso nas redes sociais, a revista inicialmente transformou o top 6 que destacava alguns momentos da histórica live do antigo compositor baiano – acompanhado de sua prole: além de Moreno, Zeca e Tom –, em um top 5; posteriormente o texto foi apagado. A Folha de S. Paulo também errou e cravou “talher” num texto (editado depois), também não assinado.
Até mesmo a enciclopédia colaborativa virtual Wikipedia registra o prato e faca como instrumento musical, destacando seu uso majoritário no samba, em especial o do Recôncavo Baiano, mas depois apropriado pelo samba urbano no Rio de Janeiro. A coisa não para por aí: Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Mariana Aydar, Zeca Baleiro e Zélia Duncan – artistas não comumente identificados diretamente com o universo sambista, já cantaram faixas com o acompanhamento, além, é claro, de nomes diretamente afeitos à área, como Cristina Buarque (cujo disco de 1976 chama-se justamente “Prato e faca”), Zeca Pagodinho, Argemiro Patrocínio e a Velha Guarda da Portela.
Tivesse o/a autor/a do texto buscado uns vídeos de “Ofertório” (2018), o disco que Caetano gravou com os herdeiros, poderia perceber que há ao menos dois ou três anos o músico sofre com a falta de instrumentos musicais. Mas o uso de prato e faca não começou ontem: gravações de Pixinguinha de entre as décadas de 1920 e 30 já contavam com o aparato percussivo, isto para ficarmos no campo do registro fonográfico, pois a tradição vem de muito antes.
Em 2003, Dona Edith do Prato (1916-2009) (um doce a quem adivinhar o porquê do sobrenome artístico) lançou o ótimo “Vozes da purificação” (Biscoito Fino), com as bênçãos de Maria Bethânia, Kati Almeida Braga, J. Velloso e Caetano Veloso, entre produção, participações especiais e fornecimento de repertório – embora grande parte dos temas ali registrados seja de domínio público. Era então uma lenda viva do instrumento e o merecido registro fez jus a seu legado.
30 anos antes, ela havia participado do mítico “Araçá azul” (1973), de Caetano Veloso. A também santo-amarense cantava e tocava prato e faca em “Viola, meu bem” (que abre o disco) e em “Sugar cane fields forever”, a cuja letra de Caetano entremeiam-se diversos temas de domínio público das rodas de samba do Recôncavo.
No disco, gravado antes do nascimento de seu primogênito, o compositor registra a faixa “Júlia/Moreno”, de letra concreta. Num tempo em que exames de ultrassonografia não eram algo tão comum, Caetano não sabia se Dedé Gadelha, sua então esposa, esperava um menino ou menina. Não deve ser à toa que Moreno Veloso tenha se tornado um dos mais importantes e requisitados multi-instrumentistas do país, com seu nome em fichas técnicas de discos de artistas como Adriana Calcanhotto, Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Gal Costa, Gilberto Gil, Jorge Mautner, Maria Bethânia, Mariana Aydar, Orquestra Imperial, Roberta Sá e Serena Assumpção, para citar apenas uns poucos, além de seu próprio trabalho solo e com o trio Moreno + 2, ao lado de vários instrumentos musicais: contrabaixo, guitarra, pandeiro, surdo, trompete, violão tenor, violão e violoncelo. Sem falar no prato e faca.
*ZEMA RIBEIRO é jornalista e eventualmente (exceto em tempos de pandemia) toca prato e faca nas rodas de samba improvisadas na porta do Botequim da Tralha ou, em companhia de sua prima Stephanie (e de umas geladas), na cozinha da casa de dona Solange.
No minimo delicioso esse texto cheio de delícias textuais!!! De dar água na boca e comer com as mãos, na falta de outros instrumentos musicais.
Como diria o saudoso Cristóvão Alô Brasil: palavras que me comovem. Obrigado, mestre!
Registre-se ainda o samba de enredo da Mangueira de 2017, com os versos:
A minha escola de vida é um botequim
Como prato e faça eu faço meu tamborim
Firmo na palma da mão, cantando lalalaiá
Sou mestre-sala na arte de improvisar
Bem lembrado!