O médico e o moço

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Bulgákov, em Anotações de um jovem médico – e outras narrativas, da editora 34, fez uma radiografia da Rússia sub revolucionária

 

O ucraniano Mikhail Bulgákov (1891-1940) escreveu um livro que poderia ser descrito, grosseiramente, como o diário do Mais Médicos da Rússia revolucionária. Um jovem clínico, Bomgard, é enviado para ser o médico de um posto avançado na província, em Gorielovo, um lugar cercado de neve onde se chega apenas de trenó ou cavalo, após longa jornada de trem.
Partos emergenciais, hérnia, amputações, malária, sífilis, alcoolismo, males limítrofes entre o gástrico e o psiquiátrico: Bomgard, de espírito cosmopolita, enfrenta tudo isso e nada lhe faz mais falta do que a eletricidade da metrópole, o teatro, a féerie de Moscou. Anotações de umjovem médico – e outras narrativas (Editora 34) é um exemplar da literatura construída a partir de um alter ego – o autor, Bulgákov, era um jovem médico recém-formado em 1917 quando foi enviado ao povoado de Nikólskoie, a cerca de 250 quilômetros de Moscou. Em um ano, estima-se que tenha atendido 15.631 pacientes.
A dupla militância, entre o escritor e o médico, forma a matéria-prima mais rica que Bulgákov explora nas histórias que enfileira cronologicamente no livro. Mas é no capítulo Morfina que a narrativa assoma, se torna praticamente um nervo exposto. A dependência que o médico que substitui Bomgard no posto avançado, Poliakov, desenvolve da substância morphinum hydrochloricum é a narrativa da dependência do próprio Bulgákov, meio século adiante das experiências de William Burroughs, por exemplo, com a heroína e o peyote.
Enquanto descreve os estados de espírito, as visões e as deformidades existenciais de se ver
sob o domínio do vício, Bulgákov vai pontuando a narrativa com apontamentos até displicentes,
submetendo a contextualização histórica à social, privilegiando personagens subrevolucionários. “Ouve-se rumores de algo grandioso. Parece que derrubaram Nicolau II.”
No início embriagado pela descoberta de que as aplicações de morfina o armavam de uma sensibilidade extraordinária, Poliakov vai desenvolvendo aos poucos os sintomas do terrível sequestro da razão, ficando paranoico, violento, pouco confiável, degenerado, perdendo o orgulho e o amor próprio.
O que Bulgákov expõe, com um senso de rara modernidade, é o efeito humanístico do
conhecimento das pessoas em situação de vulnerabilidade. Bomgard não sabe o que fazer
com tanta informação sobre o ser humano, ele mesmo parece não ter tido nunca intenção de
ter ido tão longe, mas não há o que fazer a respeito. Afora isso, o texto literário é rico de um humor falsamente acidental (como uma paciente extasiada por uma overdose de beladona), capaz de inebriar o leitor de primeira viagem nesse veio particular. Bulgákov morreu em 1940, em Moscou, e seu último romance, O mestre e Margarida, também está sendo lançado pela Editora 34 este mês, com tradução de Irineu Franco Perpétuo.

 

 

Anotações de um jovem médico – e outras narrativas. Mikhail Bulgákov. Tradução de Érika
Batista. Editora 34, 216 páginas, 54 reais
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