Aldir Blanc foi parceiro de muitos, mas com João Bosco e Guinga, sobretudo, foi partidário do samba e da liberdade, deixou um legado imenso em letras, cuja beleza é aqui lembrada pelo compositor paulistano Eduardo Gudin.
No dia em que Aldir Blanc morreu, Gudin disse que sentiu um vazio parecido com a morte de Adoniran Barbosa. Samba é samba, do Rio ou de São Paulo, não existe bairrismo para quem sente a música com o coração. Da sensação estranha, Gudin tirou ardor para versos novos em homenagem ao seu parceiro em três canções. O paulistano que frequentou muitas vezes o Rio de Janeiro relembra também amizades e encontros que teve.
Com olhar e ouvidos apurados e atentos, Gudin comenta poeticamente a obra e a partida do colega carioca. João Bosco, Guinga, Moacyr Luz e tantos outros choraram essa perda de um ponto de vista mais próximo em amizade que os de Gudin, mas ele descreve seu lamento pelo fim de mais uma voz da poesia em meio a tantas vítimas de coronavírus. Aldir, como letrista profissional, é “um dos maiores da sua geração”, sentencia.
Em entrevista, o compositor conta e canta o que lhe bate forte à mente ao falar da obra de Aldir: o “roncou, roncou, roncou de raiva” em “O Ronco da Cuíca”; “no dedo um falso brilhante, brincos iguais ao colar” em “Dois pra Lá, Dois pra Cá”; “onde tantos iguais se reúnem e contando mentiras ra poder suportar” em “O Rancho da Goiabada”. Fazia esses e milhares mais com “naturalidade” e o “dom” que ele tinha.
(Colaboraram Aloisio Milani, Malila Ohki e Luis Fernando Massoneto.)
Pergunta: Aldir escreveu e cantou a vida, o amor, o tempo. Agora é mais uma das vozes que se cala…
Eduardo Gudin: Estou com uma sensação que só tive uma vez, quando o Adoniran Barbosa morreu. Diferente do Aldir, com o qual não tinha um contato muito cotidiano, eu era muito amigo do Adoniran. Quando ele morreu eu não entendi bem aquilo. Fiz hoje a terceira estrofe de uma música e mandei para a Fatima Guedes. Mas é sobre essa cuíca do Aldir em “O Ronco da Cuíca”. Ele podia colocar apenas “a cuíca roncou”. Mas ele coloca: “Roncou, roncou/ roncou de raiva a cuíca, roncou de fome/ alguém mandou / mandou parar a cuíca é coisa dos home”. Aí eu fiz esse trecho, que você pode publicar. É minha homenagem ao Aldir: “Brasileiro como eu/ tem seu jeito de lutar/ é a hora de escutar/ o ronco da cuíca/ e a coisa modifica/ e esse samba vai fluir/ cantado pelos versos do Aldir”.
P: Você lançou no disco O Ensaio do Dia uma das parcerias com o Aldir. Como foi esse trabalho?
EG: Essa foi a segunda música nossa. Na realidade, nós fizemos três juntos. E essa foi a segunda, uma parceria mista com Elton Medeiros, Aldir Blanc e eu. Fiz a melodia da primeira parte, o Elton fez a melodia da segunda e o Aldir fez a letra. É um disco de 1983, Elton cantou comigo.
P: “Desclassificada” também você fez com Elton e Aldir. Conta um pouco dessa composição.
EG: Eu sempre quis fazer música com o Aldir. Essa música em específico tem uma coisa mais distante. Liguei para o Aldir e falei: “Olha, eu vou fazer um disco novo, fiz uma música com o Elton Medeiros que eu queria te dar para fazer a letra”. Foi muito simples fazer essa música, por exemplo. Ele escreveu a letra, tudo por telefone. E ele é um gênio. Essa parte profissional e pessoal com o Aldir foi distante para mim. Eu em São Paulo, o Aldir no Rio. Eu muito voltado para as coisas daqui e ele muito fechado lá no Rio. E até por minha causa mesmo. Não tinha uma intenção de virar um parceiro do Aldir, era uma vontade de fazer uma coisa junto, sabe? Eu tinha um respeito grande pela parceria dele com o João Bosco. E depois o Guinga foi outro parceiro dele. Mas, depois de “Desclassificada”, fiz uma com ele que é inédita, que eu guardei. Encontrei-o algumas vezes, sempre com muita admiração. A última vez que eu o encontrei, acho, foi no Bar do Alemão no lançamento do livro dele.
P: E, na sua visão, como é essa habilidade de letrista que o Aldir tinha? De colocar a dor no pé com um band-aid em “Dois pra lá, Dois pra Cá” ou a tarde que caía como um viaduto (menção à queda do Viaduto Paulo de Frontim) em “O Bêbado e a Equilibrista”…
EG: É coisa de compositor. Sempre acho muito interessante como é que a pessoa consegue juntar a letra na música. O que ele vai dizer para mim até o segundo plano, a junção. E se puder achar uma coisa simples, como falar “no Abaeté tem uma lagoa escura”, como o Dorival Caymmi fez, ou “só dança o samba, só dança o samba/ vai”, como Vinicius de Moraes escreveu. A gente lê a letra e vai achando que não é nada, mas, quando junta, aquilo gruda na melodia. Para mim, isso é o primeiro ponto. Tenho muita dificuldade quando as pessoas falam do trabalho de alguém, de letrista ou de músico, se a pessoa analisa a letra como se estivesse lendo um livro ou uma crônica. Não é isso. A letra tem melodia, a primeira coisa é se unir à melodia, ela dá vida à melodia. Esse é o dom do Aldir Blanc. A pessoa tem esse dom e é uma coisa muito natural. O Aldir tinha isso e sempre me fascinou. Mas até de ficar espantado, sabe? Ele conseguia em um limite de escrever coisas quase que insólitas, como um band-aid no calcanhar (“Dois pra Lá, Dois pra Cá”), ou os faraós embalsamados (“O Rancho da Goiabada“), e tudo isso dá certo na melodia. E ele conseguiu extrapolar essa habilidade para coisas que aparentemente não ficariam boas em uma música, não ficariam boas de cantar. Ele tinha um dom que levou às últimas consequências. Aí, sim, você entra na crônica, no que ele disse. É tudo muito mais difícil, ele usa palavras e situações inusitadas. Ele encontra aquilo, põe na música e fica bom de cantar. É um milagre.
P: Você citou “O Rancho da Goiabada”. A música começa com uma estrutura de rancho e, ao mesmo tempo, não é bem assim. Ele vai tratando o universo rural, os boias-frias, e, de repente, o boia-fria está sonhando com batata frita, bife a cavalo. E logo está em um universo urbano. A letra vai para um caminho totalmente diferente de um senso comum esperado. E, depois, vira uma metáfora congelada diante dos faraós embalsamados. Isso é uma alegoria, não é?
EG: Isso é muito difícil. Tem que ter genialidade, porque essa melodia (gravada no disco Galos de Briga, de João Bosco) é uma marcha, um arranjo do Radamés Gnattali, com orquestra. Tudo é típico de uma grande marcha na maneira de tocar. O Aldir põe aquela letra com o jeito da marcha-rancho e vai incluindo, sim, alegorias e personagens que normalmente não caberiam ali. E ele consegue. É impressionante, é encantador. Ele brinca com as metáforas, com a mensagem. Aquele verso que “caía a tarde feito um viaduto” (em “O Bêbado e a Equilibrista”), depois ele fala “a volta do irmão do Henfil“. Podia falar do Betinho, mas não, é “a volta do irmão do Henfil”. É uma arte muito complicada a de letrista, e ele levou isso às últimas consequências. E, depois de tudo que fez com o João Bosco, ainda fez muito trabalho com o Guinga. Ele vai lá, pega um choro, um baião, uma canção e vai fazendo aquelas histórias.
P: Essas palavras que aparecem do meio das letras do Aldir são prodigiosas. Tem um samba “Ainda Mais”, seu e do Paulinho da Viola, que aparece o “viu”…
EG: Ainda bem que você reparou. É que o Paulo é uma pessoa de muito poucos parceiros, ele é autossuficiente. Ele faz tudo, melodia, letra, toca muito bem violão, é completo. Tive essa alegria de ele me considerar um parceiro, a gente está sempre, uma hora ou outra faz uma música. Quando ele me deu a letra ele mesmo se espantou com esse “viu” que tem na música: “Uma desilusão assim/ faz a gente perder a fé/ e ninguém é feliz, viu?/ se o amor não lhe quer”. E aí ele perguntou: “Você acha que esse ‘viu’ não está muito Vinicius de Morais?”. E eu falei: “Ainda bem. Pode deixar”. O Paulo é um advogado do diabo quando ele faz letra, ele se exige demais. Ele vai testar, vai tentar mudar, luta muito com ele mesmo para chegar no ponto certo.
P: No dia seguinte da morte do Aldir, eu estava vendo a cena de um guarda municipal do Rio tocando “O Bêbado e a Equilibrista”. É uma cena muito bonita quando o compositor entra nessa simbiose com a cidade. E não é o Rio da Zona Sul, não é o Rio da Bossa Nova, é um outro Rio…
EG: Sim. Aldir quer ter uma coisa mais do subúrbio. Ele fez uma música meio política. É o tratamento que ele deu, isso é uma glória do compositor. Aldir e João Bosco é uma coisa muito forte. “O Bêbado e a Equilibrista” faz parte do cancioneiro brasileiro. É uma perfeição. É tudo que um compositor pode querer. É a música para fazer parte do cancioneiro do Rio de Janeiro. Em vez de tocar a marchinha “Cidade Maravilhosa”, toca essa música. A perda do Aldir fez um dia muito difícil. Confesso que me deu muita dor de não ter me aproximado mais dele. Eu faço um curso de composição popular no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, aqui na Avenida Nove de Julho, que, agora, por motivos óbvios, está suspenso. E sempre levo compositores para explicar o seu processo, e é impressionante como eles queriam ir dividir isso. São três horas direto de uma pessoa explicando como faz música. Com uma simples ajuda de custo, o Ivan Lins veio, o Toquinho quis ir também. O Paulo César Pinheiro, que não sai de casa, falou: “Eu vou só para isso”. E veio para São Paulo. Foi maravilhoso ouvir explicar. Quis muito trazer o Aldir, mas aí um amigo em comum disse que o Aldir não saía mais de casa, não queria mais. Então, não consegui ter essa alegria. E, de repente, esse gênio vai embora e a gente fica tão vazio.
P: Em “Saudade da Guanabara”, de Aldir Blanc, Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro, eles falam que a “nostalgia não paga entrada” e o “circo vive de ilusão (eu sei)”. E é um questionamento o tempo inteiro com essa situação do artista. Isso é uma coisa muito puxada na obra do Aldir, não é?
EG: O que sei muito do Aldir é isso. Era uma pessoa difícil de uma comunicação, ele tinha o jeito dele. Talvez eu pudesse ter me aproximado mais. Por outro lado, acompanhei sempre muito ele, o tempo todo. O trabalho dele com o Guinga, que é meu amigo de adolescência, de São Cristovão. Aliás, o Guinga fez música com o Aldir depois que falei para ele ligar para o Aldir. Eu tinha acabado de fazer essas músicas que comentamos e falei: “Guinga, dá uma ligada para o Aldir, porque ele vai adorar você falar com ele”. Ele não conhecia o Aldir. E são essas coisas, essa luz que se acende. No fim viraram grandes parceiros.
P: Paulo César Pinheiro também tem essa coisa que o Aldir tem de juntar letras fortes com melodias muito casadas. Aliás, tem muitas histórias de que Aldir chegava e a letra saía de uma hora para outra, como se baixa um espírito.
EG: O Aldir tinha esse dom. O Paulo César Pinheiro e o Aldir, como letristas profissionais, são os maiores dessa geração. Não consideraria o Chico Buarque porque ele faz tudo e foi maravilhoso para quem apareceu na vida dele. Ele é um compositor de cantar, de tocar, fazer melodias. Mas falo de Paulo e Aldir como letristas apenas, profissionais ao criar letras boas de cantar.
P: Sua parceria com o Paulo César Pinheiro também tem essa angústia. A música “Mordaça” é muito isso…
Eduardo Gudin: “Mordaça“ foi do tempo da repressão da ditadura mesmo, em 1974. Aquele tempo não era brincadeira, tempo do Médici. O período mais difícil de todos. Porque o AI-5 estava imperando e era complicado mesmo. Aquele show, O Importante É Que a Nossa Emoção Sobreviva, que fiz com Paulo César Pinheiro, era difícil. Às vezes a censura estava ali na primeira fila e você não podia cantar, falar isso ou aquilo, era complicado. Tínhamos que fazer um show antes para duas pessoas da censura aprovarem. “Isso pode, isso não pode, essa fala tem que tirar.” Era sempre muito complicado. E mais difícil era saber que nos porões da ditadura era muito pior.
P: E aquele realejo na abertura de “O Bêbado e a Equilibrista”? No prólogo de uma música, aquele acordeon, que faz o som de realejo, ficou o anúncio da democracia…
EG: É uma ideia maravilhosa. É da questão do equilibrista no circo. Ele comparou ao circo e deve ter sido uma ideia do Cesar Camargo Mariano na gravação da Elis Regina. O realejo deve estar ligado ao circo chegando. Parece que você entra em um circo. É muito bem pensado, maravilhoso.