Little Richard
O cantor e compositor Little Richard, um dos inventores do rock'n'roll, morto hoje

“Eu sou o inventor, o criador, o emancipador. Eu sou o rock’n’roll!”.

Foi a primeira frase que me disse Little Richard em 1997, quando veio  a São Paulo para fazer um show no antigo Olympia, na Lapa. Disse isso antes que eu perguntasse qualquer coisa. Quem discordaria? Anos curiosos aqueles: dois anos depois, James Brown também faria um show no mesmo local. A gente ainda podia ter aquele miraculoso acesso direto aos originadores. Ou, como decretou Little Richard: os inventores, os criadores, os emancipadores.

Little Richard, que morreu neste sábado de manhã aos 87 anos (sofria de câncer, segundo declarou seu filho, Danny Jones Penniman), foi de fato um dos inventores e criadores do gênero rock’n’roll, ao pulverizar com perversidade e eletricidade o antigo R&B, mas sua importância está principalmente no terceiro adjetivo que utilizava para definir a si mesmo: emancipador. Especialmente no métier dos tabus sexuais (o primeiro hit de sua carreira, em 1955, Tutti Frutti, já era explicitamente um tratado sobre o erotismo). Um dos seus refrões, que insinuava sexo anal, foi censurado. “Tutti Frutti, good booty/If it don’t fit, don’t force it/You can grease it, make…” (Tutti Frutti, belo rabo/Se não couber, não force/Se você passar um creme, faça)”.

Sua influência é imensa – no Brasil, Raul Seixas foi um dos primeiros discípulos, e um dos mais visionários. “Há muito tempo atrás, na velha Bahia/Eu imitava Little Richard e me contorcia/As pessoas se afastavam pensando/Que eu tava tendo um ataque de epilepsia”, cantou Raul em seu derradeiro disco, A Panela do Diabo.

Richard Wayne Penniman, seu nome de batismo, nasceu em Macon, na Georgia, em 5 de dezembro de 1932. Era o terceiro de 12 filhos do pedreiro Charles e da dona de casa Leva Mae Penniman. Adventistas fervorosos, ele foi levado ainda menino por um tio para cantar na igreja. Foi bastante influenciado pela cantora e guitarrista, pioneira do blues, Sister Rosetta Tharpe.

Em 1948, já com o nome de Little Richard (não pela estatura, mas pela idade, 16 anos), passou a integrar algumas caravanas artísticas, uma delas a de uma trupe chamada Sugarfoot Sam, do Alabama, já envergando uma de suas marcas mais famosas de palco, a de cross-dressing. Ao lado de Fats Domino, Bo Diddley, Chuck Berry, Bill Halley, Ike Turner e mais alguns nomes daquela cena, ele ajudou a forjar uma música que encarnaria as revoluções epiteliais da juventude de uma época.

“Eu já era conhecido em 1951. Gravava pela RCA- Victor – se você era preto, chamava-se Camden Records – antes de Elvis. Daí gravei pela Peacock, de Houston. Então a Specialty Records me comprou da Peacock. Pagaram 500 dólares por mim. E minha primeira gravação para a Specialty foi um hit em 1956, Tutti Frutti.  Foi sucesso no mundo todo, eu senti que tinha chegado, entende?”, contou Richard.

“Naquela época, o racismo era tão pesado que você não podia ir a hotéis. A maior parte do tempo a gente dormia no carro, comia no carro. Ia ao concerto e se trocava no carro”.

Ele contou que fazia muitas canções sem receber um centavo por elas, como o hit Good Golly Miss Molly. Michael Jackson, quando comprou o catálogo da Specialty Records, passou a remunerá-lo dignamente.

Little Richard tinha anunciado sua aposentadoria em 2013. Um ano antes, ele tinha sido obrigado a interromper um show em Las Vegas por problemas de saúde. “Jesus, por favor, me ajude! Não posso respirar, é horrível!”, afirmou, em pleno palco.”Eu já fiz tudo, em certo sentido. Não sinto mais como se fizesse nada certo hoje”, afirmou, após largar os palcos. “Quando eu comecei com Tutti Frutti, foi quando o rock realmente começou”. Ganhou um Grammy pela contribuição de sua obra à música.

Em 1993, o Free Jazz Festival trouxe um “double bill” de muito respeito ao Brasil: na mesma noite, no Pacaembu, tocaram Chuck Berry e Little Richard, ambos negros, ambos desafiadores de tabus, os grandes pioneiros do rock’n’roll. Enquanto Chuck trazia a incompatibilidade social, a fúria, a violência, Richard mostrava seu arsenal de insolência, de enfrentamento dos padrões, de conceitos.

Sobre sua decantada homossexualidade, ainda naquela entrevista de 1997, Little Richard (que manuseava ambivalências sexuais desde a juventude, influência seminal de astros como Mick Jagger e Robert Plant e, obviamente, Jimi Hendrix, que não existiria sem Penniman), já dividido entre o trabalho de evangelização e o da música, me disse apenas: “Amo muitas pessoas e sou muito amado, isso é o que importa”.

Ele criou a própria persona com esmero, método e visionarismo. “Muitos dos performers daquela época,  The Cadillacs, The Coasters, The Drifters, todos usavam maquiagem, mas não tinham um kit de maquiagem. Tinham uma esponja e um pequeno compacto no bolso. Eu tinha um kit. Todo mundo começou a me chamar de gay”.
Em 2011, em depoimento sobre sua escolha para integrar, em oitavo lugar, uma lista dos 100 performers de todos os tempos, ele agradeceu, mas disse que não lhe interessava saber “quem é o número um ou o número dois” da votação. “Porque não será quem eu acho que deve ser. Os Rolling Stones começaram comigo, mas sempre serão colocados à frente de mim. Os Beatles começaram comigo, no Star Club de Hamburgo, Alemanha, antes de terem gravado um disco, mas sempre serão colocados à minha frente. James Brown, Jimi Hendrix, essas pessoas começaram comigo. Eu os alimentei, falei com eles, e eles sempre vão estar na minha frente”.

 

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