Há 22 anos, numa noite subitamente lúgubre da Zona Leste de São Paulo, eu rumei para uma casa de shows chamada Led Slay, na Avenida Celso Garcia Cid. Na época, eu morava perto, no BNH do Brás, e cheguei até muito cedo. Esperei na calçada. Naquela noite, Zé do Caixão tinha anunciado que, após 25 anos sem cortar suas unhas, iria decepá-las ali num ritual macabro com trilha sonora especial para a ocasião. A trilha sonora, ao vivo, era da banda Sepultura.
Não achei esse recorte de minha reportagem nos arquivos do centenário jornal, no acervo online, mas está lá, só precisa refinar a busca. O título era esse: À meia-noite cortarei minhas unhas.
Era uma casa enorme, muito show bacana rolou lá até seu fechamento, em 2011. O Sepultura tocou até uns 5 minutos antes da meia-noite. Um dos irmãos Cavalera, acho que foi o Igor, parou o som e Zé do Caixão, acompanhado por uma de suas companheiras misteriosas com nomes de prenúncio, iniciou o ritual pela unha do mindinho.
Parecia uma das excentricidades do Zé, mas ele me contou que tinha sido aconselhado pelo médico a podar as unhas porque estavam atrofiando os dedos. Suas unhas, àquela altura, tinham até 20 centímetros de comprimento.
Eu tinha admiração pelo Zé, assim como sentia certa repulsa em cumprimentá-lo com aquelas unhas colossais. Eu amo até hoje a capa do disco do Zé Ramalho, A Peleja do Diabo com o Dono do Céu (1979), o melhor do cantor, que tem o Zé Mojica na capa assombrando e seviciando o outro Zé, o paraibano de Brejo do Cruz. Além, é claro, de Pepeu Gomes, Geraldo Azevedo, Jorge Mautner, Amelinha, Cátia de França e grande elenco entre os músicos. As fotos são do Ivan Cardoso, que se tornou o mais destacado discípulo do Zé do Caixão.
A relação dos dois Zés acabou resultando num folheto de cordel fabuloso, a Peleja de Zé do Caixão com o cantor Zé Ramalho, editado pela Academia Brasileira de Cordel em 1981.
José Mojica era uma figura espantosamente doce e cavalheiresca. Uma vez eu o visitei quando ele morava no Cambuci (não tenho mais certeza), e ele me mostrou o caixão que mantinha na garagem, entre outros artefatos cênicos. De vez em quando entrava no esquife para fazer sessões de fotos e contam mesmo que tinha hábito de dormir nele (acho que era para causar efeito nos visitantes).
Também adorei quando, certa vez, os colegas André Barcinski e Ivan Finotti romperam pela redação adentro caminhando na minha direção, trazendo nas mãos a biografia Maldito, sobre a vida e a obra do diretor de clássicos como “À Meia-Noite Levarei a Tua Alma” (1963), “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967), “O Despertar da Besta” (1969) e outras dezenas de filmes. Eu os admirei pela coragem e invejei pela lealdade ao velho mestre do terror.
Eu tentei muitas vezes compreender a linguagem caótica de Mojica. Fui ver cópias restauradas dos seus filmes, e o rejeitei algumas vezes. Demorei para reconhecer que havia um domínio de linguagem para além dos cânones cinematográficos, mas era também uma profusão de clichês, tudo misturado, tudo se conectando e se negando. Mojica arrombava uma carga de superstições e pruridos sociais com seu senso anárquico, evidentemente primitivo, da arte audiovisual e do balé dos significados. Era um artista de outra esfera, puro e sagrado. Muitas vezes se aproveitaram dele por causa de sua delicadeza. Também o esnobaram muito. Lembro que ele levou 35 anos para ser selecionado no primeiro edital público de estímulo cinematográfico. Era um gigante da cultura popular brasileira, sua morte hoje (de broncopneumonia. aos 83 anos) deixa tristes todos os que ele libertou dos dogmas do bom gosto e da reverência puramente intelectual da forma.