Entrevista Milton Hatoum: o acerto de contas

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Entrevista Milton Hatoum: na imagem, ele lê o primeiro livro da trilogia
Entrevista de Milton Hatoum à CartaCapital - Foto Divulgação

O escritor Milton Hatoum fala, em entrevista, sobre Pontos de Fuga, segundo romance da trilogia O Lugar Mais Sombrio, e da aproximação do período da ditadura com o presente

[Íntegra da entrevista de Milton Hatoum à CartaCapital, publicada na edição 1083. Os trechos em azul são exclusivos]

Referência entre os maiores nomes da literatura brasileira contemporânea, Milton Hatoum está otimista. Ele vê focos de resistência ao governo de Jair Bolsonaro em muitos lugares diferentes, como “nas periferias, nos saraus, nas reuniões, em clubes de leitura, em pequenos shows e debates”. Na sua nova obra, Pontos de Fuga, ele optou por fazer um acerto de contas particular com a sua geração, que viveu o período da ditadura. E faz questão de ressaltar, tal como os personagens que escreve, que naquela época nem todos reagiram ou resistiram. Protagonista deste segundo livro da trilogia (o primeiro romance foi A Noite da Espera, de 2017), o personagem Martim deixa Brasília e retorna a São Paulo, onde ingressa no curso de arquitetura da Universidade de São Paulo e passa a morar numa república de estudantes na Vila Madalena, tal como Hatoum na vida real. Em entrevista à CartaCapital, o premiado escritor traça paralelos entre suas últimas histórias ficcionais e um governo que representa “a suprema encarnação do mal”. 

CartaCapital: A presença feminina sempre é muito marcante nos seus romances. Mas Pontos de Fuga se destaca pela ausência da mãe do personagem principal. Por quê?

Milton Hatoum: É uma estratégia narrativa, porque não faria sentido que o Martim, o narrador do romance, fosse um ativista, um militante de esquerda. Quis concentrar o drama dele na ausência da mãe, que envolve um mistério. Ele especula o tempo todo sobre isso e a esperança de revê-la. Essa ausência tem o lado simbólico, para lembrar que houve uma resistência feminina e feminista ao golpe, à ditadura. Várias mulheres foram assassinadas, desaparecidas, e fala-se muito nos homens. E depois a ausência de uma mãe para um filho é um grande trauma. Há essa ausência, mas tem a presença ostensiva da Dinah, essa atriz, ativista, decidida até o fim a lutar contra a ditadura.

CC: Pontos de Fuga trabalha novamente com a ideia de vidas fraturadas. Agora são jovens que tentam se acertar, mas não conseguem. Era essa a imagem que tinha dos jovens na ditadura?

MH: Era isso o que esse fragmento da minha geração vivia. Porque o romance como gênero é a busca do sentido para a vida. O que é um romance? É a trajetória de um herói ou de uma heroína que não dá certo. É uma reviravolta no destino que seria a essência do romance. Esses jovens, sobretudo naquela época, estavam procurando uma saída. E alguns não encontravam por dramas pessoais, dificuldades de enfrentar uma situação adversa ou bruta, por questões familiares, medo, desespero. Em Pontos de Fuga, esse grupo já está amadurecendo, diferente do primeiro volume. Mas ao mesmo tempo em que estão se conhecendo nessa triste república da Vila Madalena, também têm um olhar sobre o outro. Alguns fazem planos, mudam de profissão, outros não encontram sua profissão. Estão entre paixões, fugas e medos, acuados, um pouco emparedados.

CC: O Martim é um estudante de arquitetura. E você é arquiteto. E ele queria ser escritor. Mas ele não é você, seu alter ego.

MH: Há alguma coisa dele, claro, sempre há. Sem minha vivência em Brasília, seria mais difícil inventar esse personagem. Mas não tive os dramas que ele teve ou passou. A minha experiência é mais próxima (de outro personagem) do Nortista, que é esse que abandona a faculdade. Em Brasília, ele abandona o curso e quer ser ator, com dificuldade. Mas foi fundamental tanto minha experiência em Brasília, como em São Paulo, inclusive em uma república na Vila Madalena.

CC: A sua república era também tão conturbada, com tantos sentimentos aflorando?

MH: Era um pouco, sim. Se não fosse, bastante. Tinha todas essas questões políticas, sexuais, afetivas, profissionais. Tudo isso aflorava. Então essa experiência foi muito importante. Inclusive questões raciais, daquela vizinha, a da velha com o Julião, que era racista para uns e para outros, não. Tudo isso eu vivenciei e fez parte da nossa experiência. E a década de 1970 foi, ao mesmo tempo em que havia uma repressão muito forte, também esse desejo de romper tudo, de romper com o constrangimento da família, da opressão dos pais, isso está na vida deles, do Ox, da Laísa, do próprio Martim em relação ao pai. A única mais livre em relação à família é a Dinah.

CC: Você não escreveu a conclusão da trilogia, certo?

MH: Ele já está mais ou menos escrito. Porque levei 11 anos esboçando. Fui reescrevendo. Está muito cru. Preciso trabalhar alguns meses ainda.

CC: Como esses personagens habitam sua vida?

MH: Você tem que interiorizar os personagens. Eu dou muito valor a eles, porque é o que dá mais espessura aos romances. Há um crítico e escritor inglês que diz que o romance deve ser uma narrativa encharcada de humanidade. Então a construção de personagens é muito importante. E isso é uma das coisas mais demoradas, mais difíceis: construir personagens que não sejam rasos. E apresentá-los aos poucos. O filósofo Walter Benjamin fala que o romance tem o tempo da lareira que arde. Passa um longo tempo no fogo, durante horas, talvez uma noite toda, aí crepita, vai queimando. Esse é o ritmo dos romances. Por isso ele pede concentração do leitor. A leitura é demorada.

CC: Quando começou a escrever Pontos de Fuga?

MH: A trilogia comecei a escrever no final de 2007. Comecei pelo último, por Paris. Tem uma personagem que aparece no segundo, a Évelyne Santier, uma franco-brasileira, que é a narradora do terceiro. E há um deslocamento do Brasil para França, mas os personagens dos outros livros vão aparecendo aqui e ali. E também o destino da mãe (de Martim). Então comecei pelo terceiro, que dei para o editor (Gilson Schwartz) ler. E isso faz muito tempo. E foi ele que disse que fazia falta a história do Martim. Aí planejei a trilogia. E fui me aproximando dos anos 1960.

CC: O protagonista Martim era para ser um personagem mais lateral?

MH: É. Na verdade, eu sempre quis fazer essa espécie de acerto de contas com essa fração da minha geração. Não era a maioria dos jovens que estava nas ruas. Isso é um mito. Eram, sobretudo, jovens universitários, e não de todas as universidades. As públicas, sim, as federais. E tinha muita gente que apoiava o regime. Quis reinventar para mim esse momento da minha vida, mas tinha um pouco de receio por causa da amplitude do roman-fleuve, desse romance caudaloso de quase mil páginas. Aí cheguei a conclusão de que poderia dividi-lo em três partes. Eu tinha mais ou menos o esboço desses dois, desenhados em papel manteiga. E o meu editor me estimulou em escrever. Aí falei que ia levar tempo. E ele me disse que levei dez anos para publicar Dois Irmãos, meu segundo romance.

CC: Então começou pelo último, apresentou ao editor e começou a escrever, Noite de Espera, em 2007, terminando em 2016. 

MH: Mas em 2016 já fiz o esboço dos dois primeiros. Tudo. Porque aí escrevi tudo.

CC: E decidiu dar uma pausa antes de publicar Pontos de Fuga.

MH: Porque fiz muitos ajustes. Quando faço uma versão, depois eu imprimo e fico nesse processo de corrigir. E sou muito lento. Devo confessar que escrevo devagar. Leio com muita rapidez, o pessoal até se impressiona. É um ritmo muito mais veloz que o da escrita. Eu escrevo à mão, à caneta. Depois passo a limpo no computador. Aí imprimo e vou corrigindo. Tanto que o Dois Irmãos tem 16 versões. Foi até objeto de uma tese na USP sobre genética do texto.

CC: Quando lançou A Noite da Espera já havia acontecido o golpe parlamentar no Brasil. No ano passado, Bolsonaro foi eleito. Em que medida este momento colaborou para reconstruir ou adaptar a história?

MH: Alguma coisa, sim. Mas a essência já estava no texto. Por exemplo, o delator, esse personagem que aparece da república, ele é o próprio ignorantão, idiota, o estúpido, o bolsonarista, que nunca leu nada, que não conhece nada, que confunde John Lee Hooker com seriado americano. Estou falando de um personagem que não tem nome que foi expulso da república, porque faz pouco dos assassinatos da FFLCH.

CC: Há um personagem, o Ox, que tem um quê de bolsonarista.

MH: O Ox é um liberal. Eu acho que ele não apoiaria Bolsonaro, porque é um liberal autêntico. E é isso que nos faz falta, porque o Brasil é carente do liberalismo dos moldes europeus, da filosofia inglesa. E o Ox é esse liberal autêntico, por isso ele critica o (Augusto) Pinochet, essa receita chilena do liberalismo com a repressão, o terrorismo de Estado. Guardando as proporções, ele está criticando o momento atual, que é copiado do Pinochet, com o (Paulo) Guedes. O Ox é um ruído nessa república de anarquistas, de esquerdistas.

CC: A que você atribui isso? Por que as pessoas não se posicionavam? 

MH: Eram posições ideológicas diferentes, que iam da extrema direita, que é o caso desse jovem que foi expulso da república. E uma das regras da república era a tolerância. Sem constrangimento ideológico. Mas um fascista não era permitido. E havia desde esse cara até os jovens que não participavam do movimento estudantil, como era a Anita, por exemplo, que ia rezar pelos outros. Até uma direita liberal, que seria o Ox, com algumas variações de esquerda, como o Nortista, que era meio anarquista.

CC: Conseguiu fazer o acerto de contas a que se propôs?

MH: Não sei. O romance, quem dá resposta é o leitor, que é soberano sempre. Agora que estou recebendo algumas respostas de leitores, que de algum modo se projetam nesses jovens.

CC: Você disse que começou a escrever em 2007, mas pensou a escrevê-la antes, nos anos 1980. O que teria acontecido se estivesse escrito naquela época?

MH: Ah, acho que seria um crônica política, muito mal ajambrada. Na verdade, escrevi um texto para um amigo, em Madri, um argentino que era um exilado da ditadura da Argentina. Ele leu, ele falava e escrevia português. Já faleceu há alguns anos. E foi um grande tradutor, do Raduan Nassar, o Mario Merlin. Ele leu e disse que dava uma crônica. “Isso ainda está no tempo e nas circunstâncias. Os personagens não são personagens ainda. Você precisa esperar.” E ele estava certo. Dizia que tinha esperar uns bons anos. E eu ainda tive de escrever Cinzas do Norte, que é o que mais se aproxima dessa trilogia. Mas agora a narrativa epistolar está mais presente. Então houve essa demora para a experiência ser decantada.

CC: Escrevendo hoje, consegue enxergar de maneira mais distanciada sobre os fatos do passado ou se estivesse escrito antes teria sido algo mais aguerrido?

MH: Mais panfletário. Como muitos romances que acabaram perdidos, porque o panfleto não serve à literatura. O panfleto é importantíssimo em momentos da história, para ser mais direto e acusar a barbárie. Mas a literatura tem de ter mediações, trabalhar com nuances e relações mais complexas. Tive que esperar decantar essa experiência. E até esquecer. Porque a memória e o esquecimento fazem parte. Eu não conseguiria escrever um romance sobre o que está acontecendo hoje. Porque estamos vendo isso na imprensa, está muito quente. E o romance remete ao passado para trazê-lo para o presente. É por isso que muitos leram a Noite da Espera vendo também o momento presente, fazendo essa ponte. Esses leitores já perceberam esse diálogo temporal.

CC: O diálogo temporal se deve por ter escrito há pouco tempo ou pela infeliz coincidência histórica de fatos de anos 1970 estarem se repetindo agora?

MH: É uma coincidência, porque já tinha escrito. É que a ficção está muito além do autor. Ela diz coisas que você não estava prevendo. Mas esse governo não me surpreende totalmente. Essa massa de extrema direita estava adormecida, esperando o messias, o seu líder, supremo, seu Hermógenes, do Grande Sertão: Veredas, a suprema encarnação do mal. E uma vez que essa liderança emergiu com muita força, podemos discutir como, por que e em que circunstâncias ele se tornou quem é.

CC: Mas pensando do lado das pessoas que podiam resistir, o seu livro Pontos de Fuga ajuda a mostrar como perdemos o foco muitas vezes, e não percebemos como entramos em algumas armadilhas.

MH: Sim, o tempo todo, estamos sujeitos a armadilhas, a cair nelas. Por isso que é o bordão do Grande Sertão: Veredas, viver é muito perigoso. Ou (Manuel) Bandeira, que dizia que não pode se distrair nunca, que até atravessar uma rua pode ser fatal. Para quem está muito antenado, olhando para todos os lados, como é o caso da Dinah no livro, você pelo menos evita algumas armadilhas. E nós não soubemos evitar. E não digo só a esquerda, mas os democratas. 

CC: Lá e cá?

MH: Lá e cá. Lá era quase impossível deter o golpe, por causa da guerra fria. Lá tinha o elemento externo da disputa geopolítica, entre a ex-União Soviética e os Estados Unidos. Era fatal, não dava sair disso. houve provocações? Houve. O discurso do Márcio Moreira Alves, aquele comício do Jango (João Goulart) no Rio, 15 dias antes do golpe. Houve provocações, vamos dizer assim. Como depois a Argentina, o Chile, a América do Sul, faziam parte da geopolítica americana. Ali, acho que era muito difícil.

CC: E por que a história, parafraseando Marx, se repete agora como farsa?

MH: Porque houve muita manipulação. Várias coisas convergiram para a eleição dele (Bolsonaro). Porque há a demonização das esquerdas, não só do PT. Há os erros da própria esquerda, temos que admitir. A condução da economia e meio ambiente, a questão indígena, temos de falar, não adianta esconder. A política de meio ambiente foi pífia. A fixação por Belo Monte. Na economia também, foi desastrosa. E houve uma parte da imprensa que manipulou muito também desde 2011, 2012, 2013. Houve a virada das manifestações de junho de 2013, que começou de um lado e terminou com a adesão da direita. Depois as fake news, a facada, esse falso liberalismo brasileiro. Os verdadeiros liberais jamais admitiriam uma figura sinistra, fascistóide como Bolsonaro. Foi um acovardamento das elites. De uma parte delas, porque a maioria da elite convive bem com Guedes.

CC: Em uma entrevista ao Nexo Jornal, em 2017, você já falava em golpe de estado, dizia que não estávamos vivendo em um estado de exceção, mas havia sinais preocupantes.  E dizia que caminhávamos para o obscurantismo.

MH: Chegou. Estamos em pleno obscurantismo. Censura, esse secretário da cultura, que nem conheço essa figura, é sinistra. Aliás, é um ministério sinistro, em que a estupidez e a ignorância competem com atitudes hiperautoriatárias, quase fascistas. Esse é um resumo desse ministério. E um delírio também. Estamos em pleno obscurantismo. E é incrível a falta que nos faz um pensamento liberal, de um Ox, por exemplo. A elite econômica concorda com a queimada da Amazônia, a matança de lideranças indígenas, o feminicídio, o racismo, as manifestações racistas. Ela fecha os olhos para isso. Então de liberais eles não têm nada. Eu estudei um pouco o liberalismo. Eu gosto de grandes autores, como Isaiah Berlin, admirável a obra dele, o Raymond Aron, o francês, um grande pensador. Quem são os liberais brasileiros? Eles têm uma mentalidade patriarcal, querem manter os privilégios, querem um estado enxuto, mas são eles que mantêm os privilégios.

CC: Como um intelectual vê a prevalência da estupidez como forma de governo?

MH: Quem viveu os anos 1960 e 1970 sabe que não foi a classe operária que derrubou a ditadura. Foram, sobretudo, os movimentos dos estudantes e dos artistas. Eles fizeram muito barulho. Como estão fazendo hoje. Eu considero a manifestação de maio (de 2019) a maior dos democratas progressistas contra Bolsonaro. Porque ali foi uma manifestação suprapartidária. Inclusive o discurso do (Fernando) Haddad foi brilhante. Ele não citou o PT, não citou ninguém. Era uma manifestação pela escola pública. E quem que fez? Os estudantes, os professores, a classe média progressista. Quem está à frente hoje? Os artistas.

CC: Consegue ver com clareza uma resistência?

MH: Eu vejo. Ela está acontecendo no Brasil todo, em muitos lugares diferentes. Nas periferias, nos saraus, nas reuniões, em clubes de leitura, em pequenos shows e debates.

CC: Nos anos 1970, com o aumento da resistência, houve também o recrudescimento da violência do Estado. Há o risco de repetirmos a história?

MH: Eles ameaçam já. Na internet e nas ruas. Ameaçam os homossexuais, os negros, as pessoas que saem com camisetas de Lula, deputados. Mas a pior coisa é autocensura, o silêncio. Eles querem que a gente se cale. Essa é a estratégia dele, o medo. Dei uma entrevista para o site Tutameia. Esse não é o momento de a gente silenciar, nem se autocensurar. A autocensura é a capitulação. E o poder se aproveita disso. Porque ele cresce com o silêncio e a autocensura.

CC: Como vê essas manifestações de pessoas que se sentem à vontade para defender Pinochet, arrancar cartaz de uma manifestação da Consciência Negra?

MH: O Bolsonaro liberou isso. Ele autorizou não apenas isso, mas também a invasão de terras indígenas, a grilagem de terras, a violência contra os indígenas. Ele liberou todo o tipo de violência. Eu dei uma entrevista ao Liberation cuja manchete era essa, isso lá atrás. Ele vai liberar todo esse instinto obscuro, do mal, que as pessoas têm e cultivam. Foi uma explosão da extrema direita, que aliás já vem de algum tempo. Mais de um ano, dois anos, antes das eleições, o filho dele, o que é escrivão, o Eduardo, ele veio aqui fazer um comício e tinha um revólver na cintura. Escrevi uma crônica no Estadão, tinha uma coluna no Caderno 2, e a manchete foi “A extrema direita vai ao delírio”, comparando com o filme do Glauber Rocha, não sei se foi Terra em Transe. E a reação de alguns leitores me assustou. Foi uma reação muito violenta, e não foi pequena.

CC: Atribui isso à polarização em que vivemos?

MH: Não, a polarização só explica uma parte disso. Porque a extrema direita sempre existiu. A marcha dos 100 mil, de apoio ao golpe, se pensar a população de São Paulo, hoje seriam 500 mil, 1 milhão. Você acha que essas pessoas sumiram? Muitas morreram, mas tiveram filhos, netos. Uma parte da sociedade brasileira considerável é ultraconservadora. E tem um agravante, e isso sim é novo. O Nirlando (Beirão), que era meu editor na IstoÉ, com o Mino Carta, eu fui repórter, free-lancer na revista, em 1978 ou 1979, e fui cobrir o primeiro grande evento da Igreja Universal. Havia 30 mil pessoas, muitos humildes, pobres. O Nirlando leu e não acreditou. E ele disse: “Então estamos perdidos, se isso for verdade.” É isso, cresceu muito e eles deram apoio importantíssimo à vitória do Bolsonaro, os pastores, os fundamentalistas.

CC: Acha que estamos num momento que dá para ser otimista ou não dá ainda para fazer essa virada?

MH: Dá. Primeiro porque a história é um palco de tensões de múltiplas possibilidades. Pode acontecer coisas gravíssimas. O que está acontecendo no Rio. Uma suposta ligação do filho de Bolsonaro com o crime da Marielle Franco pode ser fatal para a família toda. E outra coisa: ninguém sabe como a economia vai se comportar ano que vem. Há fatores externos, como o Trump. É como o romance, que trabalha com fatores externos e subjetivos. Que é o (Joseph) Conrad, o Graciliano Ramos, o (William) Faulkner, essa combinação que mais admiro. E há coisas na sociedade brasileira que podem mudar. Acho fundamental quebrar um braço da polarização, que as esquerdas progressistas, inclusive de centro, e até os liberais, entrem num acordo. Um partido de esquerda, sozinho, não vai ganhar as eleições. Essa é a minha visão.

capa do romance de Milton Hatoum
capa do romance de Milton Hatoum

CC: Nos anos 1970, havia uma sociedade brasileira e ela evoluiu de lá para cá. Então por que caímos no mesmo conto do vigário de permitir que forças sinistras voltem a governar o País?

MH: Olha, há uma passagem do romance Pontos de Fuga, que é uma festa, na Île Saint-Louis, Paris, em que uma personagem carioca, que é surda, se revolta contra a anistia. A anistia geral foi uma capitulação. Isso não aconteceu na Argentina, no Chile ou no Uruguai. O que aconteceu aqui? A repressão continuou solta. Os grupos paramilitares, os esquadrões da morte estão aí, viraram milícias. Esses militares, esse submundo só cresceu. A repressão aos pobres, a execução de traficantes, num país democrático você não executa os malfeitores, isso é barbárie. Essas pessoas têm representantes no Congresso, têm a bancada da bala. O presidente e seus filhos fizeram honrarias às milícias. Ele, Bolsonaro, elogiou milicianos na tribuna. Então não houve uma interrupção, houve uma continuidade subterrânea, oculta, que aflorou agora. Que sempre matou. Mas a matança de pobres e negros no Brasil, a quem se sensibiliza?

CC: O governo recorre, com apoio da imprensa, à ideia de propalar um suposto avanço econômico para solapar os direitos sociais e promover retrocessos políticos e humanísticos. Isso é uma fábula?

MH: É uma mistura de hipocrisia com perversidade, não chega a ser uma fábula. Essa é a perversão e a hipocrisia de uma boa parte da elite brasileira. Não digo toda, porque há aqui e ali parcelas da elite que querem diminuir a desigualdade. Mas dizer que a economia está melhorando com esses milhões de trabalhadores de brasileiros na informalidade.

CC: Motoristas de Uber, entregadores de Rappi…

MH: São milhões. E pelo menos 3 milhões que já não procuram mais emprego. Quer dizer, a economia está melhorando quando você ganha 500 reais por mês? Quando o jovem ganha 500 ou 1.000 reais por mês em uma bicicleta? Que tipo de sensibilidade, essas pessoas têm? É uma mistura de perversão com hipocrisia. O jovem faz bico trabalhando dez, doze horas por dia, para ganhar um valor que essa elite gasta em um jantar, facilmente. Não há melhora alguma. É mais um discurso hipócrita. E pode explodir, pode haver uma explosão social. Nessas condições, as pessoas não aguentam. Como não conhecem nada da história, das revoltas que aconteceram no Brasil, pensam que o povo é pacífico, é a maior mentira. A República foi inaugurada com o genocídio de Canudos e isso nunca mais parou. Esse genocídio continua. Por isso que não me assombra essa quantidade de mortos e assassinados.

CC: Genocídio movido pelo Estado.

MH: Claro, pelo Exército. Daí o atrito do Euclides da Cunha, que era um militar, com as Forças Armadas. Eles nunca mais foram os mesmos. E ele nunca mais foi o republicano fervoroso que tinha sido. Foi a grande decepção.

CC: Já disse em entrevista que começou escrevendo contos por imitação. E eu não consegui intuir quais são os escritores que gostava de imitar.

MH: Em poesia, publiquei um livro que felizmente foi esquecido e nunca mais foi reeditado, que já anunciava a catástrofe, e o nome era Amazonas, Palavras e Imagens de um Rio em Ruínas, em 1978. Já sabia que era irreversível. Quem era de lá ou se interessava pela Amazônia sabia. Hoje a devastação chegou a 17%. Mas na época não chegava a 2% ou 3%, quase zero. Mas já tinham começado as queimadas a Volkswagen, as mineradoras, já estavam as estradas, a Transamazônica, havia uma “rede de integração” para ocupar de forma predatória, e nessa época eu lia muito o que o Martim lia, mas eu lia muito João Cabral (de Melo Neto). E na prosa eu, enfim, lia muito Faulkner, meus favoritos, até hoje, Guimarães Rosa, (Julio) Cortázar, (Jorge Luiz) Borges, (Gustave) Flaubert, ficava parecido com um. Li também naquela época (Leon) Tolstói. Vamos dizer que Faulkner e o Rosa tinham estilos muito próximos, e eu tive que me desintoxicar disso, encontrar minha própria voz, que é muito mais modesta. Mas é melhor encontrar uma voz modesta a você imitar um gigante como Guimarães Rosa.

CC: Mas você trabalha com personagens deveras complexos.

MH: Ah, isso sim, essa é a minha aposta. Com a estrutura do romance, com os conflitos, com o sentido da história, que acho importante para o gênero romance.

CC: Eles não se decifram rapidamente, demoram.

MH: Demoram, por isso que é lento. O desafio do escritor é encontrar a sua própria voz e, ao mesmo tempo, inventar um universo ficcional. O meu é o drama familiar que se expande para a cidade e, às vezes, o país, que vira uma grave fratura social.

CC: Mas nessa trilogia você trabalha com diferentes vozes. O personagem da mãe vai voltar no terceiro romance…

MH: Deixar um mistério narrativo é importante. O romance não pode entregar tudo. Há lacunas. Porque senão isso diminui, porque se esclarece muita coisa acaba tolhendo a imaginação do leitor. A lacuna é o espaço que o leitor tem também para imaginar, o mistério e a ambiguidade. A ambiguidade é fundamental à narrativa. Eu não sei se a mãe vai aparecer no terceiro. Você quem falou, não fui eu.

CC: (Risos) O “aparecer” pode ser em termos de se justificar na história. Ela é então quase uma sombra.

MH: Ela é uma sombra. E essa sombra vai, de alguma forma, se tornar uma presença lateral. Porque o leitor merece saber o que aconteceu. E isso você deixa para o fim. O Martim precisa. E já fica ambíguo no fim do romance (Pontos de Fuga). E no terceiro outras coisas aparecem. Esse espaço de ambiguidade é muito importante.Você vê Grande Sertão: Veredas e até o fim não sabe quem é Diadorim. Você só mostra o corpo nas últimas partes, dele que é ela, uma mulher. Porque se falasse isso no começo…

 

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