Jotabê Medeiros está atordoado, depois de alguns dias de repercussão da face mais escandalosa de sua biografia do baiano Raul Seixas, Não Diga Que a Canção Está Perdida. Nos primeiros momentos, o livro foi menos falado por seu conteúdo que pela suspeita bombástica que elege não manter debaixo do tapete, de que talvez Raul Seixas tenha delatado o amigo e parceiro Paulo Coelho para o Dops, em 1974.
Está longe de ser a única passagem reluzente ou surpreendente do livro. Entre muitos outros detalhes, Jotabê conta que até 2012 o corpo de Raul Seixas não havia se decomposto no jazigo da família Seixas, talvez pelo excesso de antibióticos consumidos durante a vida. Estende-se caudalosamente sobre a mal-estudada e mal compreendida fase de Raul (então Raulzito) como produtor de música dita “cafona”, antes da fama.
Ilumina a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, que Raul dividiu com o capixaba Sérgio Sampaio, a paulista Miriam Batucada e o baiano Edy Star, também antes de virar astro pop-rock nacional. Ilumina a invenção do “baiock”, rock’n’roll de Elvis Presley polvilhado com baião de Luiz Gonzaga, quando finalmente Raul se lançou como artista de frente no Festival Internacional da Canção de 1972, com “Let Me Sing, Let Me Sing”. Relata os muitos solavancos que o autor de “Ouro de Tolo” viveu nas relações com, por exemplo, a família (ou melhor, as famílias) e o séquito nunca decrescente de fãs.
Logo que começamos esta entrevista por e-mail, a Folha de São Paulo publicou reportagem focalizando o aspectos mais escandalosos da biografia, e Jotabê se viu colhido pelos aspectos mais polêmicos de Não Diga Que a Canção Está Perdida, que, diz, jamais foram o objetivo central do livro. Via Twitter, Paulo Coelho primeiro atestou a veracidade da história e, dois dias depois, num pinote notável, colocou em questão os documentos levantados pelo biógrafo.
Colhido pelo furacão, Jotabê passou os dias seguintes em maremoto, e a entrevista só foi prosseguir ao vivo, na sexta-feira 25. Nela, amigos e parceiros além de entrevistador e entrevistado, procuramos reacender os lados obscuros e os já luminosos de um dos mais geniais (e populares) artistas da história do Brasil, que (tal como outro biografado de Jotabê, Belchior) em vida carregou a centelha de combinar o talento intelectual e o poder de comunicação imediata com o grande público. Toca, Raul.
Pedro Alexandre Sanches: Logo no início de seu livro, a gente percebe que você teve acesso aos diários do Raul Seixas, escritos entre os 7 e os 14 anos de idade. Como se deu isso?
Jotabê Medeiros: Um amigo fotógrafo, Juvenal Pereira, esteve com Raul em 1988 e fotografou os diários para uma reportagem. Partes deles foram publicadas ao longo dos anos nas caixas O Baú do Raul, outras não. Aproveitei partes dos documentos para remontar algumas narrativas.
PAS: Você então teve acesso à íntegra dos diários? Como eles são? Que impressão lhe causaram?
JM: Os diários são de uma coragem absoluta. Outro artista, ao ver que um ou outro relato trairia ingenuidade, tiraria fora. Raul Seixas, não. Ele quis que as pessoas enxergassem a integralidade de sua personalidade. Os diários revelam um outro mundo, jovem-guardista, sonhador, revoltado com as convenções sociais, ansioso pela liberdade.
PAS: Enquanto começamos nossa conversa, Paulo Coelho foi ao Twitter atestar a revelação que você faz no livro sobre ter sido delatado por Raul à ditadura. Como você reage a isso? Como topou com essa história?
JM: Eu não afirmo que Paulo foi delatado por Raul, isso não está no livro. Eu apenas concluí que a relação dos dois tinha começado a azedar a partir daquele episódio da prisão, e, como é uma parte fundamental da história, comecei a examinar o que tinha acontecido. Descobri que havia uma nódoa, uma mágoa que não tinha sido curada. Foi quando achei os originais de um documento que já tinha sido publicado como anexo numa tese de doutorado. Ali, um policial dizia que o compositor iria ajudar a localizar o escritor, e esse documento não tinha sido examinado pelos estudiosos até então. O policial pode ter acreditado nisso, ou planejado isso, mas não conduz à dedução de que Raul colaborou. Ele de fato levou Paulo ao Dops logo depois, e a partir dali nunca mais foram os mesmos. Essa é a única certeza.
PAS: A cultura de manter os esqueletos no armário parece ser uma característica brasileira e explica apuros que o país está vivendo agora mesmo. É preciso tirar os esqueletos do armário? Acredita que seu livro ajuda nesse sentido?
JB: Certos temas são muito dolorosos, eu entendo a tensão. Paulo e Raul viveram no coração das trevas, foram cercados por forças sombrias. A repressão estimulava a desconfiança, jogava irmão contra irmão. Mas não concordo com o tabu de não se tocar nunca no assunto, como se fosse algo interditado ao futuro. Paulo Coelho mesmo disse que ficou 45 anos desconfiando disso, como escrever uma biografia que não abordasse esse peso?
PAS: Outra sobre o mesmo assunto: mesmo sob essa suspeição, a parceria com Paulo Coelho continuou e rendeu os discos “Novo Aeon” e “Há 10 Mil Anos Atrás”. Como isso foi possível? É o que Paulo Coelho chama de “inimizade íntima”?
JM: Sim, eles tinham se revelado uma dupla de ouro para a companhia discográfica, que chegou mesmo a “pescar” Paulo Coelho em Londres, em Piccadilly, para continuar produzindo. Paulo acabou sendo empregado como executivo na gravadora, para que o negócio continuasse funcionando. Mas há tensões posteriores, que culminam com o episódio de Itatiaia, quando Roberto Menescal tentou reuni-los num hotel de montanha, sem sucesso.
Depois desse início de conversa, Paulo Coelho vai ao Twitter jogar suspeição sobre o biógrafo, e, engolido pelo turbilhão, Jotabê para de responder às perguntas. Então nos encontramos para prosseguir ao vivo a entrevista.
PAS: Você nota muito bem no livro que Raul Seixas tem uma série de canções ferroviárias, e você dá a explicação pra isso existir, que é a história do pai dele…
JM: A história do trem pirulito, o trem que ia pra Dias d’Ávila. Era o trem da infância. O pai era ferroviário, e o pai morreu… O pai, na verdade, era o ídolo dele. Era o cara que alcovitava as ambições artísticas dele. A mãe não gostava, embora depois tenha sido a maior incentivadora, como a mãe do Glauber Rocha. Mas o pai do Raul era um engenheiro ferroviário, um cara bem esclarecido, e rico. A família dele foi rica. Não que ele tenha sido na época do Raul moleque, mas a família dele, o Raul Seixas avô – são três rauls…
PAS: Existem a série ferroviária, a série sobre histórias em quadrinhos, e uma série de canções sobre cinema. O que dizem sobre Raul esses temas meio obsessivos?
JM: Deixa eu falar do trem primeiro. Os trens têm essa ligação muito forte com a infância. O pai dele tinha uma ascendência sobre a rede ferroviária, porque era engenheiro da ferrovia, e tinha essa fazendinha em Dias d’Ávila. Eles passavam os períodos deles de lazer, ele adorava esse lugar. Era o lugar em que recarregava as forças. As rodovias eram ruins, e eles iam de trem, tinham um vagão nobre dentro do trem.
PAS: Nem deve existir mais hoje em dia esse trem?
JM: Não sei, é o pirulito. Chamavam de pirulito, ia de Salvador a Dias d’Ávila, 70 quilômetros mais ou menos. Mas eu acredito que os arquétipos da morte, da passagem, ele materializou todos na passagem do trem. A passagem não só pra outra vida, mas de vários tipos de passagem ele trata nas quatro canções de trem. E ele volta a elas. Os quadrinhos são parte da formação dele. Não era um erudito desses, embora tenha exibido, em certos momentos, um Schopenhauer na lírica dele. Era um cara muito pop. Tinha uma leitura muito popular das coisas e adorava quadrinhos, e os filmes de caubói, não só os filmes, mas a sonoridade. Rick Ferreira, o guitarrista dele da vida toda praticamente, era um cara que conseguia fazer o slide na guitarra e tinha a sonoridade que remetia às trilhas de country music dos filmes de caubói. Na hora que ouviu Rick, ele se apaixonou imediatamente. E trouxe Rick, e aí você tem todos esses countries dele, os slides que abrem músicas. São importantes. Tarzan e os grandes heróis míticos dos quadrinhos fizeram parte da formação dele. É interessante que ele não se afasta disso, é como mesmo o universo do caubói, que o Clint Eastwood, por exemplo, usa pra falar de um monte de temas, como se fosse um arcabouço em que cabe tudo, mas ao mesmo tempo é uma história clássica. Qual era o terceiro?
PAS: É o cinema, você já falou, os filmes de caubói. “Sessão das Dez” (1971), essas coisas todas.
JM: Exato. Quando ele foi pro Rio de Janeiro, frequentava aqueles cinemas baratos do centro. Ele tinha uma vida bem modesta, como produtor. Mas não só isso, porque na origem, ele, menino, participou da destruição do cinema em Sementes da Violência (1955), em Salvador. Ele já era um adepto, adorava o efeito de rebelião que os filmes causavam nas pessoas. Tem muitas referências, que acho que são blocos temáticos mesmo.
PAS: Ele queria fazer cinema também, você conta.
JM: Quis primeiro a literatura. Falava que ia virar um Jorge Amado de camisa aberta no peito, escrevendo livros. O sonho dele era esse.
PAS: E tem aquela frase, “sou tão bom ator que pensam que sou cantor”, é isso?
JM: É. Isso ele falou até o final da vida, que na verdade talvez o ato de cantar em público tenha sido o que lhe causava mais desconforto. Eu não sei se isso fica claro no livro, mas ele, na última fase da vida, praticamente dá um calote, um cano…
PAS: É maravilhoso que ele briga com o público sempre.
JM: Briga com o público. O público quer ouvir as músicas de sempre e ele diz que não vai cantar e chama de merda as próprias músicas. Esse episódio aconteceu na Bahia. É uma coisa impensável hoje em dia.
PAS: É superbonito que você fala que o trem das sete chegou duas horas antes quando ele morreu.
JM: Eu fiquei atento a esses detalhes, porque ele faz uma música cheia de pequenas profecias, e a morte dele foi tão solitária, no centro de São Paulo, sozinho… Pô, tem muita coisa na morte dele que é muito simbólica, a própria morte do Luiz Gonzaga, que é o primeiro grande ídolo dele, poucos dias antes. No mesmo mês morrem o discípulo e o mestre.
PAS: Sem falar Nara Leão e Paulo Leminski, que morreram no mesmo dia, pouco tempo antes.
JM: Sim. Talvez a morte do Raul tenha feito com que as pessoas esquecessem essas mortes. Luiz Gonzaga está mais esquecido do que Raul. A intuição de Raul de juntar Elvis Presley com Luiz Gonzaga é o que faz a existência do Raul ganhar sentido.
PAS: Não li todos os livros que existem sobre Raul, mas dos que conheço o seu é o que vai mais fundo na fase dele como produtor musical, antes de ficar conhecido. É muito louco, porque tem lá dois sucessos, do Jerry Adriani e da Diana, mas na verdade é quase tudo lado B. Ele sai do produtor de lados B pra ser o astro do lado A. Como é que dá esse pulo? O que essa fase significa na história dele?
JM: Eu acho que na própria hierarquia da gravadora ele não tinha o prestígio do Rossini Pinto, do Renato Barros do Renato e Seus Blue Caps. Ele era um aspirante, então pra ele sobrava… Quando Jerry chamou ele pra produzir seu disco, a gravadora se opôs, porque achava que não era capaz. Mas, fazendo os lados B, ele conquistou um espaço que quase ninguém tinha conquistado até então. “Doce, Doce Amor” (1971) é um sucesso inacreditável. “Ainda Queima a Esperança” (1972) foi a música mais tocada durante anos. Ele tinha uma compreensão disso interessante, porque a música do Balthazar, sei cantar, mas não lembro o nome agora…
PAS: Eu não conhecia, fui descobrir com você (chama-se “Se Ainda Existe Amor”, de 1975).
JM: Foi um sucesso absurdo, eu era criança e ouvia todo dia.
PAS: Se você põe o nome da música no YouTube já aparece o nome do Balthazar, de que, confesso, nunca tinha ouvido falar.
JM: Recentemente ele apareceu num programa desses populares de televisão.
PAS: Ele é de onde mesmo? Nordestino, não?
JM: É nordestino, não lembro agora se pernambucano. Preciso checar. Mas Raul tinha isso, como ele conseguia fazer essa transição? Estava compondo “Gita” e ao mesmo tempo fazia uma música de rádio com tanta facilidade. (O produtor e parceiro) Mauro Motta é um cara bem eclético, diz que Raul era o que tinha menos preconceitos de todos, era o que tinha mais capacidade de entender exatamente o que era a aspiração das massas naquele período. Ao mesmo tempo é o cara que fez a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista. Está certo que Sérgio Sampaio é uma grande presença ideológica no álbum, mas é uma ópera, cheia de invenciones sonoras.
PAS: É a tropicália deles?
JM: Eu acho que sim. Você tem os elementos quase iguais, né? Tem dois baianos (Raul e Edy Star), uma paulistana, Miriam Batucada, como os Mutantes…
PAS: O capixaba como Sérgio seria o Roberto Carlos, aí não bate.
JM: É, aí não bate. Mas o espírito do Sérgio Sampaio era muito pop. Ele tinha uma leitura muito interessante da música pop. E eles fizeram esse disco (Sessão das 10, 1971), que foi o que você sabe, um fiasco. Mas como é que um cara desses produzia “Ainda Queima a Esperança”? É um leque muito amplo, percebe?, que me chamou atenção. Foi por isso que fiz o levantamento da produção dele de música dita cafona. Foi ali – ele mesmo diz, tem uma frase dele lá no meio – que foi o laboratório.
PAS: Convivendo com você, embora a gente não falasse tanto sobre isso, eu percebia que você estava fascinado pela fase tanto da Grã-Ordem quanto dos cafonas. Você foi fisgado por esse lado do Raul, ou estou enganado?
JM: Foi, foi. Porque é aquela fase da juventude da gente, em que a gente faz as coisas por uma paixão absurda, muito menos pela exigência fonográfica. Raul não tinha esse compromisso ainda. Pega o leque de discos produzidos, Tony & Frankye, por exemplo, é antecipador de um certo tipo de soul music. Foi feito em plena era de reinado do Tim Maia. É menos conhecido. Foi reeditado em vinil, mas é muito pouco conhecido, e o Tony Bizarro está morrendo com Alzheimer numa clínica em São Vicente, esquecido. Mas era Raul o produtor. Raul viu os dois, disse “esses caras têm o que eu preciso”. E é black music. (“Quero ler gibi, quero rir pra dormir, aprendi/ que a noite está no fim”, diz “Trifocal”, de Raul, de 1971, “filme de terror, um robô estrangulou, já matou/ mais de 30 de uma vez”, “te amo como o quê/ te amo pacas/ pode crer”.)
Isso me interessou sobremaneira, como posso dizer?, como crítico, como jornalista. Essa é uma fase muito rica, muito rica. Claro que você tem outras fases, aí a natureza do gênio criador se expressa, com em Novo Aeon (1975), Gita (1974)… Eu acho Krig-Ha Bandolo! (1973) brilhante. O próprio Menescal ficava assustado quando ouvia as músicas que ele trazia. Quando viu, Raul já tinha um disco.
PAS: Menescal, só pra citar, vinha de toda uma história com a bossa nova e tinha virado produtor musical nesse momento também, como Raul.
JM: Exato. E Menescal é meio como um padrinho artístico do Raul Seixas. Foi ele que deu a chance pro Raul, viu nele o talento. E quando finalmente Raul veio com um LP praticamente pronto ele se assustou. Era maior do que qualquer coisa que alguém pudesse imaginar dez anos antes na Bahia.
PAS: Uma coisa que eu não sabia e achei importante é que a gravadora Philips contrata a trupe, não só o Raul. É isso mesmo? Paulo Coelho acaba contratado pela gravadora porque era parceiro do Raul?
JM: Sim. Aí era uma estratégia de manter perto o núcleo criativo daquele artista. Eles começaram isso, com André Midani. Foi ele que entendeu que tinha um senso comunitário na produção artística dos caras.
PAS: Você falou do Menescal, mas qual você acha que é a importância do Midani na história do Raul?
JM: Olha, Midani deu ao Raul a grana, a possibilidade de fazer megaproduções. Abriu as portas pra ele como já um artista maiúsculo, um artista de ponta da música brasileira. Até então ele não tinha esse status, quem deu foi o Midani. Embora houvesse uma rusga com “André Sidani” (refere-se ao personagem-paródia que aparece na canção “Conversa pra Boi Dormir”, de 1980)…
PAS: Mas isso foi bem depois, quando Midani contratou Raul pra Warner e não foi tão bem-sucedido. Você concorda com essa avaliação?
JM: Exato. Concordo. A ruptura deles é justamente quando Midani tenta adequar Raul e Paulo a esse tipo de núcleo de produção que tem muito a ver com a época que depois a gente ficou conhecendo como era yuppie. Raul e Paulo não se adequaram àqueles núcleos publicitários de criação, com aquelas reuniões.
PAS: Você acha que isso era um embrião do yuppismo?
JM: Eu acho que era. Tanto é que vingou, né, de certa forma? A partir dali você tem uma produção industrial muito mais rica, ou melhor, muito mais prolixa. Muita coisa produzida a partir dali tinha um senso de indústria. E Paulo e Raul vinham de outra escola, mais artesanal. Mas se adaptaram rapidamente também.
PAS: Raul, hippie, tinha um lado pré-yuppie?
JM: Tinha. Gostava de carrões, de um tipo de vida… Mas era muito ligado às coisas da formação, às raízes, ao Waldir Serrão, a quem até dedico o livro. É tocante isso, porque ele tenta arrastar todo mundo que foi da infância e da juventude dele, tenta levar pra junto dele pra usufruir daquele prestígio, daquele mundo que eles sonhavam juntos. Essa é a parte mais tocante, eu acho. O próprio Edy Star, ele não deixou o Edy na Bahia. Levou o Edy. E os amigos nem gostavam tanto do Edy, achavam… Tinham um preconceito, né?
PAS: Devia ter uma homofobia ali?
JM: Sim. Tem essa personalidade meio contraditória do Raul. Ao mesmo tempo que às vezes é acusado de misoginia, por causa do “Rock das Aranha” (1980), eu não conheço outro artista da música que tenha colocado as mulheres parceiras tão em evidência e tão próximas da sua produção quanto Raul Seixas. A música “Let Me Sing, Let Me Sing” (1972) é da primeira mulher, Edith Wisner. Gloria Vaquer canta em várias músicas dele e era parceira de doideira. E a Kika Seixas tem muitas parcerias com ele, em Metrô Linha 743 (1984). Ele trouxe as mulheres pra sua produção. É um cara de muitas faces, de personalidade complexa. Não é tão fácil de ser maniqueísta em relação a ele.
PAS: Isso lembra Tim Maia. Quando Tim fala “só não pode dançar homem com homem/ e nem mulher com mulher” (“Vale Tudo”, de 1982), ao mesmo tempo, a reação a isso faz com que as pessoas se voltem contra e dancem. Não aconteceria na mesma rapidez se não tivesse a música.
JM: Exato. E Pedro, cá entre nós, nós dois sabemos disso, a música tem um outro poder também. “Rock das Aranha” é picaresca, tem um espírito que não é propriamente de confronto. É diferente.
PAS: Traz à tona o que um monte de gente diz no privado.
JM: Ela evidencia. Na época não se falava ainda, era tabu total. Você sabia que existia, mas não podia falar. Com o Raul não tinha isso. Era uma coragem.
PAS: Eduardo Araujo e Silvinha têm uma música anterior sobre isso (correção: “Sapataria Progresso”, de 1981, não é anterior), em que falam das lésbicas da música popular brasileira, sem meias palavras, de modo até grosseiro.
JM: Que não foi tão combatida?
PAS: Não foi tão conhecida. Não foi sucesso.
JM: A do Raul tem uma repercussão enorme. Mas ele fazia algumas coisas por pura pirraça às vezes. Também tem esse temperamento moleque dele, que às vezes redundava em umas coisas de interpretação complicada.
PAS: Vamos voltar ao assunto que está engolindo seu livro? Ele tem um tanto de revelações ou pelo menos suspeitas, digamos, pesadas, né? Fala do Carlos Alberto Brilhante Ustra, do Esquadrão da Morte e do episódio com Paulo Coelho. Você pretendia entrar nisso?
JM: De jeito nenhum, eu não tinha a menor ideia. Você vê, estou conversando com você agora e estou ficando fascinado com o que Raul me ensinou sobre a própria vida dele. Você pesquisa e acaba equacionando coisas sobre as quais nunca teve clareza, mas também aparecem os esqueletos, os fantasmas. O caso do segurança que era do Esquadrão da Morte, da Scuderie le Cocq, é pouco conhecido. De certa forma é uma exibição pública do Raul de, sei lá, temeridade, de um desrespeito até daquilo que acontecia naquela época.
PAS: Jota, ouso dizer que era comum, né? o Sérgio Fleury era segurança particular do Roberto Carlos. Não sei se Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham segurança, mas se tivessem seria um desses.
JM: Pode ser. É, talvez você tenha razão. Eu não analisei sob esse aspecto. Eu simplesmente coloquei à luz pra que isso seja examinado. A personalidade do Raul passa por isso. Passa, por exemplo, por ter um sujeito que era temido por todos como segurança. Foi uma fase, que tem muito a ver com a idolatria dele pelo Elvis.
PAS: O Coronel… Como era mesmo o nome do coronel do Elvis?
JM: É com W, não é? Coronel Parker.
PAS: Também devia ser um desses.
JM: Sim, sim, eram ligados. Elvis pediu um distintivo honorário pro FBI. Raul tinha muita ligação com esse universo do Elvis, da exibição do seu poderio, digamos assim, do seu poder mesmo. Ele está usufruindo do poder. Ao mesmo tempo, por exemplo, eu não consegui localizar histórias cavernosas ou algum ato de perversidade no negócio dele com as ordens secretas. Paulo Coelho diz que foi bastante longe nisso. A questão da proximidade com os personagens da ditadura era inevitável, eles iam aparecer a qualquer momento. Eu não sabia dessa coisa do Ustra, fiquei sabendo.
PAS: Como é o nome do guru mesmo?
JM: J.R.R. Abrahão. Abrahão foi um dos últimos personagens místicos ali da companhia do Raul, e tinha amizade com o coronel Ustra. Mas não era só isso, ele tinha trânsito.
PAS: Ele ajudava a liberar músicas do Raul na Censura, não é isso?
JM: Ajudou a liberar músicas do Raul.
PAS: É até uma possível razão pra ficar próximo dos caras, pra tentar cooptar eles?
JM: Talvez não houvesse alternativa, pra um cara como ele, senão ficar próximo de um ou outro cara desses. É lógico que eu não sei o preço. Qual é o preço de você se aproximar do lado escuro da rua?
PAS: Que, vamos lembrar, naquele momento era o lado luminoso, o que estava governando, com apoio da sociedade. Como hoje, aliás.
JM: Tinha apoio da sociedade, exato. E ainda se discute, se apregoam os méritos daquele tipo de gestão.
PAS: O próprio presidente da República atual.
JM: O próprio presidente da República, que foi quem fez o Paulo escrever o artigo no Washington Post. Foi o Jair Bolsonaro, que chamou pra comemorar a ditadura militar, que ele chama de revolução. O golpe. Ele convocou – foi um fiasco, aliás, não teve comemoração nenhuma, e isso desmente a gente sobre apoio da população. Não teve apoio público a ditadura militar, neste período de insanidade que a gente vive. Mas o Paulo só escreveu o artigo no Washington Post porque ficou revoltadíssimo com a ideia de que alguém pudesse estar comemorando aquilo que fez ele passar aquele inferno em 1974.
PAS: E nesse artigo deu a entender que havia algo errado com o Raul? Foi aí que você pescou essa história?
JM: Esse foi um dos indícios. Porque ele falava que procurou várias pessoas quando saiu da cadeia e não encontrou apoio. Quando fala “procuro o cantor”, aquilo me deu uma certa angústia.
PAS: É um terreno familiar. Tem “o cantor” do Belchior e tem “o cantor” do próprio Raul Seixas. Na hora fiz confusão na minha cabeça, o Paulo Coelho está falando d”o cantor”? Só que foi mil anos depois.
JM: Sim, foi agora, neste ano.
PAS: Mas existia essa treta d'”o cantor”, “eu não sou apenas o cantor”.
JM: Exato, lembra o verso da música do Belchior. Mas não sei se Paulo estava com ironia ali. Era a única forma de descrever o parceiro dele, que era “o cantor”. Ele era só letrista, não cantava.
PAS: Foi uma opção dele não citar o nome do Raul?
JM: O artigo foi editado. Cortaram nomes, cortaram uma parte do texto. Não foi publicado inteiro. Mas o cantor que trabalhava com ele e que certamente ele procuraria, porque era seu parceiro, era o Raul. Então eu fui atrás de equacionar essa história. Como assim, você sai de um período desse, procura o seu parceiro e ele não te atende? Paulo acha, falou sobre isso, que Raul estava com medo.
PAS: Pra mim essa história é um grande choque no sentido de que sempre achei a obra deles dois juntos maciça, que forma um corpo inteiro.
JM: Você diz a parte posterior?
PAS: A posterior e a anterior. Só que grande parte das canções foi feita depois desse episódio.
JM: Gita (1974) foi feito antes.
PAS: Mas aí tem Novo Aeon (1975) e Há 10 Mil Anos Atrás (1976), dois grandes discos. “Meu Amigo Pedro”…
JM: O Novo Aeon tem muito a divisão dos dois com Marcelo Motta, que é o sacerdote da OTO. Aí o Paulo já tinha rompido, isso está no livro do Fernando Morais, O Mago (2015). Paulo rompeu e quase foi às vias de fato com Marcelo Motta.
PAS: Isso é durante Novo Aeon?
JM: É no retorno do Paulo, quando eles começam a produzir Novo Aeon. E aí, quando ele volta, encontra Marcelo Motta já entronizado como letrista – como letrista não, mas como um personagem. Ninguém sabe direito em que Marcelo Motta contribuiu nessas canções que assina. Mas isso desagradou muito o Paulo. Então ele trabalhou, fez as músicas, tem parcerias dos três no Novo Aeon. Mas Paulo fez exigências, de que algumas coisas fossem retiradas. Já estava numa outra levada, que era talvez um retorno à origem cristã dele, contra essas coisas do ocultismo.
PAS: Jota, a primeira a repercutir seu livro foi a Folha de S.Paulo, pegando os traços mais polêmicos. Aí, bem, vem Paulo Coelho e diz: “Pensei que ia levar isso pro túmulo”. Dois dias depois, ele dá um pinote e fala o contrário. O que está acontecendo? O que é esse pinote?
JM: Eu interpreto isso como uma… uma sombra que você tem sobre você, que você carrega com você. Você consegue dar um grito de libertação, mas daí talvez o tempo que a gente vive não esteja preparado pra esse grito de libertação, sabe?
PAS: Você tem indícios disso, pelos últimos dias?
JM: Pela reação das pessoas, sim. Há um ímpeto condenatório que é igual ao da ditadura militar.
PAS: De todas as partes?
JM: Exato, sem julgamento. As pessoas estão blocando opiniões, nesse bloco se juntam todos, no outro se juntam todos os outros, não admitem contraditório. Não admitem rever as coisas. Eu acho que Paulo se sentiu liberado, depois sentiu que a liberação dele poderia ou parecia ser uma condenação pros outros. É como se a libertação de um indivíduo fosse penosa pras outras pessoas. Esse é o sentimento dele. Estando certo ou errado, é o sentimento dele. Então teria de ser respeitado. Eu achei. Mas, como não foi respeitado, ele sentiu que vive talvez num mundo mais complexo do que aquele que já viveu até. A ressonância social é muito maior hoje.
PAS: Dá pra ver que ele hesita entre falar sobre esse assunto e não falar.
JM: E eu entendo.
PAS: Ele falou pra você sobre esse assunto?
JM: Ele falou sobre esse assunto, eu posso dizer agora que falou porque ele rompeu o off.
PAS: Seria uma entrevista em off do seu livro?
JM: É um off do meu livro, ainda. Por quê? Porque eu o consultei sobre algumas coisas, algumas músicas, e ele me pediu o off. Então o off está respeitado no livro, se você olhar os entrevistados que estão nominados – que não são todos, porque tem muito off -, você vai ver que o Paulo Coelho não está, porque foi um pedido dele. Quando ele tuitou que tinha as minhas mensagens arquivadas, como se fosse uma advertência ou coisa parecida, eu entendi aquilo como uma quebra do off, que não compreendo. Mas eu não vou quebrar o off. O que estou falando pra você é simplesmente que ele falou, não o quê. O conteúdo que ele me falou não pretendo tornar público de jeito nenhum. A menos que seja muito necessário, porque também não posso sofrer acusações sem poder me defender.
PAS: Está acontecendo meio um princípio disso, por parte do Paulo Coelho. Ele dá a entender que você falsificou algum documento.
JM: É, isso é grave. Mas eu respondi a isso, dizendo o que realmente aconteceu. Ele me chamou a atenção pro documento.
PAS: Ou seja, já existia no mínimo um desejo dele de tirar esse esqueleto do armário?
JM: Sim, ele tinha essa intenção. O que eu falei e fiz posso provar porque é fácil, qualquer repórter pode ir ao Rio de Janeiro, no Arquivo Público, em Botafogo…
PAS: Ao menos que, em tempos como os que estamos vivendo, alguém suma com o documento.
JM: Talvez, mas mesmo assim eu tenho a fotografia original dele. Tenho a fotografia do carimbo de arquivo, no verso. Quando vi o documento em papel, não tive dúvidas de que ele era autêntico, porque estava na minha frente, num arquivo público. Além dele, tinha outros documentos. Nenhum deles me permitiu chegar… Depois de muito pensar e refletir, esse foi o último tema fechado, muito espinhoso, cheguei à conclusão de que não é conclusivo. Eu não posso tomar aquilo como verdade.
PAS: Imagino que você tenha debatido isso com a editora, inclusive.
JM: Sim, o editor concorda comigo.
PAS: O nome dele?
JM: Flávio Moura. Ele me aconselhou inclusive a reavaliar aquilo, ver o que era mais factível. Porque é um documento ambíguo mesmo. Agora, eu não falo só do documento. O documento virou isso tudo porque de certa forma ele não era conhecido. Ele até era conhecido, porque estava numa tese de doutorado, mas…
PAS: Não era inédito.
JM: Não era inédito. Mas nunca foi examinado, nunca foi interpretado à luz das datas, dos fatos. Ao mesmo tempo, há uma série de fatos, de narrativas. Parte deles está bem descrito no livro do Fernando Morais. Permitem às pessoas fazerem seu juízo – não juízo, porque juízo é pesado, mas tirarem uma conclusão sobre isso.
PAS: Não sei se eu entendi, nesse tema o Fernando Morais foi até certo ponto, mas não chegou neste ponto?
JM: Ele não conhecia esse documento. Ele até acha bom que eu tenha publicado, mas acha também que o documento é inconclusivo. O documento não trata de um depoimento do Raul, não tem as palavras do Raul. É um araponga, um policial que diz que vai se valer do Raul Seixas, que vai utilizar o Raul. Ele pode simplesmente, sei lá, seguir o Raul. É um absurdo pensar, mas eles eram muito pressionados na época, eram muito monitorados, seguidos. Eu acho que é uma investigação que talvez ainda não esteja concluída. Pode ser reaberta. Podem surgir dados novos.
PAS: É importante reabrir, Jota? Qual é a relevância? Já tem um monte de gente te criticando por ter tirado esse assunto do “tumbão”.
JM: Claro, tem um monte de gente criticando. Só porque eu tive a ousadia de abordar o tema da suspeição, ganhei detratores.
PAS: Nossa colega Cynara Menezes fala que Raul Seixas não tem como se defender, mas é um ponto de vista que acabaria com toda a historiografia das coisas.
JM: Exato. Não sei, eu discordo da Cynara, porque você vai examinar, por exemplo, os grandes fatos históricos, não é preciso que todos estejam vivos.
PAS: Nem é possível.
JM: Tem faculdades de história pra ensinar como se pesquisa. Tem documentação. Tem você cotejar as fontes, comparar, aproximar os fatos. O que o jornalista faz? Ele aproxima os fatos, joga luz sobre eles. Não é impossível de ser feito. Mas é evidente que ganhou uma dimensão de disputa, uma disputa pela primazia não só da honestidade, mas também da virtude. São coisas que só fazem sentido num ambiente linchatório.
PAS: Que é o que a gente vive…
JM: É, cada vez mais, com essa facilidade de as pessoas emitirem juízos devastadores pra vida dos outros. O cara não pensa um minuto antes de colocar uma coisa no Twitter. Pense um pouco, reflita. Outra coisa: o livro, você leu, tem muitos aspectos. Não é só esse. Esse é importante.
PAS: Eu atropelei minha própria pergunta. Por que você optou por mencionar e não deixar pra lá, como talvez outros já tenham feito? Qual a relevância do episódio?
JM: Porque notei que era um tema muito doloroso, muito presente na vida do escritor Paulo Coelho, que é o maior parceiro do Raul Seixas, ou o parceiro mais destacado – e não só do Raul, de Rita Lee e muita gente. É o escritor mais bem sucedido do país – vendeu 350 milhões de livros pelo mundo. Eu achei que era importante. Era importante investigar. Não que eu tenha sido bem sucedido. Não estou dizendo isso. Estou dizendo que ir atrás da história era uma obrigação minha como biógrafo. Ou então fazer uma biografia laudatória, toda cheia de fatos maravilhosos, e tudo bem, você não tem problema. Paulo me acusou de querer vender livros.
PAS: Como se ele também não quisesse vender os dele…
JM: E, tirando isso, é uma acusação ingênua, naïf. Ninguém faz um livro dessa natureza, com essa preocupação, pra sair vendendo. Você faz um livro, no meu caso, que vai revelar um aspecto da MPB, vai trazer um tipo de personagem que vai explicar coisas pra gente, no cruzamento com outras coisas.
PAS: É esta a minha pergunta na verdade, por que seria importante saber que o Raul Seixas talvez tenha delatado o parceiro dele?
JM: Era importante porque, pro próprio Raul, pairar uma dúvida – esse tema é abordado em alguns grupos de fãs – não é bom. Cria-se um burburinho que não tem sustentação prática. Não sei se essa é a resposta mais adequada.
PAS: Vou te dar minha opinião, embora esteja aqui na condição de perguntador. É absolutamente relevante saber o que aconteceu. Por que preservar lados mais obscuros da vida de qualquer pessoa pública?
JM: É. É a escolha mais delicada do biógrafo, que é falar das coisas que podem mexer com suscetibilidades. Nenhum biógrafo faz isso por marketing, eu acho.
PAS: Se formos sair desse terreno mais chão, é a natureza do Raul. Ele é destrutivo. Pode estar hoje destruindo um aspecto da própria memória dele, por seu intermédio. Como ele fazia nos shows, brigando com os próprios fãs.
JM: Sim. Sem falar que era auto-destrutivo, né?, uma coisa que tinha um confronto com a própria idolatria também. Ele não gostava muito disso, gostava de viver como um homem comum. Raul não foi um cara que foi cooptado, embora tenha tido uma fase em que se inchou. Ele gostava de viver uma vida comum, tranquila. Ele tinha problema com as famílias. Teve problema com as filhas. Isso pra ele era angustiante, o deixou agoniado. O problema que teve com a primeira filha, que foi proibido de ver, e com a segunda filha, que teve um problema de saúde e foi embora pros Estados Unidos, e ele não conseguia repatriar, porque a carreira estava em declínio. Não conseguia fazer a ponte, ir pros Estados Unidos, voltar e trazê-la. Ele escreveu cartas pra ela se queixando dessa angústia. Isso as pessoas não sabem. Pra eles Raul é só aquele cara durão, cheio de frases de efeito…
PAS: Porra-louca…
JM: …Capaz de beber tudo e não cair, ou cair. Enfim, tem uma imagem do Raul que o mostra sempre como um cara muito forte, mesmo fraco. Mesmo quando ele estava se desmanchando, pros fãs ele era um super-homem. Então, quando você aponta algo nesse universo que parece não ser compatível com a ideia do super-homem, aí tem o choque, a reação.
PAS: Talvez inevitável.
JM: Talvez inevitável, porque você não pode evitar essas coisas. Não é a verdade. Não é que eu seja o tarado da verdade. Há alguns fatos que não interessam como biógrafo, porque vão repercutir na vida de pessoas que não têm muito a ver com aquilo, não faz sentido você investir. Sempre cito o caso do Belchior, o fato de ele ter uma amante. Teve, ela era casada na época e é casada até hoje. Por que eu vou revelar isso?
PAS: Mas se você não revelou por que está falando agora?
JM: Eu não revelei o nome. Estou falando como exemplo, porque Belchior já está longe e não está com essa comoção toda em torno, então posso falar. São fatos de que o biógrafo pode abrir mão, por exemplo. Agora, nesse caso, Paulo Coelho é o centro da obra de Raul. Os dois juntos, não sei se você concorda comigo.
PAS: São indissociáveis, até hoje pro Paulo Coelho, inclusive. Quando chega a mosca lá no documentário, isso é evidente. Você falou sobre não ser o tarado da verdade, acho até que você foi leve com as tretas dele com Belchior, com os tropicalistas. Você não quis explorar muito, não sei por quê.
JM: Acho que o próprio Raul usava essas tretas mais como uma afirmação da individualidade dele no mundo da música. Não era um cara que nutria uma briga. Por exemplo, a treta entre Belchior e Caetano é mais séria, porque tem um contexto ideológico ali, tem um confronto de ideias sobre o mundo. A do Raul era muito o temperamento dele, e também usava isso pra se contrapor, dizer “olha, eu não sou desse grupo”. Mas ao mesmo tempo eu conto ali a história com Silvio Brito, de como ele reconheceu um rival no Silvio Brito, quando Silvio Brito surgiu. Se você notar bem lendo o livro, Silvio Brito começou a ganhar espaço, a vender muito disco, com o mesmo tipo de… Silvio Brito na verdade tinha um coté mais fanfarrão.
PAS: Mais cafona também, como se fossem os fantasmas da fase de produtor do Raul vindo à tona.
JM: Exato. Mas na época foi levado bem a sério, na primeira fase dele. Depois ele virou um cara mais debochado, assumiu a própria autocaricatura.
PAS: Sobre o momento atual. A Folha chegou primeiro, catou de cara que era a coisa combustível da história. O que tem acontecido depois? Não sei se saíram mais coisas, se repercutiu em outros veículos.
JM: Saiu, saiu n’O Globo.
PAS: Te entrevistaram, ou não?
JM: Sim. A Zero Hora me entrevistou também.
PAS: Todos pegando esse caso também?
JM: Também. Algumas rádios, a Rádio Metropolitana de Salvador, a Rádio Bandeirantes de São Paulo, O Tempo de Belo Horizonte. O Brasil inteiro está querendo falar sobre esse cara.
PAS: Eles estão preocupados com a polêmica ou com o livro?
JM: Sabe o que está me impressionando? Que os colegas têm uma consciência muito grande do papel do Raul Seixas. E têm um interesse legítimo no livro. É óbvio, eu sou jornalista, você é jornalista, a gente sabe que um ponto como esse acaba se tornando de interesse imediato.
PAS: De incêndio numa época de incêndios.
JM: De incêndio numa época de óleo na praia. Só que tem muitas outras questões que são interessantes. Outra coisa é que o livro celebra a figura do Raul. É legal que você possa falar da parceria dele com Sérgio Sampaio, de Raulzito e Os Panteras, daquela coisa heróica no Rio de Janeiro. Alguns estão plenamente informados disso já.
PAS: Tem uma frase que você usa que eu gosto, que Raul praticava um “anti-intelectualismo militante”. É isso que você enxerga do Raul?
JM: Acho que sim. Ele se contrapunha a essa coisa de elaboração formal muito refinada, de uma forma muito pensada. Era intelectual, porque se é pensada é intelectual. Mas ao mesmo tempo é anti-intelectual, porque vai contra alguns princípios, especialmente também porque Raul era místico. Ele acreditava em coisas que não se demonstram, desde os discos voadores, a vida extraterrestre, até magia e meditação, pra citar uma outra música (cantarola “Eduardo e Mônica”, da Legião Urbana). Ele foi fundo nessa convicção de que não é só a formulação do intelecto, da razão.
PAS: Na realidade era um intelectual que conseguia uma comunicação direta com o grande público, com o povo. Isso é único, né?
JM: Nisso ele é bem singular, né? Porque, ao mesmo tempo, também você não pode dizer que o Raul Seixas fazia proselitismo. Ele não era demagogo. Ele não falava pro povo o que o povo queria ouvir. Ele falava pro povo, mas não o que o povo queria ouvir. Ele chamava o ouvinte às falas. Foi isso que eu quis dizer com anti-intelectualismo militante. Também era um cara que tinha uma formação musical complexa. Foi pros Estados Unidos e se encantou com o Yes, com a fase mais pop do Yes.
PAS: Onde você situaria o Belchior no anti-intelectualismo militante?
JM: O Belchior é o próprio intelectual, né?
PAS: Mas é outro que consegue uma comunicação direta com o povo.
JM: Pois é, pois é. Então, no caso do Belchior eu acho que a nordestinidade dele era o mais forte. Apesar daquele negócio do Raul de “eu sou baiano de Quenguenhem”, Raul era mais cosmopolita que Belchior. Belchior era um menino de Sobral (CE), só que um menino de Sobral que tinha lido Wittgenstein. Só que ele foi forjado – eu sei disso porque também sou de regiões parecidas, você também é – em um lugar onde o veículo de comunicação era um alto-falante na cidade. Então ali ele forjou as influências primeiras dele, e acho que isso vai até o final. O primeiro disco do Belchior é uma das coisas mais lindas do mundo. Se você ouvir, “ah, meu senhor/ dono da casa”, essa compreensão é das mais profundas que eu já encontrei na música brasileira, da identidade social. Os dois são, né?, Raul e ele.
PAS: Raul mascarando atrás de uma coisa norte-americana.
JM: Atrás do “uah-bap-lu-bap-lah-béin-bum”. Ele mascarava isso com aquela indumentária. Quando ele viu, em 1971, a chance de subir no palco, ele sabia que era somente mascarado que ia conseguir atenção.
PAS: É um tipo diferente de Ney Matogrosso?
JM: Eu acho, tem tudo a ver. É a caricatura. Ele sacou que a caricatura era o que poderia catapultar ele pro olho do público, pras grande plateias. E aí ele se transforma naquele cara que usa casaco de couro, gel no cabelo. Você tem que ver que ele foi muito amigo do Chacrinha, foi protegido pelo Chacrinha. Por quê? Porque o Chacrinha reconhecia nele um clown, como ele também.
PAS: Você não menciona isso, a menos que eu esteja errado.
JM: Só num momento em que o Chacrinha abriu pra ele um programa inteiro, e ele foi caminhando num jegue, e fala que era um elefante. Não era, era um jegue. O programa inteiro estava preparado cenograficamente pra ele. Isso é uma coisa de um grande carinho. Porque Raul encarnou, ali no programa do Chacrinha, aquilo que Chacrinha conhecia como showbiz. Era o roqueiro, às vezes até meio pejorativo, o roqueiro sertanejo. O roqueiro sertanejo tem dupla função numa sociedade, na mídia, quebrar o paradigma… É meio bizarro, tem uma bizarrice nisso, e ao mesmo tempo tem um componente de inovação, que é o que Raul intuiu: se ele pudesse fundir as duas coisas, ele ia ser eterno. Uma coisa que Paulo Coelho fala, quando Raul morre, quando ele sabe da notícia lá nos Pirineus – tem um vídeo no YouTube -, é: “O desgraçado ficou eterno”. Essa frase é muito sintomática.
PAS: Tem uma tensão entre eternidade dele e esse lado folclórico, os fãs chatos, o “toca Raul”. Tem uma parte do público que antipatiza com Raul Seixas, até hoje. O que predomina?
JM: Falo disso em algum momento, acredito que quem antipatiza com ele, porque acha ele pouco refinado, é o público que colocou ele na gaiola de “Maluco Beleza”. É um público burguês que viu essa forma como uma forma de isolar todo um contingente de proletários, de gente inoportuna.
PAS: A nossa famosa elite intelectual.
JM: Exatamente. Os fãs chatos, Raul viveu com eles. Raul quase foi linchado por eles, várias vezes. Não é um fenômeno novo esse. O idólatra é pronto pra linchar também.
PAS: É uma pessoa perigosa.
JM: É, está pronto pra adorar e pra linchar. E como Raul morreu, deixou de ser incômodo pra ele, agora quem falar do Raul é que é incômodo (ri). Estou falando assim, mas vi também muito senso de humor. Acho que Raul virou muitos fãs pra rirem, pra se vestirem como na capa de Há 10 Mil Anos Atrás.
PAS: Você mencionou pra mim que existem fãs bolsominions.
JM: Existem muitos fãs bolsominions, o que é uma contradição inacreditável.
PAS: Ou não, pode ser o lado barra pesada do Raul também.
JM: Se manifestando? Não sei. Eu acho que, por exemplo, Raul politicamente, se você analisar do ponto de vista artístico, não das declarações, não há quase reacionarismo. Não há.
PAS: É de esquerda.
JM: É de esquerda, é libertário. É um libertário clássico.
PAS: Comportamentalmente é avançadíssimo.
JM: Agora, pessoalmente é um cara que faz aquilo que fez no apartamento de Copacabana com traficantes, se mete com esse tipo de gente. É um cara cuja vida é uma gangorra.
PAS: Sem filtro, né? Mas é legal que a obra não. Talvez isso valha pro Paulo Coelho também.
JM: A obra tem uma integridade fodida. Por que tem tantos fãs bolsominions?
PAS: Também não sabemos se são tantos, ou se são barulhentos.
JM: É, isso é verdade, seria leviano falar isso. Mas tem.
PAS: Ou seja, eles já pegaram no seu pé?
JM: Já, já. Já me chamaram de petista.
PAS: Mas é pela polêmica? O livro nem chegou ainda.
JM: Não chegou, é mais pela repercussão do livro. Como não foi lido ainda, eu recomendo lerem o livro. Mas o cara me acusa de petista e de sectário. Aí você fala, bom, sectário?
PAS: Onde entra o petismo, que eu não entendi?
JM: Eu também não entendo. Vejo que tem uma corrente que acha que fazer uma aproximação do Raul com os dias de hoje é uma heresia.
PAS: Ou com a ditadura lá atás também?
JM: Ou com a ditadura lá atrás também.
PAS: Ou seja, amam a ditadura, mas não querem que o ídolo deles seja relacionado com ela?
JM: É uma contradição, tem razão.
PAS: É igual quando Bolsonaro se diz um democrata. Querem ser ditadores, mas não querem ser chamados de.
JM: É. Se diz um democrata que vai fazer triagem cultural, de produtos culturais, de artefatos da cultura. Ele acha que alguns não podem ser feitos. Esse é o democrata que eles entendem como democrata, que é o oposto do que Raul Seixas significava, que era a liberdade total, inclusive a liberdade mais subversiva do que a gente conhece, de governos.
PAS: “Todo homem tem o direito de morrer quando quiser.”
PAS: O cadáver do Raul não se decompôs? Que história é essa?
JM: Até 2012, não. O sobrinho de Raul, Ivan Seixas, é diplomata do Itamaraty, e cuida das questões relativas à família. É filho do Plínio Seixas, que também é um cara muito centrado, embora não queira muito mais falar sobre Raul. Tem a vida lá dele de engenheiro. Eu entendo isso, não fico enchendo o saco dos caras.
PAS: Você tentou falar com Plínio e ele não quis?
JM: Não, nem respondeu. E falei, está bom, eu respeito. Não quer falar, não fala, e eu vou tentar achar o que ele produziu sobre isso. Não são as fontes primárias o tempo todo, você sabe como é, você faz opções. E Ivan Seixas foi incumbido de ver essa história, porque a família precisava do jazigo. É normal, depois de um certo tempo você retira os ossos, coloca numa caixa, coloca num espaço mais exíguo e abre pra novos membros da família. No clã dos Seixas foram fazer isso com Raul.
PAS: A mãe morreu? O pai?
JM: Já, os dois. E o Ivan é amigo do Sylvio Passos, disse: “Sylvio, nós chegamos lá, não deu pra fazer, o cadáver estava intacto”. Ele tomava antibióticos. Não é que estava intacto, mas não virou osso. Tem um corpo lá. Quando os caras lerem isso vão ensandecer.
PAS: Isso é uma revelação do livro, nunca vi isso em nenhum lugar.
JM: É uma revelação, ninguém sabe disso.
PAS: Por que, apesar de ter plagiado um monte de músicas, Raul Seixas nunca foi acusado de plágio?
JM: Eu atribuo isso a dois fatores. O primeiro é a desorganização da questão do direito autoral naquela época. Hoje em dia não seria possível. Você vê que isso começa a se tornar um problema pra indústria musical com o hip-hop.
PAS: Com os samplers.
JM: Quando o rap chega se apropriando de trechos inteiros dos grandes, Michael Jackson, que é uma mina de ouro pra indústria fonográfica, aí eles começam a processar, e começam a ser obrigados a dar crédito. Mas Raul produziu numa época anterior a isso. No caso do Raul existe muita coisa que, de fato, é uma reinvenção, é uma reapropriação.
PAS: Só fazendo um atalho, Roberto Carlos na mesma época plagiou um sucesso do Elvis Presley e foi penalizado. Mas Raul Seixas, não.
JM: O Roberto tinha uma dimensão maior que o Raul como vendedor de discos.
PAS: O plágio dele é “Caminhoneiro” (1984).
JM: Mas “Caminhoneiro” já é dos anos 1980, bem adiante. O Raul teve muito plágio nos anos 1970. E tem também nos anos 1980. Obviamente ele era um cara que sabia mascarar habilmente alguns empréstimos.
PAS: Eu acho legal que quando ele plagia a melodia não plagia a letra, e vice-versa. Em “10 Dez Mil Anos Atrás” ele plagia a letra, mas não a melodia do Elvis.
JM: É, mas não tira a questão da apropriação. Porque na verdade um artista anteriormente criou aquilo.
PAS: Mas é o que os tropicalistas chamariam de antropofagia.
JM: Pode ser.
PAS: E aí pode.
JM: Aí pode. Eu sou da corrente que perdoa todas as apropriações dele. Eu sou um libertário nesse sentido.
PAS: Mas esta é uma questão idiota, é falta de imaginação que leva alguém a plagiar?
JM: Não.
PAS: No caso dele, não.
JM: No caso dele, não. No caso dele era excesso de imaginação.
PAS: Que é também o que fez Luiz Gonzaga plagiar “Asa Branca” do cancioneiro popular.
JM: Exato. “Luar do Sertão” é um plágio.
PAS: Assim como Walt Disney registrou a Branca de Neve.
JM: E o Zé Carioca, que é uma criação brasileira.
PAS: Nossos ídolos não têm caráter?
JM: Ah, não, não concordo. Existe uma coisa, que é talvez o que os índios tinham já, e isso é Oswald de Andrade, de absorção do invasor. O invasor cultural era a cultura americana, a cultura do rock’n’roll.
PAS: Esse é um dos momentos mais lindos do seu livro. O colonialismo às avessa do Raul Seixas. Lembra que você escreveu isso?
JM: Em qual ponto, exatamente?
PAS: Ah, eu não sei, Jota. Você fala que Raul fazia a colonização às avessas, colonizava os Byrds.
JM: Exato. O Raul, assim como, digamos, os Rolling Stones… O que fez o british rock? O rock inglês pegou o blues, de bluesmen americanos analfabetos, e se apropriou dele. Isso gestou os Rolling Stones, o Led Zeppelin…
PAS: Os Beatles.
JM: …Os Beatles e o Cream, do Eric Clapton.
PAS: E o Bob Dylan.
JM: Não que eles não tenham feito reverências a todos os Muddy Waters da vida, eles fizeram. Mas isso não é suficiente. É uma apropriação cultural. Raul Seixas fez a mesma coisa. Ele fez, só que com um talento inacreditável. Se ele tivesse feito como se fosse um mero copiador, o homem que copiava, aí eu ia chutar pra escanteio. Mas, não, ele é talentosíssimo, então eu perdoo todos os plágios do Raul Seixas, como autor. E como bêbado (risos). Eu não afirmo que esse ou aquele é plágio, afirmo que tem 17 plágios do Raul. Aproximadamente, não sei precisar agora. Mas alguns são completamente literais, letra e melodia.
PAS: Quando você falou que “Peixuxa, o Amiguinho dos Peixes” (1975) é plágio de “Ob-La-Di, Ob-La-Da” (1968), eu não concordei. Continuo achando que não é, mas você tem toda razão, tem uma relação absolutamente direta.
JM: Ele amava Beatles, o maior número de plágios é dos Beatles, do John Lennon. Mais que tudo o Lennon era um personagem central.
PAS: O mais esquerdista de todos.
JM: O mais esquerdista, e ele tinha simetria de pensamentos com Lennon, em relação à Sociedade Alternativa, que tem simetria com a Nutopia. Aconteceu muito, e é como Harold Bloom dizia: quase toda a literatura contemporânea é assentada em um determinado antecedente literário do passado. De Melville, Shakespeare etc., todos. Ele conseguiu identificar isso. E na música também. Isso não é um demérito. Pelo contrário, é uma demonstração de conhecimento, de saber qual a estrutura que serve pra um determinado tempo, pra um determinado tipo de pensamento. Raul era muito antenado. Por exemplo, quando ele encontra Zé Ramalho pela primeira vez. Ninguém sabe dessa história, Zé Ramalho que me contou…
PAS: É uma fonte que você está revelando?
JM: Não, ele está creditado. Zé Ramalho tocou numa sessão de estúdio, na gravação de “Let Me Sing, Let Me Sing” (1972), como músico.
PAS: É o primeiro sucesso.
JM: É total Elvis, total Bill Haley and His Comets.
PAS: É legal que alguém na época, segundo seu livro, reconhece que essa é uma música que começa como rock e termina como baião.
JM: Exato. Isso é o júri do festival, acho que… Estou tão baratinado que não estou me lembrando das coisas. O primeiro cara que reconheceu isso foi o… Cesar Camargo Mariano, talvez?
PAS: Cara sabido.
JM: Ele viu, falou: “Cara, isso é uma inovação”.
PAS: E era caretão, arranjador da Elis Regina (não só o entrevistado está etílico a esta altura). Se Raul Seixas fosse preto estaria no mesmo lugar do Wilson Simonal?
JM: Eu não vou dizer isso, não é por medo, mas a verdade é que, como só agora surgiu um debate sobre isso, não dá pra saber. Mas os dois tiveram amigos no Dops.
PAS: É a mesma história. E eu repito, o Chico Buarque podia ter também. Mas nunca vamos chegar nisso, era branco de olho azul.
JM: Tem dois episódios da ascensão profissional do Raul e da entourage dele que tem a ver com a aniquilação da chance de músicos negros. A primeira chance profissional dele com o Jerry Adriani só aconteceu porque os músicos negros da banda Tri Jormans foram barrados no Clube Baiano de Tênis. Tem uma música do Gilberto Gil que fala sobre isso.
PAS: Você começa o livro com essa música.
JM: Fala daquele tempo em que negro não entrava no Baiano nem pela porta da cozinha. Era um grande clube burguês de Salvador. Tinha essas noitadas de rock, com artistas importantes, pra associados. Os Tri Jormans foram escalados como a banda de apoio do Jerry Adriani. Quando viram que eles eram pretos, barraram. O Jerry contou essa história.
PAS: E aí entraram os Panteras?
JM: Entraram Raulzito e Os Panteras. E dali em diante, Jerry gostou tanto… Nara Leão estava na plateia. Chico Anysio era o apresentador da noitada. Todos viraram de certa forma protetores do Raulzito no Rio.
PAS: Chico Anysio altamente ligado nas histórias de delação também.
JM: Aí já não sei.
PAS: “Eu vou bater pa tu bater pa tua patota”, “deduração/ dizem que um cara que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo”…
JM: Essa é uma música satírica?
PAS: Eu acho que não. É dizendo que o Simonal se deu mal. Mas qual é o outro caso do Raul?
JM: Aí já não é um benefício do Raul. Ele era produtor na CBS e apareceu esse músico negro, Odibar, que era parceiro do Paulo Diniz, pra fazer um teste. O teste do Odibar não foi tão bem, ele foi preterido, mas o violonista que levou junto com ele pra tocar, porque Odibar não tocava violão, chamava-se Sérgio Sampaio. E Sérgio Sampaio foi admitido pelo Raul e acabou se tornando parceiro dele no disco da Sociedade da Grã Ordem Kavernista. Evidentemente foi um talento extraordinário revelado ali. Não é que haja uma pessoa pisando na cabeça da outra, mas é que a circunstância do país levava, até hoje leva, a essas preferências. Um artista negro é talvez mais difícil de emplacar numa corrida do ouro da indústria musical que um artista branco.
PAS: Quando Raul produz Tony & Frankye, ele conhece o funk e depois faz uma obra funkeada, como você descreve várias vezes no livro.
JM: Exatamente.
PAS: Os rocks do Raul muitas vezes têm influência do funk, o que é um branqueamento da música black.
JM: Ou um empretejamento da música branca, depende do ângulo que você vê.
PAS: Mas o rock já era um embranquecimento da música preta.
JM: É, o rock que Raul Seixas gostava era o do Arthur Crudup, o primeiro negro que Elvis gravou.
PAS: Elvis também branqueou o rock. Não é culpa deles, é a sociedade racista.
JM: Claro que não, mas o Raul tinha grande predileção pelo rock preto, Little Richard. Ele imitava o Little Richard. O próprio Jerry Adriani é uma espécie de pantomima do rock preto, do rhythm’n’blues original. É complicado, porque você está num cruzamento de linguagens.
PAS: É legal que hoje em dia não acontece mais da mesma forma. Hoje tem Liniker, Linn da Quebrada, Rico Dalasam, todo o pessoal da Bahia, que estão todos no underground, mas estão conseguindo se expressar.
JM: Pabllo Vittar não, né?
PAS: Pabllo é o que fica mais famoso porque não é preto. A história se repete, mas está num lugar onde não esteve antes. Fico angustiado com isso, a revolução, como aconteceu com Caetano e Raul, está acontecendo agora também. A gente está vendo? Quem está conseguindo quebrar o bloqueio?
JM: O bloqueio e o filtro, né? A questão é que Raul Seixas viveu na fase em que a indústria estava se consolidando, consolidando seus procedimentos de massificação. O que a gente vê hoje é assim: o que está consolidado? Quase tudo é ruína. Quando a gente pede que um artista se sobreponha a outro, dentro das regras atuais, é mais complicado. É mais complicado.
PAS: Foi a editora que sugeriu a você Raul Seixas?
JM: A editora me perguntou se eu não encararia Raul Seixas, que era um interesse deles, gostariam muito. É evidente que é um artista que todo mundo gostaria de biografar, mas tinha vários problemas. O primeiro é que é uma pesquisa longa. O segundo é que eu não queria biografia autorizada, não ia consultar a família. Disseram que eu faria como quisesse. Fui refletir, e calhou daquele período eu encontrar um amigo, que é o Juvenal Pereira, que falou: “Pô, eu fiz um livro de arte do Raul que foi engavetado”.
PAS: Por que você dedicou o livro a Waldir Serrão?
JM: Waldir Serrão é um jovem mulato baiano que introduziu o rock no sangue do Raul Seixas. Ele é importante. Foi ele que fez o Raul Seixas virar o que o Raul Seixas virou, um amante do rock’n’roll, apaixonado pelas jornadas de rebeldia da Bahia. Ele era um menino proletário, de vila operária. É um personagem muito negligenciado pela Bahia. Foi um disc-jóquei importante de rádio, teve um programa de TV, teve um papel importante lá. Morreu num asilo, no ano passado.
PAS: Você entrevistou ele?
JM: Não. Não cheguei a tempo. Eles têm uma música juntos, “O Crivo”.
PAS: Edy Star gravou agora.
JM: Gravou. A música é porque os dois eram fumantes inveterados, com 13, 14 anos. Fizeram “O Crivo”, que na verdade é só do Raul. Waldir nunca teve talento pra isso. Mas justamente por não ter talento, mas ser um deflagrador – era ele que organizava as jornadas de rock’n’roll no Cine Roma -, eu resolvo dedicar o livro pra ele. Nunca aconteceu o estrelato, mas foi um cara importante. A mãe do Raul detestava ele. Nasceu em 1942. Quando vi que ele tinha morrido e ganhou aquela coisa protocolar em pé de página… – os caras não são amados nem na sua terra -, falei: esse é o cara pra quem vou dedicar o livro. É o deflagrador. O livro começa com os dois. Ele tem algumas composições, mas é muito pouco conhecido, não tem nenhum destaque. O Raul chegou a levar ele pro Rio de Janeiro.
PAS: E ele não quis ficar, né?
JM: Não deu certo. O disco foi um fracasso. O Edy também não deu certo, se você pensar.
PAS: Você atribui o termo “baiock” ao Raul? A primeira, na verdade única referência que conheço ao termo é do Chico Buarque, no baiock “Baioque”, do disco Quando o Carnaval Chegar (1972). Quem veio primeiro?
JM: Rapaz, é impreciso como surgiu o termo, mas Chico realmente o registrou antes em disco. Edy Star gravou um compacto com “Baiock” e “Ai de Mim” em 1974, mas já era uma expressão corrente entre os músicos da Bahia. Raul a utilizava com frequência antes da virada da década.
PAS: A “orquestra de desvalidos” reunidos no velório do Raul é um retrato preciso para os fãs do Raul? Por que houve (há?) essa identificação entre ele e os desvalidos?
JM: A identificação era de parte a parte. As palavras de Raul Seixas têm servido como uma baliza ética para os deserdados da sorte. Se agarram a elas como tábuas da lei. Isso é fácil de perceber. É uma comunhão. Raul também se enfiava entre esses fãs, bebia com eles, algumas vezes acabou somente de cuecas após jornadas homéricas em sua companhia.
Tu és um otário que quer aparecer a todo custo.
Livro comercial – pretencioso, difamador. “Que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados. Contentes e frustrados” (Cambalache – Ernesto Discépulo). Raul Seixas está num patamar bem maior que vocês. Vejam quem vai chorar a morte de Paulo Coelho: ninguém!
Fala bem ou fala mau so importa que fala.
Mania de escrever sobre o podre dos outros.
Tente uma vez escrever sobre a genialidade das letras.
E….Raul nunca foi petista. Nem de esquerda e nem de direita….Mané.