Vêm à tona escritos de Mário de Andrade sobre a questão racial, censurados na comemoração do cinquentenário da abolição, em 1938
Ao planejar suas Obras Completas, em 1943, o escritor paulistano Mário de Andrade (1893-1945) listou 19 títulos, a começar por Obra Imatura, Poesias Completas, Amar, Verbo Intransitivo e Macunaíma, e que conheceria em O Empalhador de Passarinho um 20o título. Sob o número 13, constava da lista um volume chamado Aspectos do Folclore Brasileiro, uma das várias obras que Mário deixou inacabadas ao morrer dois anos depois, aos 51 anos.
Em meados dos anos 1950, a musicóloga e discípula Oneyda Alvarenga (1911-1984) tentou remontar Aspectos do Folclore Brasileiro segundo o plano deixado por Mário, composto de O Folclore no Brasil, Estudos sobre o Negro e Nótulas Folclóricas, mas, segundo Angela Teodoro Grillo, organizadora do volume que vem à tona agora, não conseguiu identificar os manuscritos do fragmento Estudos sobre o Negro. Angela afirma ter encontrado os dossiês sobre Aspectos do Folclore, inclusive a misteriosa parte perdida, sob a denominação Preto. É o que há de mais interessante e surpreendente na atual edição.
Os textos a serem recolhidos sob a alcunha Preto orbitariam em torno do cinquentenário da abolição da escravatura, em 1938, e reuniriam trabalhos escritos para a revista Publicações Médicas e o jornal O Estado de S.Paulo. Coincidiam com os últimos dias do escritor à frente do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, que ele deixou em 11 de maio de 1938, dois dias antes da comemoração do cinquentenário, e em meio a intensa programação de debates em torno da Abolição. O sucessor de Mário no cargo interrompeu o ciclo de debates e cancelou a congada de artistas negros programada para o 13 de maio.
A SUPERSTIÇÃO
Com linguajar ainda contaminado pelos preconceitos da época, escreve Mário num discurso (até aqui) esquecido: “Se qualquer de nós, brasileiro, se zanga com alguém de cor duvidosa, e quer insultá-lo, é frequente chamar-lhe: ‘Negro!’. Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele não foi lá muito convincente nem conseguiu me destruir pois que vou passando bem, muito obrigado”. E continua, afirmando os preconceitos raciais pela sua negação: “No Brasil não existe realmente uma linha de cor. Por felicidade entre nós negro que se ilustre pode galgar qualquer posição: Machado de Assis é o nosso principalíssimo e indiscutido clássico da língua portuguesa e é preciso não esquecer que já tivemos Nilo Peçanha na presidência da República”.
Uma nota de rodapé joga luz parcial sobre o que aconteceu quando Mário tentou falar de racismo (que chamava, então, de “superstição”), quando da republicação do artigo A Superstição da Cor Preta (1938), em suplemento do jornal A Manhã, em 1942: “Isto se dava durante a mudança de governo, eis que eu saía do meu lugar e o prefeito novo, aliás sob muitos aspectos admirável, acabou com o resto das celebrações, porque também sofria da superstição”. Nunca fomos racistas, diria o chefão global Ali Kamel.
Aspectos do Folclore Brasileiro. De Mário de Andrade. Global, 240 págs., 50 reais.