A coragem permeia, do começo ao fim, Macunaíma, peça em cartaz no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Ela está presente em diversas cenas, como aquela em que o mítico personagem criado por Mário de Andrade enfrenta o gigante Piaimã para retomar seu muiraquitã, um amuleto. É corajoso também levar ao palco sofisticadas críticas feitas à atualidade, em tempos tão bicudos. Não é menor que um sólido grupo teatral, a Barca dos Corações Partidos, resolva, literalmente, se desnudar diante da plateia, ressignificando o que parecia ser a fórmula certa do sucesso (como nas montagens de Gonzagão – A Lenda, Ópera do Malandro e Suassuna – Auto do Reino do Sol). E a coragem está ainda no desafio de uma aluna, Bia Lessa, perante a obra de um mestre, Antunes Filho, que dirigiu a histórica montagem de 1978, quando ela atuou.
Bia Lessa estava em cartaz com Grande Sertão: Veredas, quando foi chamada pela companhia e pela produtora Andréa Alves para mais uma imersão na cultura brasileira. A primeira coisa que os integrantes da Barca ouviram dela é que não gostava de grupo, daquele espírito de “gente que se protege”. Mas foi só começar o trabalho conjunto para ela ver várias fagulhas se acendendo. “Muitas das cenas nasceram do improviso dos atores em que a Bia depois montava”, diz Alfredo Del-Penho, que assina a direção musical de Macunaíma – Uma Rapsódia Musical. Mantendo a marca da companhia, o espetáculo tem mais de 70 músicas originais, em dez línguas diferentes.
A adaptação, de Verônica Stigger, deu forma à narrativa complexa e labiríntica de Mário de Andrade. Escrita pelo intelectual modernista em 1928, o livro Macunaíma é uma alegoria da formação do povo e da cultura brasileiros. Índio nascido na Amazônia, onde vive a infância como um menino birrento e preguiçoso, toma um banho de mandioca e vira adulto, apaixona-se por Ci, a Mãe do Mato, com quem tem um filho, que morre cedo. Ao perder um amuleto dado pela amada, que morrera de desgosto, ele vai a São Paulo resgatá-lo. É quando Macunaíma embranquece e é colocado à prova diante da modernidade. Ao recuperar o muiraquitã, ele volta à sua tribo, mas já não é mais o mesmo.
Em dois atos e três horas de duração, a peça traz uma reflexão não só sobre o brasileiro, mas o homem em geral. “O espetáculo fala desse mundo reacionário e de quinta categoria que estamos vivendo. Mas não adianta achar que é só aqui, a coisa é mais grave”, reflete Bia. É também uma autocrítica para “explicitar que esse capitalismo louco, desenfreado, criou em todos nós cidadãos mesquinhos, chinfrins, com valores depauperados.”
A cenografia recorre a poucos elementos e muito plástico. E ainda assim cria imagens belas e fortes, como a das malocas que Macunaíma encontra ao chegar a São Paulo. Formadas por grandes bolhas plásticas, elas isolam os moradores da cidade grande do índio que chega e logo é marginalizado pela sociedade. “Essa peça é para apresentar no Brasil agora. Quero estar em todos os lugares do Brasil, se possível. Eles (os atores) agradecem o espetáculo todos nus, não tem nhém-nhém, feio, bonito. Esta peça é papo reto.”
- Texto publicado na edição impressa da CartaCapital por conta da temporada em São Paulo