Roda roda roda e avisa

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Há um mundo acontecendo entre um bloco e outro.

Espremido entre perguntas artificialmente tensionadas como um teatro de paterna severidade, o programa de entrevistas mais longevo da televisão finalmente relaxa nos intervalos comerciais.

Nesse momento, no pit stop das câmeras do Roda Viva, no relax sabor Mentex do cameraman da TV Cultura, é aí que os sorrisos são mais largos, as simpatias são mais francas, as brincadeiras são populares e talvez até sinceras.

A cada intervalo, a apresentadora, Daniela Lima, lembra da necessidade que as perguntas sejam objetivas e curtas, para que toda a bancada possa ter a chance de perguntar ­- e que as respostas sigam a mesma regra, “um exercício de síntese”. O entrevistado da noite, o governador do Maranhão, Flávio Dino, brinca que a apresentadora estava “louca para me cortar” já no primeiro bloco. Daniela faz piada, diz que “cortar” é uma palavra muito pesada. Conta que, com frequência, muita gente a acusa nas redes sociais de ter sido mal educada ou ríspida ao pedir rapidez ou conduzir para a conclusão de uma pergunta. “Engraçado, quando era um homem apresentando, o cara exigia: ‘Fulano, a pergunta!’, e ninguém o chamava de grosseiro por interromper.  As pessoas têm rejeição à mulher numa posição de autoridade”, concluiu a apresentadora. Flávio Dino arrematou, deixando um certo desconforto invisível no ar: “Quem falava muito isso era a Dilma…”.

Um dos entrevistadores, liberado do papel fiscalizador pela trégua das câmeras, entra na roda. “Você é a primeira apresentadora mulher do Roda Viva?”. “Não, sou a quarta”, responde Daniela. Rapidamente, rola um pequeno quiz show na bancada para encontrar o nome das três anteriores: Marília Gabriela, Lilian Witte Fibe e Roseli Tardelli. A progressiva entronização feminina que tardou tanto hoje é vitoriosa na noite: são quatro entrevistadoras mulheres e dois homens com a missão de fustigar Dino.

Atento a uma diligente blitz no sentido de torná-lo, em alguma fatal distração, um dissidente público de seu mais midiático aliado, o PT, Flávio Dino faz pilhéria com a aparente imunidade política que a bancada de entrevistadores lhe dá. “Eu tenho uma sorte danada: eu não sou do PT. Senão eu estaria liquidado aqui!”, diverte-se o governador.

No segundo intervalo, sobra tempo para a atenção autofágica à própria chamada da emissora no aparelho de TV ao fundo. Quando surge numa passarela a cantora, atriz e modelo norte-americana Jennifer Lopez envergando um Versace verde, a apresentadora Daniela questiona Dino: “O sr. sabe a história desse vestido? Sabia que foi por causa dele que foi criado o Google Images?”. Não, não e não, responde Dino. “Governador, mas onde foi que o sr. andou todos esses anos?”, brinca Daniela.

Depois de um bloco exaustivo sobre reforma tributária e a necessidade de taxação dos mais ricos, no qual o governador do Maranhão mostra a diferença assombrosa entre a tributação de uma motocicleta (que paga IPVA) e um helicóptero (que não paga), Daniela volta a pedir: “Vamos ser enxutos, gente! Governador, me ajuda! Não custa nada!”.

Agora, o intervalo não pega tão leve. Flávio Dino volta a ser inquirido sobre o período consorciado no poder, ao lado do PT, e o motivo pelo qual não aproveitaram aquele tempo para fazer as reformas necessárias. O Congresso, argumenta, não é assim essa facilidade. Houve corpo mole dos governos de esquerda também, claro. “Imposto é palavrão, não?”, tenta ajudar o jornalista. Dino concorda, ilustrando com outra citação, dessa feita uma frase de Cristo: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Está nos evangelhos sinóticos (Mateus 22:21).

Não é a primeira citação da Bíblia, anota uma repórter. De fato. Dino escancara as aparentes contradições de materialista histórico com picardia, confessando-se um comunista “católico apostólico romano, admirador do papa Francisco, devoto de São Francisco de Assis”. É aí que a religião entra, invocada como um tema conexo à política, pelo diagnóstico do avanço neopentecostal na vida política brasileira. “Estado laico não significa Estado antirreligioso. O que não pode haver, naturalmente, é a colonização, ou seja, uma espécie de apropriação da esfera pública por perspectivas individuais, quaisquer que sejam elas”, pondera o entrevistado.

Em suas argumentações, Flávio Dino passeia pela orla de uma notável biblioteca universal de Direito e Direitos Civis. Para justificar porque Sergio Moro e a Lava-Jato não poderiam ter ignorado as leis e a Constituição em nome de um pretenso valor intrínseco da luta contra a corrupção, ele cita três obras e autores: primeiro, O Federalista, compilação de 85 artigos que fundamentou a Constituição dos Estados Unidos; em seguida, Política, de Aristóteles; e, para arrematar, uma frase de Montesquieu, autor no qual se basearam os artigos de O Federalista: “Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam as leis”.

Mas não é apenas de fundamentos legais e constitucionais que vive a moldura da retórica flaviodinista. Subitamente, ele saca um Drummond que pouca gente saca. “As leis não bastam, os lírios não nascem da lei!”, brande o governador, citando o poema Nosso Tempo, de Carlos Drummond de Andrade. Ou seja: as leis são necessárias, mas a necessidade de se buscar a felicidade é ainda maior que a legalidade.

Entre um intervalo e outro, as expressões voltam a ficar constritas, há necessidade de se mostrar rigor e inflexibilidade. Nesse vaivém, algumas informações brandidas são imprecisas, quase popularmente canhestras. A apresentadora diz que Dilma, ao deixar o governo, contabilizava 13 milhões de desempregados. Não. Eram 11,4 milhões no ano do impeachment, 2016 (e Dilma, como salienta Dino, já não governava efetivamente há mais de um ano, Eduardo Cunha bloqueava todas suas iniciativas). Dino diz que 117 fuzis foram apreendidos numa casa na Barra da Tijuca, de um vizinho do presidente Bolsonaro. Não. Foram apreendidos no Méier, na Zona Norte, embora pertencessem ao vizinho do presidente na Barra.

Flávio Dino esgrime com as armas mais básicas do debate público e da formulação teórica (“Os direitos humanos são uma tradição multissecular, iniciada já na Revolução Francesa, no século 18”), mas tem um timing preciso acerca do momento para sacar cada uma delas. Faz tudo parecer novo. Ex-juiz, ele não tem nenhum pudor em brandir os pressupostos básicos da atividade pública e dizer o óbvio: que a Lava-Jato, como foi vendida pela oportunidade política, embutia uma armadilha autoritária: quem a criticasse seria automaticamente conivente com a corrupção. Isso permitiu que a operação se apropriasse eleitoralmente dessa bandeira, que é da coletividade. “Essa armadilha foi desmontada, graças a Deus!”.

Saudado como terceira via, mesmo à sua revelia, o governador foi “emparedado” de fato uma única vez, quando a jornalista o chamou na chincha por uma reintegração de posse na comunidade conhecida como Cajueiro, em São Luís, feita com uso de força excessiva pela polícia. “Eu não sou um ditador, não tenho poder de anular uma ordem judicial”.

Flávio Dino raras vezes responde apenas “sim” ou “não”. Geralmente faz um preâmbulo teórico antes para explicar a própria resposta. Wilson Witzel, o governador do Rio, deve ser denunciado pela morte da menina Ágatha com um tiro nas costas? Dino recorre à Bíblia mais uma vez, ao Livro de Isaías: “Só há paz quando há Justiça”. A ação de um governante, explica, tem uma reverberação incontrolável, provoca “clamores assimétricos”. A palavra é algo forte, e a do governante tem ainda mais responsabilidade. Só então arremata: “É evidente que sim, deve ser apurada a responsabilidade política e jurídica”.

Três vezes respondeu à mesma pergunta, quase um mantra: “Falta à esquerda fazer uma autocrítica clara?”. Uma expressão já quase mecânica no meio jornalístico.

De vez em quando, o refinado Dino, que de pedante não tem nada, saca um párachoques de caminhão que diverte (e escandaliza, dependendo da interlocução). “Ser de esquerda é tão bom que o coração fica do lado esquerdo do peito”.

“O Bolsonaro me fez esse favor. Me colocou no debate político como alternativa”, brinca Flávio Dino. Não foi exatamente a fúria indistinta de Bolsonaro que o trouxe à arena: Dino avança numa trilha que está sendo aberta talvez pela inabilidade das alternativas (Ciro, Marina, Alckmin) e pelas próprias qualidades políticas. Dificilmente estará fora do tabuleiro político de 2022.

Terminou citando o Leviatã, de Thomas Hobbes, falando da esterilidade da guerra de todos contra todos. “Não podia levantar? Agora eu já levantei”, disse Dino à apresentadora ao final de todos os intervalos.

 

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