Rodger Rogério, nome seminal da primeira geração do Pessoal do Ceará, ganha um notável cartão de visitas em “Bacurau”, o filme brasileiro que venceu o Prêmio do Júri em Cannes
Quem for ao cinema ávido de curiosidade para ver o grande vencedor do prêmio do júri de Cannes, “Bacurau”, dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, vai se deparar com uma lenda da música brasileira na tela: o cantor e compositor cearense Rodger Rogério, de 75 anos.
Rodger Rogério protagonizou, nos anos 1970, a primeira grande aventura do chamado “Pessoal do Ceará” (Ednardo, Belchior, Fagner, Jorge Melo, Cirino, Fausto Nilo e outros). Em 1973, ele lançou, com Ednardo e Téti (então sua mulher), o disco “Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”, hoje um cult absoluto da MPB. Foi o pontapé inicial das pretensões artísticas daquela geração. Após o álbum, Rodger e Téti vieram viver em São Paulo, onde ele lecionou Física (na USP), e o resto do pessoal ganhou uma referência no eixão. Rodger tem músicas gravadas por Fagner (“Cavalo Ferro”) e Ney Matogrosso (“Ponta do Lápis”, dele e de Clodo Ferreira), entre outros.
Em “Bacurau”, Rodger interpreta um violeiro. Ou seja: é ele mesmo. O cantor gravou canções em cena e fora da cena para o filme, mas ainda não viu o resultado. “Estou louco para ver!”, anima-se. Rodger virou ator tardiamente: tinha 46 anos quando se matriculou no Curso de Artes Dramáticas da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde foi professor titular de Física até 1990. “Não foi para ser ator. É que meu assunto era só ciência, uma linguagem muito matemática. Isso cria um abismo com o leitor mais leigo. Eu entrei para tentar aprender a me comunicar melhor com os leigos, era também muito tímido, e ainda sou. Acabei virando ator”.
Desde então, já fez uns 40 filmes. “Bacurau” aconteceu da seguinte maneira: os diretores pernambucanos ligaram para ele em Fortaleza para saber se não iria ao Recife para um teste. Ele topou. Quando estava na hora de ir ao Recife, pediram que fosse direto a Parelhas, no Sertão do Seridó, Rio Grande do Norte, onde se concentraram as filmagens. “Cheguei e já me engajei”, conta. Ficou dois meses filmando, entre 20 de março e 20 de maio de 2018.
Veterano já dos sets de filmagem, ele elogiou o diretor Kleber Mendonça Filho. “É sereno, fala baixo, fala pouco”, diz. “Na verdade, gostei muito da equipe toda. Eram mais de 40 atores. De todos os filmes que fiz, esse foi o que não teve nenhuma queixa. Quanto há muita gente, em cinco dias já começam os atritos. Esse foi próximo do milagre”, conta.
Rodger Rogério é um mito da música cearense. Depois de “Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”, ele gravou outro disco mitológico para aquela geração, “Chão Sagrado” (RCA, 1974), com a ex-companheira Téti. A faixa-título é uma composição em parceria com Belchior. Um hino. Minha viola e meu peito/ Canta e nunca desafina/ Ela que sabe dos mortos/ Da cantoria nordestina. Rodger espera algum dia refazer o repertório desse álbum numa turnê, mas no momento está gravando um disco de inéditas, o seu segundo álbum solo na carreira, que deve sair até o final do ano.
Do futuro novo elepê de Rodger, já existe à venda um aperitivo: ele lançou recentemente o EP “Velho Menino”, com três faixas em parceria com Dalwton Moura, outra com Rogério Franco, uma música de Rogério e Dalwton e um tema instrumental do próprio Rodger.
Ele é paparicado por toda a cena musical de Fortaleza. Por diversos motivos, mas o mais evidente é que Rodger não reivindica posto nenhum na História da música popular do Ceará, embora ocupe uma posição referencial. Quando perguntado se não se julga injustiçado, já que sua produção é tão pródiga, ele ri. “Pelo contrário, sou um felizardo! Nunca fiz esforço nenhum para acontecer, e ainda assim as coisas aconteceram pra mim”, diz Rodger.
Ele lembra que, quando iam gravar “Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem”, a ideia era engajar todo mundo do Ceará emergente. Mas Fagner cortejava um contrato com a Philips, Cirino com a RGE e Belchior com a Continental. Fizeram somente ele, Ednardo e Téti, e hoje é uma obra-prima da MPB.
Contam que Nara Leão uma vez chamou Rodger para mostrar-lhe suas músicas, queria gravar algumas. Rodger chegou a ir, rodeou o quarteirão em volta da casa dela e ficou algumas vezes a ponto de tocar a campainha, mas desistiu. Foi vencido pela timidez. Outra feita, foi Roberto Carlos quem quis ouvir suas canções. Mas, no dia em que deveria mostrá-las ao cantor, tomou algumas a mais e se distraiu com uma moça, e faltou ao compromisso.
Música ele sempre fez, desde menino. Mas é pelo cinema que se diz “doido”. É um cinéfilo: adora tudo de Fellini, e os filmes da nouvelle vague francesa. E ama a noite de Fortaleza, é difícil não encontrá-lo numa dessas estreladas ali no Cantinho do Frango, uma zona de convergência cultural (como diz o poeta Ricardo Kelmer) que tem até uma espécie de altar em sua homenagem.
“Bacurau”, dos produtores Emilie Lesclaux, Said Ben Said e Michel Merkt, é uma coprodução entre Brasil (CinemaScopio) e França (SBS Productions) e, como toda a produção nacional de cinema recente, não tem data para estrear ainda no Brasil.
A timidez esconde muitas vezes pessoas grandiosas, mas seu brilho é tanto que ilumina a sala foge pelas janelas e ganha o mundo.