Curador da parte eletrônica do Vento Festival, o DJ Mauro Farina soma duas experiências peculiares na cena local de música de pista: dedica-se, com a Free Beats, às festas gratuitas de rua e privilegia as referências brasileiras dentro do ritual eletrônico. A galeria de DJs e experiências híbridas que reuniu no espaço Oca do festival revela, segundo ele, uma mudança que sofreu ao visitar Belém e conhecer in loco o exuberante tecnobrega paraense. Trata-se de uma experiência eletrobrasileira que, pelo menos nos dias de Vento, centrou-se na nordestinidade, no folclore, na black music (do funk ao reggae e ao rap) e no calor caribenho e amazônico.
Se o Nordeste revela-se onipresente e onipotente no processo, os interiores brasileiros e um Brasil menos folclorizado ainda não aparecem tanto no radar de Mauro e do elenco reunido de DJs. Mas o caminho de (re)encontro com a própria identidade se revela tanto na produção elettromusical quanto quando, na entrevista abaixo, o DJ paulistano de 35 anos conta que cresceu em São Sebastião e que, naqueles dias e noites da terceira edição do festival praieiro de quase-inverno, se apresentava pela primeira vez na vida em solo quase-natal. Ele parte falando sobre a presença feminina nas picapes eletrobrasileiras, que marcara sobretudo o primeiro dia do Vento.
Mauro Farina: Quando Mari Mats tocou na primeira Free Beats, ela chegou com um laptop. E a gente determinou que tocar disco era a ferramenta que a gente ia usar. O cara do CDJ, da controladora, já nem se aproxima, nem pede para tocar. Isso já tornou a curadoria muito boa, porque quem toca com toca-discos sabe tocar e é realmente muito bom. Quando a Mari foi tocar da primeira vez, falei: “Não vai poder usar controladora. “Não, mas eu não sei tocar com toca-discos.” Falei: “Então você vai aprender”. E hoje ela é uma das principais artistas da Free Beats, toca melhor que 90% dos homens que tocam na Free Beats. A gente gostaria de dar mais oportunidade para que as pessoas se desenvolvam e cresçam dentro da cultura DJ, como bons profissionais, seja discotecando ou mixando na batida, que é mais técnico.
Pedro Alexandre Sanches: A minha primeira impressão, na primeira noite, foi a oposta a essa de que DJ é uma atividade masculina, porque eram praticamente só mulheres que estavam tocando.
MF: É, mas é que hoje existem mulheres DJs muito boas, a DJ Flavya, que é meio gringa meio brasileira, meninas que são supernovas, mas fazem um trabalho que não é autoral ainda, porque não é tudo delas, mas que têm uma personalidade legal, um instrumento ali presente. Gostaria de colocar mais, mas a tecnologia gera uma preguiça nessa geração nova, então acredito que tem mulheres muito boas que nunca vão chegar a se apresentar com a gente, justamente por ser muito mais fácil usar a controladora do que disco. Cada toca-discos é R$ 5.000, mais o mixer R$ 20 mil, é um investimento, é caro. Mas ao mesmo tempo, na contrapartida, a curadoria se torna muito séria. Foi também uma forma de gerar uma qualidade, uma excelência na curadoria.
PAS: A falta de brasilidade na música eletrônica sempre me desinteressou, e encontrei aqui ela presente em toda a programação. De onde vem isso?
MF: Eu vim da música eletrônica, toquei house, tecno, breakbeat, Lov.e, The Edge, fora. E fui descobrindo que aquilo não era a minha cultura. Eu gostava muito, gosto muito, mas estava reproduzindo uma cultura internacional, seja ela de Chicago ou Berlim ou Paris. Quando comecei a Free Beats, mantive o pilar eletrônico, mas sempre tentando fugir da coisa club, que era o que eu não queria mais. E aí na pesquisa foi aparecendo. DJ Dolores, de Recife, lá atrás já fazia isso, também Chico Corrêa, que é meio da mesma época. E tem toda essa geração nova, Furmiga Dub, Ubunto.
PAS: Amam o Nordeste.
MF: É muito nordestino, tipicamente nordestino. Como produtor de música eletrônica brasileira, hoje, em São Paulo, é o Craca Beat, que tocou com a Dani Nega, patamar foda. Mas o resto é Nordeste. A música eletrônica, sim, é para todos, só que só é produzida no Nordeste, porque o Nordeste ama a sua própria cultura. O Nordeste nunca quis ser Berlim. Isso é muito coisa da elite branca do Sudeste, do carioca, do mineiro e do paulista.
PAS: Do paulista principalmente, não?
MF: Principalmente, I wanna be Nova York, I wanna be whatever. Mas acredito que, por o Brasil ser tão bom e a gente ter tanta para samplear e produzir, nos próximos anos a música eletrônica brasileira vai começar a tomar seu espaço no mercado.
PAS: Não tomou ainda?
MF: Não, não tomou ainda.
PAS: Você é uma exceção?
MF: Acho que sou um dos maiores ativistas dessa coisa que, sim, vamos ser eletrônico, mas não vamos esquecer de ser brasileiro. Por a Free Beats ser uma grande vitrine, um grande palco, e ser livre e democrática, eu consigo muito que eles venham se apresentar. Consigo divulgar muito bem. Esse é um grande papel meu, Mauro, e da Free Beats também, como selo, festa e movimento.
PAS: Aqui você se associa ao Vento como Free Beats?
MF: Exatamente, aí veio essa coisa de o Vento ser gratuito e de a Free Beats ser gratuita. Aí uniu com a coisa de eu ser daqui, de ter crescido aqui no litoral. Cresci em São Sebastião, na rua da praia.
PAS: Nasceu aqui?
MF: Não, nasci em São Paulo, vim para cá com 2 anos e fui para lá com 16, 17. Passei a infância aqui, uma cidade que não tinha nada para fazer. Eu era um puta garoto-problema. Fui para São Paulo, comecei a trabalhar com música, com eventos.
PAS: O caiçara ainda não está absorvido na música eletrônica, né? Seria um equivalente paulista do que o nordestino faz.
MF: Exato, não, isso é louco. Mas, por exemplo, tem o João Laion, que é de Caraguatatuba (também no litoral norte paulista). O Acauã é de Ilhabela. Existe uma representatividade, isso é importante. O João Laion, por exemplo, não falava que era de Caraguatatuba até vir trabalhar na Free Beats. Quando fui escrever o primeiro release, ele falou: “Pô, mas você vai falar que sou de Caraguá?”. Falei: “Ô, mas você toca música brasileira, o legal é você ser da praia, ser tropical”. Não é legal você ser de São Paulo. Em São Paulo a gente já perdeu o samba, toda a raiz praticamente. Tem muito pouco, os guetos, muito diluído. Não é como passar uma semana em João Pessoa (PB) e ver 40 shows magníficos. Essa história com o Vento é muito parecida, muito irmã. A gente está complementando a programação de uma forma muito legal. O custo-benefício é muito bom. Com o custo de uma banda, a gente toca durante 25 a 30 horas durante o evento todo.
PAS: É difícil decifrar o público que estava reunido aqui, mas em geral ele abraça essa mistura de brasilidade com eletrônica?
MF: Isso é que é legal, porque quando a gente monta o lineup, divide em pilares. Tem que ter o reggae, porque é cultura de rua, soundsystem. Tem que ter o hip-hop, que está impresso na nossa cultura e todo mundo quer ouvir. E tem que ter a pitada eletrônica, o latino. São públicos, não são gostos. São pessoas.
PAS: Falta o índio, que é o caiçara…
MF: Falta o índio. Os gays vêm pela modernidade do eletrônico. A galera mais rua vem pelo reggae e pelo rap, e se mistura com os gays. Os playboys também vêm, porque é legal, porque é cool. Essa mistura é que gera a riqueza na Free Beats, e no Vento também. Por ser gratuito, tem essa galera linda e maravilhosa que somos nós, mas estamos com a cidade, com a comunidade, com a galera do litoral. Isso gera essa sinergia bonita, essa coisa mágica. Não é uma coisa elitista. Por ter saído da Ilhabela, se tornou mais democrático ainda, sem dúvida nenhuma. Não tem a balsa, os hotéis caros, a necessidade de ter carro. São Sebastião abriu muito, agora posso falar que é realmente democrático. Na Ilhabela ainda tem uma coisa, é muito bom para o festival ter começado lá. Mas São Sebastião está falido, a galera veio para o Vento. A galera da costa já está muito imersa na história do Vento, acompanha, uma galera de Caraguá, Ubatuba e Maresias está querendo fazer evento com a gente. Já se propagou, o Vento leva, vai contaminando de uma forma muito bacana. Ano que vem com certeza o palco da Free Beats vai crescer mais ainda. Eu queria ter trazido mais uns cinco artistas live, um da Bahia, o Attoxxá, do Bahia Bass, o Chico Corrêa e o Seu Pereira da Paraíba, o Waldo Squash do tecnobrega do Pará.
PAS: Anna e Tatiana disseram que conhecer o Pará mudou você. Como foi isso?
MF: Foi na Paraíba que tudo aconteceu. Pesquisar o local é uma coisa, ir até lá é outra. Você conhece a aparelhagem, vê a forma caseira, rústica de produzir. Para o Pará nunca fui, eu me apaixonei mesmo quando vi o filme Brega S/A. Foi aí que entendi que a gente tem que fazer mais essa parada de piratear e disseminar de verdade, são muito bons nisso.
PAS: Qual é a sua ligação com o Bloco Tarado ni Você (que encerrou o festival na Oca)?
MF: Sou produtor deles, puxo o trio elétrico. Sou responsável pela segurança, pela logística e pelo trajeto. Estou com eles pelo terceiro ano.
PAS: Faltou o trio elétrico andando aqui.
MF: Puta, mano, imagina o trio elétrico aqui, um minitrio? São Sebastião é uma cidade que tem um carnaval muito impresso na cultura. Minha mãe fazia aula de escola de samba, a gente tinha mais de dez escolas aqui. Tinha transmissão, grupo A, grupo B, a escola Sol de Verão era campeã todo ano.
PAS: Não tem mais?
MF: Cara, eu fiquei sabendo que este ano voltou com uma certa força. Meu padrasto é o maestro da cidade, ele faz uma pesquisa de marchinha.
PAS: Maestro desses que estão ensaiando com orquestra na calçada?
MF: É, ele é o maestro daqui e de vários lugares do Vale do Paraíba. Ele é foda. E tem essa coisa de resgatar marchinha, fazer banda de marchinha. Ainda acredito que nos próximos anos a gente vai ter um carnaval muito forte de novo. Eu moro em São Paulo, mas minha mãe agora mora na Ilhabela. A primeira vez que toquei na ilha foi no festival das meninas, e aqui é a primeira vez que estou tocando na minha cidade. Nunca toquei na costa.
PAS: Juçara Marçal, no show do Metá Metá, falou a mesma coisa, que cresceu em São Sebastião e estava se apresentando aqui pela primeira vez.
MF: É muito foda. Nunca me apresentei aqui na vida, nem em Maresias, lugar nenhum. Eu falei isso no palco principal, e também homenageei uns personagens da cidade. Falei do Palhaço Chupetinha, um palhaço de rua que tinha aqui, tentou ser vereador uma época, já faleceu. F falei do Seu Benê, que é pai de uns amigos meus e era locutor do carro da prefeitura. Ele falava “alô, amiguinhos!”, os filhos tinham até vergonha. E o Palumbinho, que era o nosso professor de basquete.
PAS: Palumbinho, pelo nome, deve ser parente da (jornalista musical) Patrícia Palumbo, que também é daqui e está por aqui estes dias.
MF: Total. O Palumbinho é impressionante, foi muito importante para o esporte aqui.
PAS: Teve reação da platéia quando você citou esses personagens? Aí dá para medir quem era daqui e quem não era…
MF: Muito. Era tímido, mas associavam, diziam “é isso aí”, “lindo”. Pô, estou voltando para cá, na viagem falei, caralho, velho, estou indo para lá, o que vou falar no palco? Caralho, o Palhaço Chupetinha é foda, todo mundo vai lembrar. Seu Benê é foda. Palumbinho morreu? Caralho, vou falar do Palumbinho também. Foi muito legal.
PAS: Qual sua avaliação sobre as madrugadas no festival no centro de São Sebastião?
MF: Cara, foi um dos melhores bailes da minha vida. Para a galera é importante, por que eles não fazem isso aqui em São Sebastião? Por que eu tive que vir, via Vento? Não montei nada, falei para os moleques “pega o sub, põe a caixa de som”, eles foram fazendo. Falei: “Por que vocês não fazem mais vezes?”.
(Leia mais sobre o Vento Festival 2017 aqui e aqui.)
(Pedro Alexandre Sanches viajou a convite do Vento Festival.)
Excelente materia a musica é tudo de bom eu vivo pela musica