As cores vivas de Criolo

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De vermelho, Criolo fala no escritório em Pinheiros, gravado por Filipe Vianna
De vermelho, Criolo fala no escritório em Pinheiros, gravado por Filipe Vianna

Pedro Alexandre Sanches: No disco Nó na Orelha já tinha um samba, “Linha de Frente”, que sempre me lembrou Clara Nunes, “Tristeza Pé no Chão” (1973). Agora você dá um salto pra fazer um disco inteiro de samba. Por quê?

Criolo: De um tempo pra cá, 2002, 2003, comecei a escrever um tanto mais de samba. A emoção desaguava em samba. E em especial em 2008 pra 2009 escrevi um tanto mais. Isso veio bem forte de mim, um desejo de fazer um disco de samba.

PAS: Tudo isso é antes de você se tornar conhecido pelo Brasil todo (o que aconteceu em 2011, com o álbum Nó na Orelha).

C: Isso. Mas eu guardei esse sentimento, ele ficou guardado. Mas sempre, de ano em ano, falo: poxa, será que um dia eu vou fazer um disco de samba? E aí, no meio de 2016, muito sentimento, muita emoção, muita coisa desaguou. E não veio em rap, não veio em reggae, nem em bolero. Veio em samba. Muitas, muitas, muitas canções em samba. Então essa energia fez com que eu encontrasse a energia de 2008, 2009, e veio de um jeito tão forte que as pessoas ao meu redor foram sentindo e disseram: “Vamos escutar, vamos escutar esses sambas que você tem, vai que esse é o momento, vai que essa é a hora”. Beatriz falou, Ganja falou, Cabral falou. (Beatriz Berjeaut é diretora-executiva do novo CD; Daniel Ganjaman Marcelo Cabral, os produtores.)

PAS: Isso quer dizer que há sambas mais antigos nesse repertório, ou é tudo novo?

C: Tem, tem um samba de acho que sete anos atrás, outros de cinco anos atrás, “A Filha do Maneco”, que é uma parceria minha com Ricardo Rabelo e Jefferson Santiago, que são do Pagode da 27. Acho que esse samba tem sete anos. “Dilúvio de Solidão” acho que tem cinco anos.

PAS: Mas tem várias que são novinhas em folha?

C: Tem, tem umas que são novinhas em folha, de agora.

PAS: Existem todos os purismos, não só da nossa música, como de tudo, então rap fica num canto, samba em outro. Sei que você sempre foi um cara que mistura…

C: É, pra quem coloca eles nos cantos, né? Dentro de mim está tudo dentro de mim, amo samba, pelo menos da minha época. Porque, por exemplo, você ir num bailinho de escola no Ester Garcia em 1991, aquele baile com a formatura…

PAS: O que é o Ester Garcia?

C: É o colégio em que eu fiz o primeiro, o segundo e o terceiro colegial.

PAS: No Grajaú?

C: No Grajaú. Então você tinha ali no bailinho de domingo, das 19h às 22h30, quatro ou cinco DJs, cada um responsável por uma seleção. Tinha melodia, o balanço, o samba-rock, o samba, o rap e o reggae. Então você escutava tudo. Nas festinhas de quebrada rolava tudo. Não tinha esse lance de diferença. Estava todo mundo junto. É lógico que em lugares específicos, se por exemplo a escola está fechada pra um evento de rap ou se tem um evento da igreja só de rap, você vai ver 20 ou 30 grupos de rap cantando rap. Mas o DJ, no intervalo, sempre rolava um pouco de cada coisa pra agradar todo mundo. E, lógico, se você vai numa roda de samba, 90% ou 100% é samba. A gente era muito novo, não tinha essa dimensão de que era separado. Você ia num rolê em que ia rolar samba, escutava samba. Vai no rolê que rola rap, escuta rap. É mais tranquilo isso pra gente, não tinha a dimensão de que tem pessoas pra quem isso é isso e não pode estar junto disso. É o querer de cada um, cada um tem sua vontade.

PAS: Pensando historicamente na música, que sei que é uma coisa que você gosta, vamos pegar, por exemplo, Beth Carvalho – desde que ela optou pelo samba, nunca gravou um disco que não fosse de samba, não sei se porque não quis ou porque não pôde, porque na época dela isso era de alguma forma interditado.

C: Acho que o amor que ela tem pelo samba é tão grande que… É uma mulher tão especial que acho que toda a energia dela é pra dar cada vez mais força ao samba e às pessoas que vivem o samba, que amam o samba. É muito particular de cada um, né? Uma Beth Carvalho tem uma importância pra nossa música popular brasileira que não dá pra mensurar. Cada um, ao seu jeito, dá a sua contribuição.

PAS: O que estou querendo perguntar é se você acha que a gente tem mais liberdade hoje em dia, se é possível se colocar fora das caixinhas.

C: Por exemplo, você não pode dizer pra uma criança de sete anos de idade que está aprendendo a tocar um cavaquinho, se ela quiser tocar uma música de criança no cavaquinho, que aquilo não é samba. Ela está usando aquele instrumento e fazendo o som que quer. Eu vou falar pra essa criança que ela está errada? Ao mesmo tempo que se você puder apresentar pra uma criança que só escuta um tipo de som, “isso aqui é baião, xote, embolada, samba, e tem uma raiz de tudo isso que está bebendo nisso”… É mais ou menos assim que eu imagino. E a criança, daquilo que mais emociona e que ela mais curte, ela vai seguir a vida dela, vai tocar violão ou guitarra, ou não quer mais saber disso e vai pra uma bateria. Isso pra quem tem a sorte de ter na família esse lance.

PAS: Você teve, Criolo, essa sorte?

C: Ah, lá em casa ninguém sabe tocar nenhum instrumento. Nunca rolou esse desejo, essa vontade. Minha mãe quis, quando jovem, aprender um pouco de violão. Colocou eu e meu irmão na aula de violão. Mas a gente ficou um ou dois meses, era muito pequenininho. Mais ou menos rolou, minha mãe sempre teve o desejo da gente estar envolvido com arte. Não importava a situação, ela sempre queria a gente envolvido com alguma coisa, não importa o que fosse.

PAS: Sua mãe é educadora, não é?

C: Minha mãe é.

PAS: Fala um pouquinho dos seus pais?

Os pais de Criolo, em página de revista lançada com o álbum "Espiral de Ilusão"
Os pais de Criolo, em página de revista lançada com o álbum “Espiral de Ilusão”

C: Meu pai é o seu Cleon. Foi metalúrgico a vida toda. É filho do senhor Raimundo e da senhora Raimunda, de Fortaleza. Meu avô era estivador. Minha mãe, dona Maria Vilani, uma mulher muito especial pra mim, muito maravilhosa. Meus avós, dona Maria e senhor Cícero, são pessoas muito, muito especiais, também de Fortaleza. Minha mãe foi benzedeira do bairro por muitos anos, depois nós fizemos o colegial juntos. Depois ela foi fazer a faculdade de filosofia.

PAS: Quando você fala juntos é na mesma sala?

C: Na mesma sala, mesma fileira.

PAS: Estudando lado a lado? Que experiência única.

C: É. Só que ela ficava na frente e eu ficava no meio, e às vezes no fundão.

PAS: Era legal pra você?

C: Era maravilhoso.

PAS: Não dava uma vergonha às vezes, ter a mãe do lado?

C: Nada, pelo contrário. Era uma felicidade. Eu achava muito louco isso, porque quando fui fazer o colegial eu tinha 13 pra 14 anos. Sempre tive uma relação muito especial com a minha mãe, muito tranquila. Achei maravilhoso a gente poder estudar juntos. Mas eu via que algumas pessoas na sala ficavam meio constrangidas, e até o pessoal da sala se soltar com a minha mãe…

PAS: Você não ficava constrangido? Uma criança de 13 anos, são tantos sentimentos…

C: Não, eu não. Minha mãe é muito especial. Aí a turma toda amou muito, minha mãe tirou onda. Tive a oportunidade de ver outras coisas da minha mãe, ela total, um trampo a mais. Mãe já é muito, né? Mas ela, de um outro lance, o jeito dela, o olhar dela, as outras coisas, aprender me ensinando. Pela idade dela, ela aprendia ali e ensinava também, tinha uma troca muito grande. Aquela turma do Ester Garcia, de 1990, 1991 e 1992, foi uma turma muito especial. Os jovens ali buscando futuro, buscando saídas, e o jeito que a gente trocava ideia, foi muito, muito especial.

PAS: Eu te interrompi, aí ela foi fazer filosofia? E você?

C: Foi fazer filosofia no Ipiranga. E eu fui trabalhar vendendo calçados no largo 13 de Maio, em 1992.

PAS: Olha quanto tempo até aqui. E depois?

C: Vixe.

PAS: Você é um cara que demorou pra aparecer.

C: É, demorou, demorou.

PAS: Por que isso?

C: Ah, porque acho que não fiz algo suficiente pra aparecer. Simples assim. É tanta gente fazendo coisa maravilhosa. Tudo tem seu tempo também.

PAS: A explicação está dentro de você?

C: É, eu acho esse acontecer muito relativo, porque só da música estar dentro de você e você se permitir se expressar e desabafar com a música, já aconteceu. Isso já aconteceu. Às vezes as pessoas guardam algumas frustrações tamanhas que nem precisava ser tanta. Você já vive, você já respira, você é. Agora, outras proporções, como vai ser isso, vai da história de cada um. Cada um vai encontrar sua história do sim, do não, como foi, como não foi. Mas só de você sentir a arte, se permitir… A gente vem num processo de repressão muito louca, “isso é pra você, isso não é”, “isso pode, isso não pode”, “isso é de menino, isso é de menina”. A gente vem de um ambiente bem hostil. Furar todos esses bloqueios e se permitir, nos anos 1980, 1990…, o cara já deu um passo, já foi pra Lua e voltou e não percebeu a grandiosidade do que permitiu trazer pra ele.

PAS: Pensando hoje, foi bom ter demorado? Você chegou mais maduro?

C: Eu acho que foi o que é. Eu não sei se eu cheguei mais maduro, cara, porque não sei conversar sobre um monte de coisa. Não sei conversar sobre um monte de coisa. Não sei. Tem coisas que tenho dificuldade de compreender. Tem coisas que me aprofundo e ainda levo um tempo pra acontecer na minha cabeça e eu entender. E tem coisas que já sou mais impulsivo e saio falando, porque também sou um ser humano, e é bom. Não sei se é mais maduro. Acho que até na hora da morte você não vai saber também.

PAS: Provavelmente ninguém está preparado pra fazer sucesso na música.

C: É, ou então é esse lance, é muito que resposta você dá pras coisas que estão te perguntando, ou pro que aguardem de você, independente de se você é uma pessoa que está em destaque na sociedade ou não. A sociedade cobra, cobra, ela cobra a perfeição, cobra a perfeição, cobra que você tenha resposta pra tudo, não importa se ela vai vir com sentimentos ou não. Seja algo que venha de uma coisa que criaram, de que isso é uma resposta plausível, ou de que você provou que é o pá de tal bagulho, mas muita coisa se perde, tá ligado? Porque, porra, vai ser pá em tudo, meu? Não existe isso, tá ligado?

PAS: Pelo que diz você não gosta muito de ser o pá do bagulho.

C: Primeiro porque não sou, primeiro porque não sou.

PAS: Mas muita gente acaba te considerando, e seguindo até.

C: Tenho carinho, tenho carinho, porque a gente vai trocando. Tenho carinho por isso, carinho total.

PAS: E é uma grande responsabilidade também. Você sente isso?

C: Eu acho que o lance, cara, é você com leveza falar essa parada, que nem a gente falou agora, há poucos segundos. Não dá pra ser pá em tudo, não sou pá das coisas, mas eu estou aqui. Estou de coração, vibrando pra que algo de bom aconteça. Tipo, não sei te explicar quanto de aço ou de tal minério é feita uma turbina que vai numa hidrelétrica. Não sei, mas sei que faz mal, pode matar um rio, pode matar toda uma cultura e toda uma história de quem está ao redor desse rio, dessa biodiversidade, nessa água. Eu sei que isso faz mal, então não vou deixar de expressar o meu sentimento por eu não conseguir falar sobre quantos anos tem tal tribo. Preciso saber, é importante saber, me traz, me ajuda, mas eu sei que vai morrer um monte de gente se fizer tal coisa, isso não é bom. Então, se permitir as pessoas se expressarem, falarem o que o coração pede, pô, aí já é demais, é maravilhoso. Aí vem a troca, porque tem o cara que sabe e fala “isso aqui é isso”, aí o outro cara da área dele vai discordar, e você vai aprendendo com as pessoas. Aí você fala: “Nossa, então isso é por causa disso, daquilo que criou isso? Sério? Vai tirar todo o oxigênio da água e os peixes vão todos morrer?”. “É, mas sabia, Kleber (Kleber Cavalcante Gomes é o nome de batismo de Criolo), que não tem só os peixes?”. Nossa, já aprendi mais um pouquinho, e em algum momento divido com uma outra pessoa. E o outro, que não manja nada daquilo, nem quer saber, tem um outro olhar que te fala outra parada, e a gente vai trocando. Porque, mano, como que vai ser? Como vai fazer com a criança que fala a primeira palavra, o bebê? Vai falar “cala a boca, você não sabe o que está falando”?

PAS: Às vezes é o que acontece. Criolo, eu não sabia ou então não estava lembrado dessa sua herança cearense. Há poucos dias morreu um cearense importante, o Belchior, e eu pensei em você, porque ele tem algumas canções provocativas em torno de “o amor não existe”, “o amor não é um sentimento pra mim”. E você tem “Não Existe Amor em SP” (2011), que teve uma repercussão que essas canções do Belchior não tiveram. E agora tem mais uma música no novo disco sobre o tema, “fiquei mergulhado em desamor”. Você fala também do desamor, do “não existe amor”. Fala um pouco sobre isso?

C: É que faz parte da vida, né? Faz parte da vida isso.

PAS: “Não Existe Amor em SP” foi uma provocação muito potente, né?

C: É, e eu não imaginei que fosse cair como provocação. Foi total desabafo. É muito mais desabafo do que provocação, porque também não sou dono disso que deságua. Esse texto é do mundo. Eu não sou dono disso. Veio mais como um desabafo, porque junta um monte de coisa. Cara perguntou “quanto tempo você levou pra escrever essa letra?”, eu falei: cinco minutos. Mas não é que é cinco minutos, eu tinha 36 anos de idade. Levou 36 anos pra eu desabafar desse jeito, e veio nessa canção. Então saiu muito mais como desabafo de desespero, porque as grandes cidades te sufocam, não respeitam sua individualidade. Números, números, números, números, números, números, números, números, números, irmão, e se sacar o dinheiro todo? Não existe moeda. Tem que mandar fazer o papel e a tinta pra mandar imprimir. Não existe. E sempre vai caindo no lance de destruir, de magoar a mente daquele novo que chega, que está tentando entender tudo isso. E sobretudo tem que esmagar quem às vezes nem se ligou disso tudo, mas naturalmente já faz diferente. E esse jovem é o mais perigoso, porque ele apresenta alternativa. E se eu me conecto com as tantas alternativas eu vou enfraquecendo o que está estabelecido, daí esse mecanismo de tentar sufocar, reprimir, suprimir, ridicularizar e destruir tudo o que o jovem apresenta de diferente. Usam essa desculpa de que tinha que saber mais disso, daquilo, e vão amassando ele. Tudo está interligado. Saiu muito mais como desabafo, de não aguentar mais ver uma cidade tão plural, com pessoas do Brasil todo, e todas essas pessoas são completamente desrespeitadas. Aí mexe com algumas coisas que não vão pra planilha do Excel. Já estamos falando do Excel, olha que interessante.

PAS: Mexe com amor.

C: Querem monetarizar tudo. Agora, quanto de remédio se vende pra quem está em desespero emocional? Quanto a indústria farmacêutica ganha com uma legião de pessoas doentes? Quanto ganha estarmos mal alimentados? Quanto ganha estarmos infelizes? Eles monetarizam a nossa desgraça, e isso não vai pra planilha. Dão um jeito de camuflar pra não ter como comprovar. Uma pessoa que está em depressão e não entende por quê, procura, estou tentando fazer do meu jeito, estou tentando fazer, estou tentando dar satisfação a todos vocês, mas não está dando certo. Como faz?

PAS: Quando o teu desabafo individual ecoa pra um monte de gente, é porque esse desabafo era de toda essa gente também, além de você?

C: Eu não sei. Mas cada um ao seu jeito. O poder do sorriso (força um sorriso) é natural, até espontâneo, que a sua face… Você vê uma pessoa sorrindo, é natural você… As coisas positivas, as coisas boas são tão fortes que causa medo em quem não quer que essa estrutura saia do rolê. Um abraço, cara, um abraço! Nossa, receber um abraço, receber um sorriso, por mais que você esteja num dia péssimo, às vezes você não consegue dar de volta esse abraço, esse sorriso. Mas você guardou aquilo. Em algum momento você vai dizer “meu pai, me deram o que tinham de melhor naquele momento, um desconhecido, e eu não…”. Isso é muito forte. Isso é muito forte. Agora, muita coisa maravilhosa está sendo feita em todos os cantos. E não tem como abafar isso, não tem. Não dá. Por toda São Paulo, por todo o Brasil e no planeta, está acontecendo um movimento de “nós não aguentamos mais o jeito que vocês estão fazendo”. E nós vamos pra cima.

PAS: Você tem esse sentimento?

C: Eu tenho esse sentimento desde quando sou, com cinco ou sei anos, e cadê meu pai? Ir trabalhar 60 dias sem ter folga, 12 horas por dia, porque senão perde o emprego, já tem outro que vai ganhar menos. Não é papo das redes. Não é papo de 2010.

PAS: Correr menos na esteira e ir pra rua (como diz a letra de “Menino Mimado”)?

C: Não é papo de agora. É papo de sempre. É papo de sempre. É importante. É importante (enfatiza). É importante respeitar a individualidade de cada um. Se a sua opinião difere da minha, em que ponto isso pode ser enriquecedor, por mais que eu ache desesperadamente doentio o que você está falando? A gente tem que se resolver. A gente tem que se resolver. Porque o inocente, a criança, absorve aquilo que enxerga, que faz mal pros seus pais, aí pega um pedaço de pau e vai bater no outro menino, porque só quer proteger quem ele ama. Pra quem vai ficar isso? Isso também não vai pra planilha. Agora, quem constrói o quê, que leva a pessoa a pensar de tal jeito?

PAS: Fala um pouco sobre o primeiro single do disco, “Menino Mimado”? Tem tantos por aí.

C: É. Menino mimado. Menino mimado? Quem mimou? Quem mimou quem? Quem dá mimo pra quem? Quem agrada quem nesse jogo global maior, pra se dar bem dentro dessa estrutura já posta? E aí o povo que pague a conta. Não pode. Não pode mais. Não pode mais ser desse jeito. Não dá mais pra ser assim. Eles não estão preocupados com o país, com as pessoas. Não estão preocupados com o futuro.

PAS: Quem são eles, Criolo?

C: Quem assina o documento. Quem assina o documento. E tem muito mais, são muito mais camadas dessa cebola, e comece a chorar. Não são só os parlamentares, mas quem eles representam e quem os colocou lá. Isso independe da ida à urna. Quem criou toda essa situação de mando de poder que se arrasta? Cara, eu vou te falar uma coisa aqui, de família. Meu pai sempre teve muito orgulho de falar que do Ceará e de todo o Nordeste sempre ganhávamos as medalhas nas olimpíadas de matemática.

PAS: Você?

C: Não, o nosso povo.

PAS: O Ceará.

C: O Ceará e todo o Nordeste. Sempre que iam pra uma olimpíada de matemática ganhavam uma medalha. Tem esse papo. E aí, nós temos Carolina de Jesus, que foi uma das nossas maiores escritoras, quase 60 países colocaram em sua língua pras pessoas lerem a obra dessa mulher. Uma mulher que tinha uma história de vida de luta e de superação. Ou seja, na matemática ganha medalha, na literatura tantos nomes que existem, nós somos abraçados pelo mundo. Tanto em humanas quanto em exatas, em todas as áreas, nós somos elogiados mundialmente. Então existe mente pensante, existem pessoas que dedicam sua vida a resolver questões, problemas. E por que não acontece a parada? Estou tentando falar uma coisa simples assim…

PAS: Você se sente uma dessas pessoas?

C: Lógico que não. Eu estou no bololô tentando fazer do meu jeito, dar minha contribuição. Mas estou tentando te passar coisas que converso com minha família, e aí você fica pensando “ué, mas por que não vai então?”. Dinheiro tem. Uma pessoa falar pra mim “sem perceber eu peguei 1 trilhão, só 1”, ou “eu peguei 500 milhões, eu não percebi, vamos devolver isso”.

PAS: Foi sem querer.

C: “Foi sem querer, não percebi.” Dinheiro também tem. Inteligência também tem. Boa vontade também tem. E tem toda uma geração que quer um mundo melhor para os seus filhos, porque não aguenta mais ver o que os avós passaram, o que os pais passaram e o que passam. Por que não vai? Por que quem está lá e é dono, esses poucos nomes que são donos de todo o poder que rege a parada, simplesmente estão atrelados aos interesses deles e de toda uma turma que está ao redor. Estou falando a grosso modo, sou um cidadão, mano, aqui conversando com você. Peguei aqui exemplos de coisa de bate-papo da minha casa, rolê de papo de meus pais de 20, 30 anos atrás. É disso que estou falando. Porque, pô, meu pai acorda 4h da manhã e chega 1h da manhã, a vida toda foi assim. Depois chegar no meu pai e falar (enfatiza): “Você tem que ser um cientista político”? Ele vai falar: “Meu filho, até gostaria, mas por ser preto e favelado eu quis ler os livros e até falaram que não era pra mim, e aí eu tentei aqui, nesse empreguinho, levar comida pros filhos”. Tem um monte de rolê que não aparece na planilha. E às vezes tem aquele supercara, a mente brilhante, que está lá, que nasceu assim. Não precisa ser o cientista político, estou falando porque veio na mente, tá? Um marceneiro, um marceneiro, irmão, de uma quebrada do Brasil. O carinho com que ele faz o móvel porque vai nascer seu filho, sabe o corre e a dificuldade que é, vai fazer de um jeito que está toda a boa energia dele ali. Aí o cara fala: “Hum, esse cara aí conversa muito, né?, estranho”. Ainda sofremos reverberações de tanto de preconceitos, de tanto de coisas impostas, de que isso não é pra você, isso não é pra você. É óbvio que tem jeito. É óbvio, isso é muito claro, cada dia que passa eu vejo mais a luz no fim do túnel. Eu vejo total. Total. Agora, o grande lance é: o que mais vão deixar a gente saber? Porque vai nos picadinhos, só deixa a gente saber também o que…

PAS: Eu queria aprender essa sua visão de ver o fim do túnel, sob golpe de estado, na situação em que as coisas estão hoje.

C: Não vai se sustentar. Não vai se sustentar. Não vai se sustentar. A gente tem que ter essa fé. Não vai se sustentar. Porque não pode.

PAS: Se se sustentar, são caras que querem o extermínio de caras como você. Como artista, periférico, negro.

C: Isso aí não é novidade. O extermínio já acontece. Vá no Terminal Grajaú. A pessoa está feliz porque arrumou um emprego, vai trabalhar pra gerar riqueza pra alguém, mas vai trazer aquele sustento com dignidade para sua casa. Vai ver o transporte desse cidadão. Isso já acontece. Vai em qualquer quebrada, em qualquer viela. Desde não ter luz num poste, você já está auxiliando esse mal.

PAS: Quero ouvir você falar mais sobre o fim do túnel. Onde ele está, como a gente acha ele?

C: Ah, meu, isso aí… Eu não posso me desconectar das boas pessoas que estão fazendo coisas maravilhosas. Só que isso não dá ibope, não aparece. Isso não aparece. Não dá ibope. Tem um monte de gente fazendo coisa maravilhosa. É nisso que a gente tem que se conectar. Essa é a luz no fim do túnel. Não desacreditar da gente enquanto espécie. Eu vejo uma coisa maior. É o planeta todo saturado, de saco cheio.

PAS: Você falando me ocorre uma coisa que penso sempre, essa lorota do país como um país pobre não dá pra se sustentar.

C: É porque roubam.

PAS: O Brasil não é pobre.

C: Nos roubam. Nos roubam. Nos roubam. É uma conta simples. Nos roubam. Tem um cara que rouba um tanto que dava pra pagar salário de três meses de um estado inteiro, de tais pessoas que estão lá aguardando. É nesse tamanho. É nesse tamanho. Nem preciso me aprofundar muito, criar personagem, fazer cena, falar que sou a favor disso ou daquilo. Não precisa. Já está aí. Já está aí. A cada dois segundos alguém morre de fome no mundo. Uma família em determinado lugar pra conseguir tantos centavos do dinheiro local tem que pegar de três a quatro toneladas de algodão. Isso já está acontecendo, gente.

PAS: Então, “meninos mimados não podem reger a nação”, mas estão regendo. O que nós fazemos, Criolo?

C: Cada um ao seu modo está fazendo já, faz tempo.

PAS: Você me mostrou antes uma música sobre resistência, do Amado Maita.

C: Música maravilhosa.

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PAS: Tem algum sinal nessa letra?

C: Essa letra é de 1972, e ele já falava do quanto estão nos magoando. Não sei cantar, “O Monstro Verde do Mal”, já fala do quanto estão triturando nossos ossos.

PAS: Tem a palavra resistência na letra, não tem?

C: (Cantarola) “Você precisa ver, é preciso resistir, vejo meu corpo na areia, sangue a correr…”

PAS: O disco de sambas é aquático, né? Tem músicas sobre água, chuva, dilúvio…

C: Água, água. “Nas Águas”, “Dilúvio de Solidão”, (canta), “nas águas do mar eu vou pedir perdão”…

PAS: É candomblé?

C: A letra já começa assim (canta): “O ano não foi bom por culpa minha, ó, pai/ abençoa demais esse pobre infeliz”. Pode acontecer, é uma coisa muito particular, você colocar o peso do caminho da sua dor no outro. Mas são mil caminhos, como pode ser também, e ser legítimo. Tem que respeitar cada um.

PAS: “Espiral da Ilusão”, a música, me soou como um samba gay.

C: Ah, que interessante, que maravilhoso.

PAS: Eu gostaria que fosse, porque sou gay, vai que Criolo canta uma música sobre isso…

C: Então é também. Então é um canto também.

PAS: Mas não é?

C: Não, não é. Mas agora é (risos). É essa simbiose de sentimentos que fazem alguma coisa acontecer. E se não estivesse no disco? E se nunca fosse gravado e em algum momento da minha vida eu tivesse cantarolado e você estivesse perto? Essa energia que te toca e te faz liberar a sua energia e falar um tanto de você faz com que a coisa aconteça, e isso é muito especial. Isso é muito especial.

PAS: Qual foi a intenção da letra? Você está usando um eu-lírico feminino? Ou não necessariamente? É aquela coisa, todo mundo vai viajar em cima da letra e cada um vai dar sua versão.

C: Sim, é, eu aprendi uma coisa muito especial com o Rodrigo Campos, que talvez me ajude neste momento agora. Ele fala: as canções que brotam de nosso coração são alicerces, e esse sentimento, esse olhar que leva pra não sei onde é um alicerce. Você vai construindo esse alicerce, o desenho que mais próximo chega também no seu coração. Acho que é um tanto disso, é um alicerce que cada um vai, em seu momento, desaguar. Aí se torna algo que existe. Se não tiver o encontro com o outro, por mais egoísta que seja o processo, na minha visão ela não nasce.

PAS: Eu completaria com o samba seguinte, um samba hétero. Isso condiz com o Criolo, que é preto, é branco, é várias coisas.

C: Estou achando interessante, tem um samba gay e agora um samba hétero. Qual você enxergou como samba hétero? Vai que o samba hétero é o samba gay.

PAS: “Calçada”, a mesma que fala do desamor.

C: Mas por que você entendeu como hétero?

PAS: Não estou com a letra na mão, esqueci agora.

C: (Cantarola.) “Eu sofri sem perdão/ não consegui admitir a situação/ logo o sofrimento se espalhou/ eu fiquei mergulhado em desamor/ eu sofri/ eu sofri sem perdão/ não consegui admitir a situação/ me vejo nessa sentença/ pendenga de desamor/ eu faltei com você e nada chegou”. Quem disse que é hétero?

PAS: Não fala de mulher em algum momento? Apesar que na anterior também…

C: Não, em nenhum momento. Em nenhum momento. (Os versos que interpretei como héteros são “era eu pra ela, ela pra mim/ isso tá bonito”).

PAS: Preciso da letra inteira pra lembrar por que me ocorreu isso.

C: Mas vai ser demais, depois você me conta. Porque quando fala “era eu pra ela, ela pra mim/ isso tá bonito”, ela pode ser a pessoa, né?

PAS: Ah. E não era? E pra você não interessa esclarecer…

C: É, “eu pra ela”… Ela, a pessoa? Ela, a situação? Eu falei que acordei com fome? Que será que é? É por isso que é um tanto também do que você traz. Talvez eleger um que seja hétero ajude também a entender as cores do que você entendeu enquanto não-hétero, o natural seu, de confronto, ou não-confronto – não tem confronto aqui, mas o natural seu, de que quando eu falo do sal eu realço o sabor do açúcar. Ou quando falo do açúcar, pra quem experimentou o sal, realço o sabor do sal. Então uma construção natural sua de trazer isso, e isso é a construção, entendeu? Mas, olha, jamais precisamos eleger um hétero pra falar de um não-hétero, hein? Mas eu entendo.

PAS: Pegando ainda o mote dos meninos mimados, em alguns momentos de entrevistas que você deu houve algum atrito com o entrevistador, e você respondeu na bucha – muito legal, inclusive. Vários jornalistas são meninos mimados também. Quero abordar o fato de que por um lado você faz muito sucesso e por outro tem resistência, tem alguns desrespeitos inclusive.

C: Cada um dá o que tem. Não é porque eu não concordo com você que vou te desrespeitar. Eu não tenho esse direito.

PAS: Às vezes fazem isso, né?

C: Mas é natural, ser humano. São coisas que com quase nada de esforço a gente consegue mudar. É só a pessoa estar a fim. E se tiver que mudar, também. Cada um tem um jeito, tenho que respeitar o jeito de cada um, tá ligado? Na boa, tranquilo.

PAS: Em alguns momentos você foi tratado por jornalistas como alguém que não fala legível, que viaja. Pessoalmente discordo, e acho que nesta entrevista, por exemplo, não tem nada de ilegível.

C: É, mas eu estou aprendendo, estou aprendendo a me comunicar.

PAS: Já foi mais difícil?

C: Estou aprendendo, estou aprendendo. Sempre é, né, meu? Você veio aqui, está rolando um papo, você fez uma pauta, por um desejo seu ou de alguém que estava na sua turma de fazer essa parada. Não significa que os outros estejam a fim dessa pauta ou de uma entrevista comigo. A gente está conversando, é natural que troque opiniões, opiniões formadas ou que estão em construção, que podem se modificar ou não podem. A gente está num papo saudável, de troca e de respeito. Mas ninguém perguntou a minha opinião. Nem a sua. Quando isso vai pra outro lugar, é algo que visita alguém. As pessoas não têm a obrigação, elas têm que ser do jeito que elas são mesmo, eu tenho isso na minha mente já.

PAS: Esse leopardo no seu agasalho é parente dos Panteras Negras?

C: É de 1974, a seleção do Zaire. Eles eram chamados de leopardos.

PAS: Indiretamente é parente dos Panteras Negras então.

C: Com certeza, pode ser, é isso aí.

PAS: E é vermelho, vão te chamar de comunista.

C: Não há problema. Não vejo problema. Não tem problema. Está tudo bem.

PAS: É um signo que você está usando?

C: É uma cor que nunca me incomodou.

PAS: É uma cor linda, né?

C: É. É uma cor que nunca me incomodou. Mas entendo também que… Essa cor pode se tornar mais viva.

PAS: É a cor do sangue também.

C: Mais viva, pra vir dar um pouco de brilho aos nossos olhos.

PAS: Era isso. O que eu não te perguntei, que você gostaria de falar?

C: Do nosso primeiro contato. Nosso primeiro contato foi em julho ou agosto de 2006. Você ligou para um orelhão público na rua (não consigo entender o nome da rua) no Grajaú. Você estava fazendo uma matéria sobre discos….

PAS: Pra CartaCapital, de onde depois saí e agora escrevo outra vez.

"Ainda Há Tempo" (2006), de Criolo DoidoC: Sobre discos de rap. E no meio da matéria você achou o Ainda Há Tempo, de 2006, e resolveu conversar comigo um pouco. Aí foram me chamar em casa, porque você tinha ligado. Estava dando a hora do combinado, a gente conversou um pouco sobre o Ainda Há Tempo.

PAS: Eu não sabia que era de um orelhão, isso você está me surpreendendo agora.

C: É.

"Nó na Orelha" (2011), de CrioloPAS: Depois você fez um disco chamado Nó na Orelha… Não deve ter nada a ver, mas…

C: Não, mas acho que essas visitas são o que está dentro da gente. Teve uma canção, um samba, que o Tom Zé gravou, chamado “Banca de Jornal”, que nasceu do modo respeitoso como um fotógrafo da CartaCapital me tratou. Tem aquele Retrato Capital, da última página, não tem?

PAS: Quando foi?

C: Isso foi em 2013. Ele não conhecia nada do meu trampo, nem nada. Foi fazer lá, ninguém tem que saber. Ele falou: “Kleber, você pode fazer assim, ficar no sofá mais à vontade?, você tá muito…”. Eu disse: “Rapaz, deixa eu ficar aqui do meu jeitinho mesmo, que eu ainda estou aprendendo o lance?”. Ele falou: “Não, por favor, fica tranquilo, do jeito que você quiser vai sair essa foto, desculpa, por favor”. E eu achei tão respeitoso, ele foi lá fotografar um ser humano, tá ligado? E eu recebi em casa um ser humano. E ele fez essa foto, e eu fiquei com uma vontade de fazer alguma coisa pra retribuir esse cara e todas as pessoas que são muito respeitosas, legais, gente boa pra caramba, em todo o meio, independente se eu concordo ou não concordo. Isso é uma coisa que vai além. O cara é um bom profissional, está fazendo o trampo dele, é uma ótima pessoa, independe. Ninguém tem que ficar sorrindo também pros outros, tá ligado? Aí a gente fez (canta), “veja onde a formiga vai/ isto é uma situação/ e ainda escrevo uma carta capital/ para os caros amigos/ desta banca de jornal”. Nasceu disso, do jeito como fui tratado por um profissional.

PAS: Esses versos são do Tom Zé?

C: Esses versos são meus, Tom Zé gravou. Só que ele mudou a primeira parte, muito inteligentemente, colocou ainda mais coisa. Ele foi gênio: “Veja, isto é época/ leia o grande bate-boca/ e ainda escrevo uma carta capital/ para os caros amigos desta banca de jornal”. Eu dormi com esse sentimento respeitoso, de querer dar um retorno, aí já ia além só da pessoa dele, mas representando todo mundo do Brasil. Eu dormi com isso, amanheci com isso, umas cinco horas da manhã estava no Terminal Grajaú, e vi aquele formigueiro. Aí fiz: “A formiga/ carrega a folha do estado de São Paulo a Piauí/ enquanto isso”, brinquei com a fábula da cigarra e da formiga, que fala que a cigarra é vagabunda, mas é muito pelo contrário. Inventaram isso pra dizer que quem é artista é vagabundo. Fui atrás da fábula real e fiz um sarcasmo, “enquanto isso a cigarra quer ser vip/ pra sair contigo na capa da tititi/ caras, quem vai matar?”. Marcus Preto falou pra mim que Tom Zé estava fazendo um disco e procurando lances, queria que a gente se encontrasse. Quando cantei pra ele essa no telefone ele falou: “É essa!”. E aí rolou. Nasceu desse bom momento.

PAS: E esse fotógrafo, que não sei quem é, sabe que foi ele que originou a série?

C: Não sabe, não sabe.

PAS: Vai ficar sabendo agora. A gente não sabe o nome dele.

C: É só ir lá no arquivo.

PAS: Vamos descobrir, vamos descobrir (o fotógrafo é Marcos Mendez).

C: Nasce assim, de algo positivo.

PAS: Pô, você acabou de explicar uma letra. Os artistas geralmente não fazem isso.

C: É porque foi natural, estou encarando isso como um encontro nosso.

PAS: A gente adora saber, Criolo.

C: Mas, por exemplo, disso já deu pra falar de um monte de outras coisas junto, tá ligado?

PAS: Coisas cruciais, inclusive.

C: Porque, se não tem aquele formigueiro e aquelas pessoas, o que vocês todos vão fazer? Não é só esse número. Não é só o número de CPF de cada cidadão, o tanto de cidadão que existe numa localidade, mas o que pensam essas pessoas, e mais: de que forma vamos dividir nosso pensar sem atropelar o pensar do outro? Sem pegar e induzir de um modo medonho um pensamento novo que começa a se formar e você sabe daquilo e você, “vem, tem que pensar do meu jeito”, “isso aqui vai pro céu e isso aqui vai pro inferno”. Ele foi muito respeitoso, um ser humano fazendo um trampo com outro ser humano. Rolou tranquilo… Aí você fala, né… Aí, cara… (Faz uma pausa grande para refletir.) Já estou vendo o meme nascendo, hein?, só nessa pausa (risos).

PAS: Meme negativo pra você?

C: Ou positivo, tá tudo bem, não tem problema. Tem um lance muito legal, alguém muito inteligente teve uma sacada dentro daquilo que ele acredita. Pra agradar ou pra tirar sarro, alguém muito inteligente teve uma sacada. Isso tem que ser valorizado também, cada um usa seu dom praquilo que mais curte e mais se preenche, entendeu? Se não fosse o meme, quantos milhões de pessoas viram minha entrevista com Lázaro Ramos? Se não fosse aquele meme tirando sarro da minha cara?

PAS: Não dói?

C: Eu tenho que agradecer essa pessoa. Tinha 700 mil views e foi pra 5 milhões. Olha quantas pessoas.

PAS: Não dói um pouco? Não fere, sei lá o quê, a vaidade talvez?

C: Mano, em que eu sou melhor que ele? Nada. O que tira dele o direito dele de fazer aquela montagem? Peraí, né, meu. Ele fez que 4,3 milhões de pessoas fossem ver a entrevista. Tá tudo bem, vamos lá, meu.

PAS: O escroto disso é que o que você falou de importante não vira meme.

C: Mas… É de cada um. Dá pra vocês fazerem um monte de meme, com o poder que vocês têm, só de coisa boa, de gente boa, de histórias maravilhosas, de gente que está dando o maior exemplo lindo. Vocês podem fazer. Pode ter um espaço na CartaCapital, “meme do dia”, porque tal pessoa está fazendo algo maravilhoso no bairro dela. “Ah, tá, pensei que era de zoeira, não, foi uma coisa legal”, por que não pode viralizar e ser uma corrente gigantesca da internet? Tá tudo certo.

PAS: A história do artista-cigarra, vai ver cigarra que faz não sei quantos shows por mês em sei lá quantas cidades diferentes… Deve ser pesado.

C: É um trabalhador também. Mas é isso, cara.

12082445PAS: Num momento posterior ao da primeira entrevista, fiz alguns textos, não sei se críticos ou o quê, dizendo que Folha de São Paulo tinha tentado embranquecer você. Fui desrespeitoso naquela ocasião?

C: Você deu sua opinião. Você deu sua opinião.

PAS: Até hoje não sei se ela tinha fundamento ou não. Os jornalistas muitas vezes decretam, parece que o que falaram era uma verdade.

C: É, os jornalistas ou um jornalista, não dá pra falar por todos, né? Agora, o seu olhar você joga pro mundo e sabe que algo vai voltar. De repente o objeto em questão sou eu e como está esse Photoshop, mas tem uma coisa muito maior por trás disso. Tira o nome e tira a ferramenta Photoshop – ainda fiz comercial do Excel e do Photoshop, está vendo como vai? Tira isso, e as outras tantas e tantas coisas?, do que é e não se percebe, do que não era, mas, porra, está aí.

PAS: Posso dizer, só dando um testemunho, que ouvi de gente de dentro da mídia “não pode colocar negro na capa”. E quando colocavam…

C: Davam um jeito de…

PAS: …Embranqueciam um pouco.

C: Olha só. Então a gente já sabe os porquês. Agora assim, o tanto que eu posso entrar numa malha de ódio, de todo mundo estar achando o máximo um ter ódio do outro, e a gente nem ter esse papo hoje. E a gente está celebrando um porquê…

PAS: Isso devo a você totalmente, porque não sei o que poderia acontecer depois de escrever aquela coisa.

C: Mas, man, e aí? O que vai fazer? Podia acontecer de você virar e falar uma outra parada aqui pra mim agora. Mas você está falando outro lance, que vai além disso tudo. E você puxou a parada aqui, até mesmo pra você ter o seu momento. Eu acho que se me magoou, se não me magoou, se tinha uma razão, um porquê, se era isso mesmo, você está desvendando pra mim uma pá de coisa. Agora, acho que quando a gente se encontra a gente cresce. Porque você tem os seus porquês, e o modo como você se expressa. E vocês têm nas mãos um alcance muito gigantesco. E é diário. E isso afeta diretamente nessa construção, de pequenas linhas de pensar. Sobretudo de quem ainda está deslumbrando essa coisa maravilhosa que é construir pensamento. Senão, o que vai acontecer? Uma porta aqui, outra aqui, outra ali.

PAS: Aí é a espiral do ódio, que é o que a gente está vivendo hoje, não só no Brasil.

C: Aí acabou. Aí acabou. (Enfatiza) Aí acabou. Acabou. Peguem os números, a guerra civil já está acontecendo. Peguem os números, inclusive os números já maquiados. Já vai ser assustador, imagina se não maquiar.

PAS: Alguém já disse que ditadura é quando o branco começa a sofrer o que o negro sofre sempre. Não sei se você concorda, mas e aí? A gente está em ditadura hoje?

C: Vocês querem colocar cor no sofrimento?

PAS: Às vezes tem, né?

C: Quem sofre? Quem passa o sofrimento? Quem engole todos os dias suas colheres de sal pela cor da sua pele e por sua posição social? Isso não é novidade pra ninguém. O desrespeito é absurdo. Agora, quando não se dão por satisfeitos, cria-se um ambiente onde todos têm que sofrer porque alguém é muito feliz vendo alguém sofrer.

PAS: Aí é o sadismo entrando na jogada.

C: Meu pai é um homem lindo, negro, maravilhoso.

PAS: Vi ele no dia do Existe Amor em SP.

C: E eu cansei de ver meu pai ser abordado simplesmente pela cor da sua pele. Favelado, metalúrgico, preto. Então, meu filho, tem coisas que a recordação faz seu coração sangrar. Eu não desejo isso pra ninguém.

PAS: Você foi abordado?

C: Isso que quero te falar: eu não desejo isso pra ninguém. Algumas questões estão longe, longe de serem resolvidas, porque os donos do poder não querem, ponto. Acabou. Acabou. O papo é esse, acabou. Acabou o papo.

PAS: Então acabou o papo.

(O tempo de entrevista era de uma hora, e o “acabou o papo” de Criolo serve de mote para o encerramento da entrevista. Entre levantar acampamento jornalístico e fazer as despedidas, Criolo continua a falar sobre o pai.)

C: Tinha que ter mais três horas pra falar da beleza do meu pai. Quando falo “acabou o papo” é porque vai ser inocência eu ficar falando isso aqui, cara. E ao mesmo tempo tem que falar. Mas aí tem que chamar uma pá de gente cabulosa do bagulho, pra poder dar números e dados, falar da luta, de tudo que está acontecendo, pra não falar que o que estou falando é em vão. Isso é muito importante. Isso é vergonhoso, 2017, as pessoas morrerem por ter a cor negra, por vir da diáspora, por ser homossexuais, nordestinas. O que está acontecendo, vocês estão loucos?

PAS: Você falou das abordagens policiais ao seu pai, mas você foi muito abordado?

C: Qualquer moleque de favela adolescente é abordado. Qualquer um.

PAS: É uma experiência que os meninos brancos mimados não dividem.

C: É. E aí? No final de tudo que é que vai rolar? Quem ganha com a treta mundial aumentando?

PAS: É guerra.

C: É legal a sinceridade, pra mim isso não vai. Sabe redução de danos? Senão fica nessa hipocrisia, e continua morrendo todo mundo nas quebradas, tiozão. Vi muita gente sendo assassinada, negão, na minha frente, do nada. Já vi muita gente, muita. Perdi muito amigo pra droga, pro crime, sendo confundido e o cara sapecando. Eu venho disso. Uma vez fui num enterro e não entendia como é que meu amigo conhecia tanta gente diferente. Eram cinco boxes. Eu ia no enterro 2, no box 2. Quando cheguei, o box 1 e o 3 também eram de amigo meu. Até saber como colocar pra fora isso, sem agredir ninguém, sem magoar ninguém… Tem que ter jeito, porque senão ninguém conversa. Já tem pessoas fazendo de outro jeito, cada um no seu jeito.

PAS: Isso ainda persiste até hoje, Criolo? Ainda morre gente no seu universo, dos seus amigos?

C: Lógico, meu, é frenético. Se não é ele é o filho.

PAS: E muitos Criolos foram nessa.

C: Se não é minha mãe e meu pai, filhão, metendo o louco, batendo de frente lá na quebrada… É o que fazem com a gente, botam todo mundo pra tretar, acham o máximo, criam uma série de situações pros jovens ficarem cada vez mais depressivos, querendo morrer, e está rolando o lance. E quando um dos nossos perder a cabeça é o exemplo do mal.

Criolo retratado na revista que acompanha o lançamento de "Espiral de Ilusão"
Criolo retratado na revista que acompanha o lançamento de “Espiral de Ilusão”

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