Diretora experiente de Kenoma (1998), Os Narradores de Javé (2002), O Sol do Meio-Dia (2009) e Céu sem Eternidade (2011), a cineasta paulistana Eliane Caffé fala abaixo sobre a experiência polifônica de construir Era o Hotel Cambridge (leia reportagem completa na edição 944 da revista CartaCapital) – e sobre arte, feminismo, política e ativismo.
Pedro Alexandre Sanches: O modo como o filme mistura ficção e documentário me pareceu muito original. Você concorda?
Eliane Caffé: De alguma forma, todo trabalho tem uma originalidade, no sentido de que a gente cria tudo do zero. Mas talvez o que imprime nesse filme essa estética mais híbrida, vamos dizer assim, é o fato de que a gente trabalhou numa zona de conflito real e simultaneamente às gravações. Ou seja, o filme acontecia ao mesmo tempo que a vida acontecia lá dentro. A gente estava costurando a ficção dentro da realidade mesma que a gente queria representar na ficção. A Carmen (Silva) da ficção era também a Carmen da vida real. É por isso que a fronteira entre ficção e documentário fica tão diluída.
PAS: Para você foi um processo novo, ou não chegou a ser?
EC: Para mim, totalmente novo. Eu fiz outros trabalhos em que também trabalhei em zona de conflito, como Narradores de Javé, ou Céu sem Eternidade, nos quilombos de Alcântara, que estavam em conflito com a base espacial. Conflito a gente tem o tempo inteiro, a gente vive numa sociedade de classes, de conflitos de classes. Mas, nessa zona que chamo de zona de conflito é onde isso fica muito, muito evidente. Quando a gente opta por imergir num universo pré-configurado, onde já existe um conflito bem estabelecido, bem fechado, a gente se transforma muito no processo. No Cambridge, a transformação maior que senti foi um envolvimento visceral com a causa do movimento, com as pessoas que fazem a luta, com o dia a dia. Foi um envolvimento tão visceral que acabou a filmagem e a gente continua até hoje lá. Eu me transformei numa militante da FLM.
PAS: E você disse que nem sequer sabia nada sobre movimento de moradia quando começou.
EC: Não. Não tinha o menor contato, sabia o que todo mundo sabe pela mídia. Não tinha a menor ideia das nuances, do nível de organização, das inúmeras camadas de humanidade que existem ali dentro. Nossa, é muito complexo. É um grande caldeirão. É muito complexo.
PAS: Então esse filme transformou você?
EC: Muito. Transformou muito. Pela extensão que teve, ele se desdobrou em muitas coisas que a gente nunca tinha previsto. Isso também tem muito a ver com a própria abertura do movimento, em absorver e estimular isso. Podia ser um movimento superfechado, que a gente não ia conseguir entrar. Já vi situações em que isso acontecia. Em Alcântara, por exemplo, era dificílimo conseguir penetrar nos movimentos organizados. E aqui não, aqui fluiu ao contrário, parecia que o fluxo era ininterrupto. Quanto mais a gente se aprofundava mais demandas surgiam.
PAS: A Carmen é acolhedora, não é?
EC: A Carmen tem uma característica pessoal dela, que imprime uma identidade muito forte. Mas o movimento por inteiro é um movimento de mulheres, e mulheres que, por exemplo, no MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), são negras, de origem fora de São Paulo, do Nordeste. Então isso faz uma diferença enorme, enorme, de você encontrar uma liderança que tem esse histórico de vida. Você sente que não existe competitividade, é o contrário, as pessoas querendo somar o que têm de melhor. Isso estimula. Como qualquer ser humano, quando você sente que está num lugar onde é importante, você estabelece um vínculo muito difícil de quebrar.
PAS: Você está citando essa característica feminina do movimento, a gente poderia dizer que isso coincidiu com o momento histórico do Brasil, em que uma presidenta da República estava sendo deposta?
EC: Olha, eu digo mais numa perspectiva histórica mesmo. A questão da mulher está muito associada à questão política, da ideologia que vai se construindo ao longo de séculos. A questão, por exemplo, de que nesses movimentos as mulheres sobressaem, é muito ligada à própria genética do movimento. Porque é a família. A mulher, como a Carmen fala, é o arrimo da família. É ela que cria, protege a cria dela, os filhos. Independente de o casamento ir bem ou mal elas têm essa coisa agregadora. O movimento de luta por moradia, por exemplo, é um movimento de característica feminina. Mesmo quando a liderança é masculina, você vai nos acampamentos, nas ocupações, e a mulher é a figura que organiza cada célula. Proporcionalmente, a participação da mulher é infinitamente maior que a do homem. A gente nunca viveu um êxodo tão enorme, comparado com toda a história da humanidade, é uma loucura pensar nisso. Hoje se tem quase 70% do globo migrando para as grandes cidades, sem nenhum planejamento, com uma rapidez enorme. Não dá nem tempo de reestruturar as cidades, e cidades que são organizadas e planejadas em cima do princípio da especulação. Ou seja, é um tipo de expansão urbana que não tem absolutamente nada que ver com adequação da demanda real. A especulação organiza a cidade da pior forma possível, de forma predatória, de forma a excluir as necessidades reais. Então o que acontece é que as cidades hoje são os grandes territórios de luta, e isso vai se agravar agora com a questão dos grandes fluxos de refúgio e de migração do mundo inteiro, fora as migrações internas, que se somam por consequência das guerras e se estendem em nível global. Então você imagina o que é a cidade, a questão da moradia, para o século XXI. A mulher está intimamente ligada à questão da moradia. Por isso acho que o papel feminino, historicamente, está tendo esse protagonismo, que só vai crescer.
PAS: O filme expressa bem o fato de que aquela é uma comunidade de diversos tipos de excluídos, e a mulher também entra nessa questão, na exclusão de muitas modalidades de decisão. E, num lugar como esse, ela vai tomar uma função protagonista, talvez não seja por acaso.
EC: Não, de forma nenhuma é por acaso. Esse papel dela nesse momento de luta é construído historicamente, há muitos séculos. Não é agora. Agora os conflitos estão indo nessa direção, na qual ela está ocupando um eixo, como no conflito com os refugiados. Acho muito importante, uma coisa que a gente sempre quis no filme: existe um denominador comum que une todas essas experiências diferentes, tanto a do refúgio como a das ocupações, que é o sistema político e econômico que está no solo de tudo isso, que é o que provoca tudo isso. Por um lado é assustador, porque o homem é diferente em tantos níveis e de repente tem uma coisa que está unificando essa diversidade, de uma forma terrível. É uma unificação pelo sistema econômico, um neoliberalismo extremamente acirrado, que faz com que tantas etnias, tantas diferenças culturais sejam forçadas a se encontrar dessa maneira, na dor, no sofrimento, na expatriação. Os seres humanos se juntam num momento de muita dor. O estrangeiro que se encontra com o brasileiro aqui se encontra não é numa situação de férias, de opção, de querer visitar e conhecer o outro. Eles se encontram numa situação-limite de vida. Isso de certo modo vai influenciar muito o tipo de contato que se estabelece, como o refugiado encontra o brasileiro de baixa renda e como eles se olham no momento em que estão numa situação de exclusão absoluta. Ao mesmo tempo, tem uma coisa extremamente potente nesse encontro, que ainda está por se construir, não está dada. É a potência do momento desses segmentos se perceberem numa luta em que eles têm o mesmo inimigo, vamos dizer assim. Quando isso vier à tona e despertar nas consciências, vai ser um momento extremamente transformador. O papel dos movimentos sociais e outros segmentos da sociedade que interagem é exatamente esse, fazer de tudo para que, através das ações e da militância, essa consciência desperte.
PAS: Eliane, você vai fazer esse filme, trazer notícias daquele mundo que jamais foram dadas em qualquer veículo da mídia tradicional. É um tabu, você mesma diz que chegou lá sem saber nada, e nenhum de nós sabia até entrar lá dentro. A gente só sabia pelas notícias, que simplesmente não contam, não dão o lado humano do que existe dentro de uma ocupação. Eu queria saber de você como é enfrentar esse tabu. Agora existe um filme sobre isso, como ele vai ser recebido, como a mídia vai tratar?
EC: Na verdade, acho que o momento é muito receptivo. Apesar de a gente estar em pleno golpe, acho que existe uma mobilização espontânea que está se fazendo em vários segmentos, dos universitários, dos secundaristas, dos movimentos de consciência negra, de moradia, dos sem-terra, vários. Está acontecendo uma boa movimentação não-partidária, mas muito ao redor das necessidades mesmas. Portanto, é ainda uma mobilização muito focada nas necessidades mais concretas e básicas, que está muito receptiva a esse tipo de filme, de narrativa, que cria uma forma de ajudar a polarizar uma discussão que está se formando – e que, aliás, já nasce polarizada. A gente nunca viveu na história um momento de tanta polarização como está acontecendo aqui, que acho muito positivo.
PAS: Você acha positivo?
EC: Porque ficam muito evidentes as posições, o que antes era muito obscuro. Hoje você sabe melhor o que o seu amigo pensa, de onde ele parte. Isso faz com que o debate seja muito mais profundo do que quando se faz aquela concordância, aquela harmonia totalmente superficial e leviana.
PAS: Ou seja, estamos numa zona de conflito?
EC: Com certeza.
PAS: Nesse sentido até entre visões de mundo, disputas políticas, se foi golpe ou não foi golpe.
EC: SIm, exatamente. Às vezes é difícil, quando a gente fala em nível de discurso a gente tende a conceituar muito, a generalizar. Por exemplo, a grande esfera de ação dos segmentos intelectuais, artísticos, esse artístico mais das elites, que tem acesso aos financiamentos, aos patrocínios, que está despertando nessa polarização, a gente tem como território de ação o discurso. Pode ver, se juntar um monte de intelectuais, de profissionais numa roda de conversa, você fica a noite inteira numa discussão inesgotável que é totalmente diferente de se juntar uma roda de pessoas que estão enfrentando a luta concreta. A ação se dá em outro território. Quando essas duas coisas se encontram, você consegue ter uma instrumentalização muito forte da luta. Acho que é isso que está acontecendo neste momento. Vejo muito mais hoje os profissionais migrando para as áreas de território de conflito mais aberto e explícito do que antes. Estamos saindo das nossas bolhas e procurando a realidade fisicamente, corporalmente, não através só da mídia, das imagens.
PAS: A ocupação vai recebendo os africanos, os palestinos, e um dia ela recebe também uma comunidade de artistas, de arquitetos, que são vocês. Imagino que inicialmente vocês também são um corpo estranho, ou pelo menos desconhecido lá dentro. No elenco só detecto Suely Franco e José Dumont de atores profissionais. Como foi essa interação? Como eles recebem os artistas, e como os artistas se incorporam dentro daquela realidade?
EC: Ah, tem uma receptividade muito grande. Quando você propõe o jogo lúdico é incrível. Em qualquer situação, pode ser a situação mais limite, o jogo consegue fazer com que as pessoas se falem, procurem seus pontos em comum. É incrível o poder que tem a brincadeira. A brincadeira é uma coisa extremamente agregadora, sabe? Acho que a gente tinha que aprender a trabalhar mais com a brincadeira.
PAS: Você tem uma cena assim no filme, aquela em que os moradores ficam se colocando no papel do juiz que vai julgá-los.
EC: Sim, a cena coloca isso, mas você imagina um filme ali dentro. O próprio fato de a equipe estar ali dentro é uma brincadeira. Estamos lá brincando de contar uma história, na qual todo mundo vai fazer um papel de faz-de-conta. Isso faz com que todo mundo fique muito entrosado. Essa relação entre atores e não-atores acontecia dentro desse ambiente, e isso transpira na tela.
PAS: Você considera os não-atores atores do seu filme? A Carmen, por exemplo?
EC: Sem dúvida, sem dúvida. A partir do momento que eles entram no jogo, estão ali na função de atores. Só que o que estão mobilizando na atuação deles é um repertório de vida extremamente rico, que a gente jamais ia conseguir roteirizar sem eles.
PAS: Você acaba fazendo ficção da vida real, de fato?
EC: Sim, e com eles. Digo que é uma ficção que só é possível com eles, porque todos os diálogos, tudo… eu não dava o texto, eles é que criavam os diálogos. Eu só dava a situação. Nesse sentido é um roteiro escrito por todos.
PAS: Não entendo qual é exatamente o lugar do Isam (Ahmad Issa). Ele não é um ator?
EC: Não, o Isam é como a Carmen. Ele é uma liderança palestina, que também é um poeta, tem uma alma artística extremamente incandescente. E ele também atuou, colocou esse repertório à disposição da ficção.
PAS: Ele mora em ocupação, ou não?
EC: Mora, ele mora no Cambridge.
PAS: Ah, nas vezes que estive lá não vi ele, por isso fiquei na dúvida.
EC: Ele não morava lá, foi o filme. Conheceu através do filme. Ele morava no Rio Grande do Sul, se mudou para São Paulo e foi morar lá.
PAS: Que maravilhosa essa história.
EC: Maravilhosa.
PAS: Como você chegou nele, se estava no Rio Grande do Sul?
EC: Porque ele fez um filme chamado A Chave da Casa (2009, de Paschoal Samorra e Stela Grisotti), filmado uma parte no acampamento na Jordânia e outra parte quando eles chegam ao Brasil. Vi ele nesse filme e fiquei impressionadíssima, porque Isam é um filósofo. As coisas que ele fala são incríveis. Eu conhecia o diretor, que é meu amigo, e perguntei para ele se podia ter contato. Ele me passou, comecei uma conversa por WhatsApp, que evoluiu, evoluiu, até o dia que a gente foi se conhecer aqui em São Paulo. A partir de então, a gente ficou muito amigo, e ele naturalmente foi nos orientando muito. Ele é extremamente politizado, Pedro, vale você fazer um dia uma matéria com ele. Ele é uma das pessoas que têm uma visão mais avançada de como entender o conflito da Palestina no mundo, sabe? É extremamente rica. E, enfim, ele colocou essa alma no filme.
PAS: Na entrevista coletiva ele me impressionou muito, talvez até por um preconceito meu, por causa da imagem que se vende do homem daquele lado do mundo, extremamente machista. Mas ali ele tratava você com uma delicadeza e um respeito que parecia o mais feminista de todos.
EC: Sim! É exatamente isso, esse é o Isam. Ele tem mesmo uma alma feminina, é verdade. Pouca gente percebe, mas para mim, como você está observando, é muito evidente essa delicadeza que ele tem. E é um homem que atravessou sete guerras, hein? Ele sobreviveu a sete guerras.
PAS: Aquela cena dele descrevendo as mulheres de 45, 46, 47 anos é uma ode a quebrar um estereótipo de que os homens só valorizam as mulheres jovens…
EC: Exatamente, exatamente. Que legal que você viu assim, é uma coisa delicada, de valorizar a experiência da mulher, da idade, como aquela que conhece mais os segredos do amor.
PAS: Voltando ainda à questão feminina, é uma experiência particular minha, mas 90% dos melhores filmes brasileiros a que tenho assistido são feitos por mulheres. Você está nessa estrada há bastante tempo, mas existe um fenômeno acontecendo nesse sentido, não existe?, de uma explosão de diretoras mulheres?
EC: É, engraçado isso, né, Pedro? É verdade.
PAS: São as Carmens do cinema?
EC: (Ri.) Essa vou até contar para a Carmen.
PAS: Como você interpreta isso?
EC: Acho que é o reflexo dessa abertura, na qual esse conteúdo expressivo vem à tona. Não é mera coincidência, acho que é o cruzamento de vários fatores. Quando existe essa possibilidade de evasão, tem muito conteúdo. Agora está sendo mais fácil aparecer isso, por essa luta e essa conquista.
PAS: Da minha parte é uma surpresa ver um conteúdo que não é o que estou acostumado. As histórias não são contadas do jeito que eu sempre via. É realmente diferente.
EC: Isso também está muito ligado com a revolução da linguagem, que acontece ao mesmo tempo. Está mudando muito o jeito de construir as narrativas.
PAS: Na mesma semana vou ver um filme brasileiro de indústria, feito por um cineasta homem branco, e é o contrário, a mesma coisa que vi a vida inteira, e quase morro de sono.
EC: Sim, é, isso é um sintoma da linguagem que está desgastada.
PAS: À medida que mais mulheres conseguem entrar elas trazem a leitura que estava oculta, não é? Não só mulheres, eu sei que não é só isso, mas é um dado muito presente.
EC: Sim, é um espaço que está acontecendo e que a gente talvez ainda não tenha todos os instrumentos para poder interpretar tudo que está envolvendo. Mas é um fato, a gente constata, né?
PAS: Vou fazer uma pergunta extremamente ideológica, porque sou militante, dilmista ferrenho, mas quando se derruba uma Dilma nascem 500 mil dilmas em outros lugares – no cinema, no movimento de moradia, e assim por diante. Estou falando um absurdo?
EC: Não, não é um absurdo. Mas acho que nessa questão da Dilma, no meu ponto de vista, não é tanto a questão do gênero, embora esteja. Acho que o que provoca essa reação é mais a reação de resistência, de sentimento de repulsa ao que está acontecendo por todo um processo que desencadeou essa caída dela e que está no poder, que está exercendo sua máxima força. Isso faz com que nasçam várias lideranças que estão aparecendo aqui e ali. É um enfrentamento de questões muito profundas, que transcendem o gênero.
PAS: Uma coisa que fiquei pensando enquanto você falava é que não só a Dilma, mas o projeto político que foi derrubado é aquele que empoderava as mulheres dando a elas o dinheiro do Bolsa Família. Isso também ajudou a criar Carmen e as outras mulheres que hoje lideram movimentos sociais. É todo um processo, que tem vínculos, não?
EC: Sim, mas, no caso específico do exemplo da Carmen, o que ajudou a criar a Carmen foi o impacto dela, quando chega em São Paulo e se vê totalmente desprovida de tudo. Ela foi da rua, morou na rua, a Carmen. Ela teve a vivência de albergue mesmo. O que vai despertando nela essa força de liderança é quando ela cai num movimento de luta que já estava mobilizado e conhece o coletivo. No momento que ela se depara com o coletivo, no sentido de ver que a questão individual dela está representada e sendo vivenciada por um coletivo, aí ela desperta. Vem bem antes do Bolsa Família.
PAS: É era FHC.
EC: Vem da necessidade de viver, de sobreviver, não digo só fisicamente, mas porque ela estava derrotada espiritualmente. Ela chega derrotada, de uma violência familiar, de apanhar do marido. Muito da força dela vem de ter se confrontado e percebido que o problema dela não era individual. Ela fala muito isso, e eu vejo muito isso na prática: quando as mulheres chegam no movimento – principalmente as mulheres refugiadas -, olham para o lado e veem a outra mulher ali, nossa, começa uma onda de solidariedade entre elas que é incrível de ver. Acho que é o tipo de solidariedade que só as pessoas que estão nessa condição conseguem entender e viver.
PAS: Qual é a sua militância hoje no movimento, uma vez que o filme já está concluído e prestes a estrear?
EC: Ah, a militância segue. Estou muito mais focada no grupo dos refugiados, dentro da FLM e do MSTC. Agora o principal é permitir que o filme siga nessa direção, porque ele foi apropriado pelo movimento. Isso é outra coisa incrível, totalmente inesperada, que muda completamente o impacto que o filme está tendo no lançamento. É o fato de o movimento se apropriar do filme.
PAS: Muda como?
EC: Nossa! Quando a Carmen fala do filme, nas reuniões de coordenação, ela diz que o filme hoje é o principal instrumento de luta deles. Por quê? Porque eles se reconhecem, como se o filme representasse de fato o que é essa luta. Eles põem o filme à frente. Nossa, imagina o que é você começar a fazer um filme, se mobilizar para fazer porque se identifica com a causa – você não é um deles, mas quer representar essa alma – e de repente essa alma ganha o corpo que não é o seu, que é aquilo mesmo que você queria representar.
PAS: Ganha o corpo deles, dos personagens representados.
EC: O corpo deles. Então, eu só fico assistindo de um lugar privilegiado. E estimulando muito para que o filme seja de fato nosso, mesmo. Quando você termina um filme, ele sempre é do diretor, há um estigma nisso, e esse é outro aspecto que acho transformador nesse processo: é que o resultado do filme seja um resultado que pertence ao coletivo. Então é o coletivo que defende o filme, não é mais só você. É o coletivo inteiro defendendo o filme. A gente foi no acampamento do Guilherme Boulos, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), na avenida Paulista. São movimentos irmãos, mas não são o mesmo movimento. Existe diferença entre eles. E você tem que ver, a gente foi convidado para apresentar o making of lá, quando desce na estação da Consolação o grupo da FLM, todas vestidas de camisetas, e saem do metrô gritando o canto deles e se juntam ao MTST. Foi um dia histórico, porque os movimentos se abraçaram. E o que permite isso é o filme. O filme é uma espécie de abre-trincheira. Ele acaba fazendo um papel de embaixador das diferentes humanidades ali.
PAS: Deve ser um privilégio também assinar um trabalho que vai servir para isso.
EC: Não é? Agora, isso só pode porque eles se apropriaram. Eu jamais poderia, se eles não tivessem se apropriado nada disso estaria acontecendo. Então não é uma força que o filme faz. É uma força que o coletivo que se vê representado no filme faz. Não é que é um poder do filme, é um poder do coletivo que se apropriou desse filme.
PAS: Mas insisto, Eliane, que o filme fala coisas que jamais foram ditas dentro do universo da mídia em que a gente vive mergulhado. Ele rompe um tabu, quebra uma barreira. Não sei quem vai assistir e quem não vai, que mundo vai aceitar o filme e qual outro não, mas essa história não estava contada com clareza para muitos olhares até agora.
EC: Ah, que bom, isso é bom. Agora estou indo para quatro festivais levando o filme. Isso também vai ser incrível de ver: como os outros públicos, dos outros lugares, veem o filme. Essas duas questões juntas, refugiados e movimento de moradia, está no mundo inteiro como uma força muito potente. Fui com a Carmen à Espanha mostrar o filme, foi a primeira vez que ela viajou para a Europa, super-incrível. Você tem que ver ela andando em San Sebastián. Ela não parava de olhar as arquiteturas. Ela falou que tem vontade de voltar a estudar e fazer arquitetura. E ela olhava, nossa, realmente ela tem uma visão da arquitetura… É muito inteligente, muito especial mesmo.
PAS: Ela se imagina ocupando cada uma daquelas construções?
EC: Então, mas ela tinha um olhar que era para a arquitetura, foi isso que me impressionou, como ela viu a cidade de San Sebastián, a leitura que uma pessoa que trabalha com esse tema a vida inteira faz da cidade. É um outro olhar, diferente do purista, por exemplo. A Carla (Caffé) também tem uma função extremamente importante na mobilização do coletivo artístico do filme. Ela fez uma luta interna que precisa ser muito valorizada. Conseguiu fazer com que a Escola da Cidade, que é uma faculdade de arquitetura, transformasse no currículo da própria escola a matéria de 21 alunos que fizeram a construção da direção de arte do filme. Ele entrou no currículo acadêmico da faculdade. Isso quer dizer o quê? Que os alunos que aprendem arquitetura foram fazer essa experiência no local. Você tem que ver o desdobramento que isso trouxe para a faculdade de arquitetura. O livro que ela está lançando se chama Era o Hotel Cambridge – Arquitetura, Cinema e Educação, conta coisas muito legais do processo.
Um filme desses não atingir mais que 4 mil cidadãos…
Estou adorando a reportagem denominada “Um hotel chamado Terra”. Cresce minha admiração por Carmen Silva, meu respeito pela “Ocupação Cambridge” e meu apoio aos que lutam pela dignificação de suas vidas. Junto-me aos que se manifestam pela extinção do golpe e pela imediata redemocratização do País.
Muito agradecido.
Orlandi
Maravilhoso, Luiz. Amanhã de manhã (sexta-feira) vai ao ar a terceira parte, com a entrevista de Carmen!