Pasta pede R$ 1,7 milhão de volta de Antonio Carlos Bellini Amorim, uma ínfima parte perto dos R$ 80 milhões que ele pode ter desviado, revela Jotabê Medeiros
O Ministério da Cultura pediu nesta sexta-feira, 24, à empresa Amazon Books & Arts a devolução de R$ 1,7 milhão ao Fundo Nacional de Cultura pela captação de recursos para 5 projetos. A decisão está em portaria publicada no Diário Oficial da União. Apesar do nome familiar, a Amazon Books & Arts não tem nada a ver com as lojas virtuais Amazon. Trata-se de uma das sub-empresas usadas para captação de recursos pelo empresário Antonio Carlos Bellini Amorim, apontado pela Polícia Federal como um dos maiores fraudadores da Lei Rouanet desde a sua criação.
O projeto mais vultoso dos cinco reprovados, de Circo, que captou R$ 710 mil, é de 2012 e é descrito assim no memorial do MinC (mantenho o português do autor): “O projeto Circo na Cidade pretende proporcionar às familias de baixa renda, o acesso à oficinas, para a prática em aparelhos circense como: cama elástica, trapézio baixo, tecido, malabares, acrobacia de solo, alongamento para contorção, arame entre outros. O evento terá duração de 180 (cento e oitenta dias), prevendo um espetáculo circense gratuito, aberto ao público”. O projeto foi inteiramente financiado por uma única empresa, a Perdigão Agroindustrial.
Em menos de uma década, a Amazon Books & Arts captou R$ 33 milhões em recursos incentivados de empresas diversas. Entre os reprovados nessa portaria de hoje, está o da História do Helicóptero. Há muitos projetos usando nomes de instituições e artistas, como o Instituto Tomie Ohtake, mas nem sempre há cuidado com a apresentação. Em um projeto intitulado Jovem Olhar, a produtora escreveu: Thomie Otheke.
Bellini foi preso em São Paulo em junho do ano passado e solto com pagamento de fiança de 100 salários mínimos). No último dia 2, ele foi indiciado pela Polícia Federal, junto com outros 29 investigados na chamada Operação Boca Livre (de apuração sobre desvios na Lei Rouanet). O relatório final do inquérito da PF atribuiu ainda a 10 empresas cumplicidade com o esquema que teria sido pelo Grupo Bellini Cultural, alvo principal da investigação. Foram indiciados executivos das empresas Nycomed Pharma (Takeda), Grupo Colorado, Cecil S/A, Scania, Roldão, Demarest Advogados e Laboratório Cristália.
Antonio Carlos Bellini disse à polícia que é inocente das acusações e que vai provar isso no processo.
Mas quem é Bellini e como ele adquiriu essa dimensão no mundo da cultura?
“Versátil”, apresentando projetos que contemplavam da história do cavalo Mangalarga à “moeda quântica”; do clube Paineiras do Morumbi à biologia e o design, o produtor paulistano foi responsável sozinho por uma punhalada de credibilidade na legislação de incentivo à cultura. Ele pode ter desviado mais de R$ 80 milhões em captações, segundo estimou inicialmente a polícia.
Sua atuação é identificada a partir de 2011, quando a estrutura de captação que montou começa a ser monitorada. Mas ele continuou atuante até 2015, usando o seguinte estratagema: com 8 empresas diferentes, apresentava uma profusão de projetos de aspecto respeitável (e texto nem sempre cuidadoso). Muitas vezes, apresentava os mesmos projetos com nomes diferentes por diferentes empresas.
Suas diferentes empresas (as mais atuantes eram Amazon Books & Arts; Vision Midia & Propaganda Ltda; Pacatu Cultura, Educação e Aviação; e Master Projetos Empreendimentos Culturais S/C Ltda) revezavam-se na circulação dos recursos, segundo nota oficial do MinC, o que dificultava o rastreamento das operações. A reprovação das contas dos seus projetos não o angustiava, pelo jeito. Eram muitos com contas desaprovadas.
Dentro do MinC, ele ficou conhecido pelo atrevimento. Mesmo flagrado e tendo projeto recusado, ressurgia em outro momento com outra proposta. Chegou a apresentar projeto para o Museu Nacional de Belas Artes, que é federal (pertence ao Instituto Brasileiro de Museus).
Apresentava o mesmo projeto (e conseguia aprovação) ligeiramente maquiado, sempre com um tom “altruísta” (atingir públicos nunca antes atingidos, etc), e alguns deles pareciam obedecer um roteiro pré-determinado de incentivo líquido e certo – por exemplo, os projetos relativos a caminhões e caminhoneiros. Assim, chegavam ao MinC as propostas dos projetos Teatro nas Estradas, Boleia de Caminhão, Arte para Caminhoneiros, Caminhos de Caminhoneiro, Estrada da Cultura, Arte nas Estradas. Tudo consistia exatamente na mesma coisa. Com essa estratégia, levantou da Scania Latin America (somente pela Pacatu Cultura Educação e Aviação) cerca de R$ 3 milhões. A facilidade com que a empresa liberava recursos para Amorim levou a Polícia Federal a concluir que alguém de dentro da Scania o ajudava, o que terminou em um indiciamento.
Mas a reputação pessoal de Antonio Carlos Bellini Amorim não é a de um picareta voraz. Pelo contrário: o maestro Julio Medaglia, que protagonizou diversos projetos da Bellini Cultural, demonstrou tê-lo em alta conta. “Todos os projetos que fiz com ele foram realizados insuportavelmente corretos. É um homem civilizadíssimo. Para mim, também foi uma surpresa a prisão dele. Pagava todos com correção, em dia, tinha grande carinho pelos músicos. Eu me lembro de ele ter me contado que fora traído um funcionário, na época, que estaria sujando o nome da empresa dele. Pediu que eu o aproximasse da ministra Ana de Hollanda, que eu conhecia, para ajudá-lo a esclarecer coisas. Não quero por a mão no fogo, mas não tenho queixas dele. Tinha projetos nobres: salvar a água, ajudar as crianças. Sua empresa tinha um rigor até insuportável na prestação de contas. Não entendo”.
Entre os projetos com o maestro, Bellini captou recursos para o show Concerto MPB Sinfônico, que levantou R$ 1,2 milhão pela lei de incentivo (e está com as contas reprovadas). A empresa, a mesma Amazon Books, tem certidões negativas de débitos vencidas no INSS, FGTS e débitos federais. Entre 2010 e 2011, a empresa apresentou novo projeto com o maestro, Sinfonia Ambiental, para o qual captou R$ 904 mil. Também apresentou a produção da ópera O Guarany, com a Filarmônica de Berlim sendo regida por Medaglia, agora captando R$ 573 mil (mas esse projeto não foi realizado, segundo Medaglia).
Quando a empresa de Bellini completou 20 anos, organizou uma festa na boate The People, em São Paulo, para a qual convergiram muitos dos artistas dos quais produziu projetos. Não havia tema para o qual não conseguisse levantar recursos. Pelas sinopses dos projetos, parecia que o que menos importava era a defesa da atividade que iria desenvolver. Para o evento Um Tributo ao Marechal Rondon, captou cerca de R$ 800 mil.
Tem uma fragilidade desconcertante na ação do produtor. A série para caminhoneiros do grupo de Bellini impressiona. O projeto Boleia de Caminhão, da Master, pediu R$ 829 mil e foi descrito assim: “Um palco itinerante atuará como um agente cultural oferecendo 96 montagens teatrais e dissipando gratuitamente arte e alegria para caminhoneiros, um público que encontra dificuldade para usufruir de programações culturais”.
Já pela Pacatu, apresentou o projeto Arte para Caminhoneiros, descrito da seguinte forma: “Promover a disseminação das artes cênicas por meio da realização de 96 apresentações teatrais gratuitas para caminhoneiros, divulgando, dessa maneira, essa manifestação cultural e facilitando o acesso desse público itinerante, uma vez que a peça será encenada em uma tenda montada em postos de combustível de 8 cidades diferentes, movimentando a cultura pelo país”. As contas desse segundo projeto, que captou R$ 812 mil, foram bloqueadas.
De novo, pela Vision Midia, apresentou o Caminhos de Caminhoneiro: “Difundir a arte teatral por meio de uma peça gratuita e itinerante, destinada a motoristas de caminhões e carretas, que seguirá pelas estradas nacionais e será apresentada em uma tenda que permanecerá em postos de abastecimento de combustível, onde se encontram esses profissionais, facilitando, assim, seu acesso à cultura. O projeto circulará durante 4 meses, de maio a agosto de 2012, totalizando 96 apresentações”.
A falta de limites de Bellini chamou a atenção. Ao montar uma festança de casamento do filho, Felipe Amorim e Caroline Monteiro, no Jurerê Internacional, em Florianópolis, o glacê desandou. Chamou a atenção a ostentação (convidados bebiam champanhe no gargalo em vídeo divulgado pela PF). O cantor sertanejo Leo Rodriguez foi contratado por um cachê estimado em R$ 70 mil. A festa durou o fim de semana inteiro.
* Publicado em El Pájaro que Come Piedras