Rita chega para autografar exemplares na Livraria Cultura, em SP - foto Jotabê Medeiros

Perto de completar 69 anos, Rita Lee pode ser considerada uma pioneira profissional. Desde se consolidar como jovem inventora tropicalista, rara mulher brasileira compositora a partir do rock nos anos 1960 e 1970 e reivindicadora de liberdades femininas por intermédio da composição pop, a artista paulistana vem transgredindo normas e tabus de maneira peculiar, frequentemente entre trancos e barrancos.

Rita Lee – Uma Autobiografia (Globo Livros, 294 págs., R$ 44,90) insere-se também em algumas modalidades de pioneirismo e transgressão, não apenas pela constatação de que em 2016 ainda não é propriamente moeda corrente uma mulher, digamos, famosa contar sua própria história em livro. Há mais pioneirismo no modo como Rita o faz, ao encarar com desassombro as partes menos glamourosas de si. Assim como relata as próprias glórias, ela conta também do mal de Parkinson medicamentoso que a afastou dos palcos em tempos recentes, da bipolaridade, das overdoses, do alcoolismo, da mastectomia, do TOC, das hemorróidas, da depressão, das horas de sofrer com despedidas. 

Logo nas primeiras páginas do livro, afronta o tabu (misógino) em torno do estupro e choca ao narrar violência sexual sofrida na infância, com uma chave de fenda. A leveza, as piadas consigo própria, a narrativa desmiolada, os lapsos de memória, os apelidos divertidos destinados a desafetos (certamente inventados para despistar processos e embargos judiciais) e toda a pantomima circense-carnavalesca com que Rita há muito nos acostumou revela-se pura estratégia para que engulamos a seco (ou com açúcar de confeiteira) o incômodo e o terror por trás do glamour, da fama e da fortuna. A parte mais misógina de nós presta atenção na perfumaria enquanto engole (ou não engole) os sapos do horror da vida real. 

Proprietária da própria história, a autora impõe leituras e interpretações particulares sobre os conflitos nos Mutantes, sobre os “vilões” e “mocinhos” que lhe cruzaram a formidável trajetória, sobre o marido Roberto de Carvalho, sobre a relação de gato e rato com os diversos pilares da indústria cultural (e/ou de entretenimento), sobre sucessos e insucessos. E quem quiser que conte outra versão, outras versões, à medida que o império judicial do estado de exceção 2016 permita.

Rita chega para autografar exemplares na Livraria Cultura, em SP - foto Jotabê Medeiros
Rita chega para autografar exemplares em São Paulo – foto Jotabê Medeiros

Reclusa em tempos recentes, a sempre mutante complementa a obra em movimento de si mesma ao se assumir 100% grisalha na contracapa da autobiografia e na aparição para autografar livros para uma multidão de fãs numa livraria em São Paulo. O rock, outrora tão jovem, também padece as agruras e doçuras do envelhecimento. Um de nossos maiores ícones femininos de juventude e rebeldia hoje é uma senhora grisalha, senhora dona da própria história: quantas delas já se assumiram com tanta nitidez, antes de Rita Lee?

 

(Este texto é uma versão expandida de resenha publicada originalmente na revista CartaCapital, edição 929, de 30 de novembro de 2016. Leia na edição em banca reportagens de FAROFAFÁ sobre a resistência do Iphan sob Michel Temer, o hip-hop brasileiro em tempos de golpe e o leilão de obras de arte da massa falida do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, entre outros temas.)

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2 COMENTÁRIOS

  1. Na última frase do último parágrafo , pergunta-se ” … quantas delas já se assumiram com tanta nitidez, antes de Rita Lee ” ? . Mas pelo pouco q sei da “MPB” até a época dela só houve a Cely Campelo , q saiu de cena rápido . A Rita foi a primeira mulher , pioneira no rock brasileiro , comparável à Ney Matogrosso também nu pioneirismo.

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