Quase cinquentão, o Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão segue como a maior referência para a profissionalização na música clássica
A voz do locutor ecoa dentro do imponente auditório como se narrasse um gol em final de campeonato: “O mais importante festival de música clássica da América Latina!”. Velhos casacos de arminho e echarpes mondrianianas dão ainda um último gole em suas xícaras de chocolate quente e vão se acomodando nas 814 poltronas do anfiteatro, encravado no meio do parque de 35 mil metros quadrados em uma réstia de mata atlântica.
Menos de 10 graus celsius lá fora, mas dentro do auditório já lotado a Orquestra Jazz Sinfônica esquenta a noite com Dominguinhos e Gilberto Gil, uma absurdamente linda versão de “Lamento Sertanejo”, num pendant mágico com “Estrepolia Elétrica”, de Moraes Moreira e Luiz Galvão. A ambição europeia de Campos do Jordão se enche de doce bárbara alegria. O maestro, Fábio Prado, dança e rege como se tivesse uma sombrinha de frevo nas mãos, um show à parte – na última apresentação do conjunto no Brasil antes de um concerto internacional, 24 de agosto em Londres, na série BBC Proms.
Duas horas antes, a 9 quilômetros dali, no centrinho de Campos, o agitado Capivari, o artista de rua uruguaio Daniel Pratto fazia retratos realistas e caricaturas dos turistas por R$ 15, nos fundos da Concha Acústica da qual se ouvia um vigoroso ataque de sopros provindo da apresentação da Banda Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo, um som de andina familiaridade – tratava-se da “Suíte nº 2” de Alfred Reed, regida por Mônica Giardini. Aberto ao público e ao ar livre, o concerto mesclava desde experts até os ouvintes eventuais, os que aplaudem entre um movimento e outro.
“Eu vi aqui, nos anos 1980, o grande Salvatore Accardo, maestro e violinista italiano”, disse Pratto, que vive há 25 anos em Campos do Jordão. “Eu vi Kathleen Battle cantar, e também The Swingle Singers. Ouvi orquestras tocando Ginastera. O festival não está conseguindo mais atrair grandes nomes”, analisou o artista de rua. “Veja você: Jonas Kauffman (tenor alemão) veio ao Brasil, mas foi para Foz do Iguaçu, Trancoso. Eu também escolheria Trancoso, se fosse ele. Mas não sei porque Campos do Jordão não conseguiu trazê-lo.”
O exigente artista de rua, ainda assim, segue apreciando o quase cinquentão Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, apesar de parecer alheio a ele ali nos fundos. “Se não houvesse o festival, cairia a hospedagem, o turismo e a arrecadação da cidade de um modo geral. O festival movimenta, traz as famílias dos músicos, os admiradores. Tem um acervo histórico importante. E há os jovens. Os jovens sempre têm mais afeto pelo material que utilizam. Acho os concertos deles melhores que os dos profissionais. Como os bolsistas não são gravados ainda, trazem mais surpresa”, afirma.
Essa dupla característica, de impulsionar a juventude clássica e brindar o público com bons concertos, mantém Campos do Jordão como uma espécie de enclave clássico no cenário nacional, ajudando principalmente a projetar e dar visibilidade a jovens músicos em início de carreira. São 217 bolsistas, todos numa espécie de ponte rodoviária entre Campos e São Paulo (este ano, pela primeira vez, toda a parte pedagógica do evento ficou na capital paulista). O violoncelista Matheus Mello, 20 anos, é um deles. Em sua terceira participação no festival, experimenta um momento de visibilidade ímpar: nessa edição, tocou com o prestigioso Quatuor Diotima, da França; ganhou uma bolsa para passar um mês na Royal Academy, em Londres; e passou num concurso para estudar na Haute École de Musique (HEM) de Genebra, na Suíça, a partir de setembro.
“É incrível a experiência de tocar com outros músicos, daqui e de outros países, e conhecer maestros brasileiros e estrangeiros”, diz o jovem violoncelista. “Na semana passada, tocamos aqui em Campos do Jordão no sábado à noite e no domingo de manhã já tínhamos um concerto em São Paulo. A agenda puxada ensina à gente como é a vida de um músico profissional”, comenta Mello.
A cidade de Campos do Jordão, com seus restaurantes, lojas e boutiques de nomes alpinos (La Coupole, Charpentier, Frontenac, Le Foyer, etc), às vezes parece viver um sentimento dúbio em relação a essa sua “vocação” clássica. Desde 2013, a Fundação Osesp criou um selo para distinguir os estabelecimentos comerciais da cidade que apoiam o festival – até agora, conta com 93 parceiros. Pela variedade de lounges, showrooms e projetos comerciais na região, é um número modesto.
Nessa temporada, segundo o diretor artístico da mostra, Arthur Nestrovski, o festival bateu “todos os recordes de público, todos os concertos cheios, absolutamente lotados, sem lugar, com as pessoas esperando nas portas”, conforme declarou na apresentação da Orquestra de Música Antiga do Festival, na Sala São Paulo, no último dia 24 de julho – o festival se encerrou no domingo, 31. Mas lamentou a deserção de alguns patrocinadores e ressaltou: “São tempos bicudos para todos nós.”
Tempos bicudos podem também ser os tempos de novas esperanças. Bolsista do 47º Festival de Campos do Jordão, o violinista Nathan Amaral, 21 anos, aguarda o primeiro sinal de aviso da sala de concertos lanchando com uma amiga no hall da Sala São Paulo. Nathan é um produto inusitado da música erudita: ele vem da favela da Mangueira, no Rio de Janeiro, e o início da sua trajetória foi no Centro Cultural Cartola na Mangueira. Como não era bom jogando bola, tirava um som num tecladinho velho, conforme contou. Alguém o ouviu tocando e viu que tinha talento. Convidou para aprender violino no centro cultural. “Eu estranhei, porque achava que violino era coisa para meninas. Para os vizinhos, homem era jogador de futebol”, lembra.
O violinista da Mangueira acaba de ganhar um disputado concurso para estudar em Viena, na Áustria, com uma das mais afamadas professoras de seu instrumento no mundo. Para tanto, ele precisava de duas coisas: levantar recursos e arrumar um instrumento de qualidade. Já conseguiu ambos: um spalla da orquestra vendeu-lhe em condições suaves e parceladamente um violino precioso (que jamais conseguiria no mercado), e alguns patrocinadores ouviram sua história, contada em um programa de TV, e arrumaram o dinheiro necessário para sua viagem.
A longevidade do festival coloca muitas vezes aquele que era bolsista na outra ponta da batuta. É o caso da regente Mônica Giardini, que chegou a Campos do Jordão em 1982 como bolsista e hoje é a maestrina à frente dos 45 músicos da Banda Jovem Sinfônica do Estado de São Paulo. A banda sinfônica, porta de entrada para o métier, é sua paixão: chegou a defender o mestrado na Universidade de São Paulo sobre o tema, quando descobriu que apenas 8% dos músicos desses agrupamentos não seguia carreira profissional. Mônica rege muito na rua, mas, embora saiba que a preferência da elite está no conforto da sala de concerto e do vinho e chocolate quente do lobby, não distingue plateias.
“No fundo, no fundo, todo público é igual. Eu apenas escolho, para os concertos ao ar livre, um repertório mais leve, para não cansar demais. Há público leigo aqui no Capivari, mas também há público leigo na Sala São Paulo. E também há muitos músicos na plateia, os próprios participantes que vêm ver o concerto. É preciso entrega sempre”, ela analisa.
Público profissional? Parece insólito, mas é justamente o caso do físico Alexandre Bracco, 61 anos, que assiste ao espetáculo da Banda Sinfônica com duas cadelinhas no colo: Tequila e Caribe (ele ainda tem três calopsitas cujos nomes são Natcho, Margarita e Juanita). Ele é violoncelista de orquestra em Santo Amaro, em São Paulo. Filho da cantora Elisa Bracco, por sua vez aluna de Camargo Guarnieri, Alexandre diz que lhe inocularam a paixão pela música ainda muito garoto, e ele a exercita amplamente. “Todas as possibilidades da música como terapia eu realizo”, diz Alexandre, que toca em hospitais e instituições como voluntário.
Na praça, o também pintor de rua Ivan da Silva, há 6 meses vendendo quadros no Capivari, está descrente na capacidade de a “Rapsódia Latina”, de Cyro Pereira, convencer o turista a abrir a mão mais generosamente na noite gelada. “Se fosse sertanejo, rap, rock… Põe aqui nessa praça para ver se não arrebenta de gente isso aqui!”, ele sentencia.
Rap, rock e sertanejo não vai rolar, mas o primeiro Grupo de Música Antiga do festival lotou a Sala São Paulo com sua ressonância de repertórios barrocos. Não foi ainda uma apresentação com os instrumentos antigos característicos (alaúdes, cervelatos, cormones, sacabuxas), mas já atraiu um considerável público. “Foi como dar uma balinha na boca, uma seduzida”, declarou o maestro e violinista Luís Otávio Santos (há 25 anos diretor artístico do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora, Minas Gerais). Ele achou por bem começar “suavemente”, com instrumentos contemporâneos, e fez um crossover interessante, aplaudido de pé. “Ano que vem, teremos cursos só com instrumentos barrocos”, planeja, entusiasmado.
A ideia de uma mostra parada no tempo não pode ser mais equivocada sobre Campos do Jordão. A palavra inverno do seu título tinha ficado imprecisa nos últimos anos (as baixas temperaturas sumiram da Serra da Mantiqueira), mas a ousadia musical dá as caras em todo lugar, a todo momento. “Todo mundo sabe como soa a 5ª de Beethoven. Uma peça nossa ninguém sabe como vai soar”, diz o maestro Fábio Prado, regente da Jazz Sinfônica. “Muitas vezes, a gente ensaia uma peça na quinta para tocar no domingo. É sempre inesperado”, diz ao público.
A Orquestra Jazz Sinfônica, que fechou o festival na noite de sábado, 30 de julho, fez a première de uma série dessas “ousadias” (Tom Jobim, Egberto Gismonti, Gardel, Piazzolla, Roberto Menescal e Chico Buarque) em uma de suas últimas apresentações antes de rumar para o concerto na BBC Proms, em Londres. Ela se juntará na Europa à nave-mãe desse sistema erudito paulista: a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). A Osesp, além da BBC Proms, tocará no dia 22 de agosto em Edinburgo, na Escócia; e em Lucerna, no dia 26 de agosto, sob regência de Marin Alsop.