NO DOMINGO, CERCA DE 300 GRAFITEIROS FORAM À ZONA LESTE PARA PINTAR UM MURO DE UM QUILÔMETRO DE EXTENSÃO. O COLORIDO ULTRAPASSOU OS LIMITES DO MURO

Azul que é pura memória de algum lugar.

Em maio, dona Joana de Oliveira Pereira contou 56 anos morando na Rua Cisper, em Ermelino Matarazzo (Zona Leste de São Paulo), nos fundos da grande fábrica de vidro. Ela lembra que o muro dos fundos da fábrica, de cerca de um quilômetro de extensão, era mais baixo, o céu era mais azul, o trem demorava mais – mas isso não importava: ela, o pai, o irmão e as irmãs não precisavam ir ao centro, trabalhavam ali mesmo. Foi assim que construiu sua casa, conta. O marido trabalhou 30 anos fabricando vidro.

Daí aconteceu de o muro da Rua Cisper virar um depósito informal de lixo. As pessoas das imediações iam depositando primeiro sacolas, móveis velhos, restos de comida, dejetos. O lixão circunstancial, numa cidade feita de improvisações, finalmente acaba se tornando definitivo: vieram enfim os caminhões. O lixo formava pilhas ao longo da calçada do muro serpenteante, as pilhas debruçavam-se sobre o asfalto. A companhia de limpeza chegava a tirar 40 toneladas por semana. “Matei um rato desse tamanho”, diz dona Joana, fazendo a circunferência de uma bola de basquete imaginária com as mãos. Alguns moradores botavam fogo nos restos, o fogo calcinou o muro, empretejou. Desviando do lixo, uma moto atropelou e matou dona Severina, uma vizinha. “Depois que voltei do hospital Ermelino, onde ela estava internada, vi o sangue dela nos sacos de entulho”, conta dona Joana.

Ontem, domingo de manhã, Joana estava exultante: o muro tinha renascido. Estava sendo repintado por um mutirão de 300 grafiteiros (houve quem estimasse em mais, grafiteiros trazem muitos parceiros). Os nomes eram uma babel linguística: Aliens, Samara, Galeto, IML (sigla de Indigentes Muito Loucos), VS (iniciais de Vagabundagem à Solta), SV (Sindicato do Vandal), Demetrio Abomidarc, Biro Sergio. Gente com camiseta de todo tipo, desde o logotipo de sua empreitada artística até dizeres como “Orgulho de ser Heliópolis”.

Batista, Roberto Alves, de São Miguel Paulista, não estaria ali normalmente. “Sou diácono da minha igreja, no domingo temos atividades. Para poder sair, tenho que avisar com uma semana de antecedência”. Ele define seu estilo como algo ligeiramente parecido com um Romero Britto, mas diferencia: “Ele coloca mais detalhes no meio dos desenhos, o meu é mais limpo, mais claro”.

Entre as 10h e o meio dia, o muro, com marcações que dividiam territorialmente as áreas para o grafite, deixou suas cores neutras e tornou-se um arco-íris que parecia a rabiola de uma pipa gigante. Alguns grafiteiros usavam luvas brancas de algodão, como os policiais do poema de Auden.

Tinha barraca de algodão doce, barbeiro, cabeleireira para alisar e fazer trança na hora, espetinho, hip-hop, uma contadora de história que esperou muito até as crianças perderem a timidez. Tinha gente às dezenas na fila para pegar a tinta e deixar sua marca no muro. A convocação dos grafiteiros, feita pelas redes sociais, foi do Coletivo Cultural Cenário Urbano (com patrocínio do Consórcio Soma), liderado pelo grafiteiro Guga Gomes – dono da kombi mais folclórica dos territórios no interior do Anel Viário de São Paulo, toda grafitada, cheia de bonecos e intervenções e sem limpador de pára-brisas. Guga girava pela rua como um louco – organizava coletivas, gravava entrevistas e descia a rua com um carrinho de mão cheio de copinhos de água refrescando a moçada nas escadas – o muro tem bem uns 4 metros de altura. Guga conta que foi um adolescente problemático, refém de drogas e tretas. Foi salvo pelo tripé grafite-rima-jesus.

É a quinta ação desse tipo na cidade. Onde o grafite se instala, o lixo dificilmente volta, conta Sergio Pinto de Almeida, do Consórcio Soma. Ele diz que os próprios moradores se encarregam de manter as pinturas, que trazem diversos tipos de benefícios em seu bojo. Por exemplo: um morador da Vila Cisper veio dizer que tinha colocado sua casa à venda em uma imobiliária, mas mudara de ideia após ver a ação grafiteira. “Isso aqui vai virar um novo Beco do Batman, a região toda vai valorizar”, ponderou.

O otimismo futurista do rapaz é bacana, mas não é o futuro que interessa: no domingo pela manhã, além do azul da memória de Dona Joana, a Rua Cisper viu o resgate também de um sentimento de coletividade, de pertencimento, de orgulho respeitoso.


Na Avenida Dr. Assis Ribeiro, a gigantesca fábrica de vidro e suas montanhas de cacos brilhosos não parecem adivinhar a mutação que acontece lá nos fundos, só os seus ciprestes acompanham tudo sibilosamente. A fábrica de vidros da Rua Cisper (Companhia Industrial São Paulo e Rio Cisper) recebeu sua primeira encomenda em 1918, eram 100 garrafas para a cervejaria Brahma. Ela se instalou na Vila Cisper em meados anos 1940. Em homenagem à Brahma, cliente pioneiro, eu e o Pinduca tomamos uma Skol no bar nos fundos da fábrica de vidros.

PUBLICIDADE
AnteriorSobre o funk carioca e a cultura do estupro
PróximoThe wall
Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome