Me Ocupa Que Sou da Rua + Gran Coqueluche = outras cidadanias

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São 23h do sábado de carnaval. Uma multidão se concentra em frente às escadarias do Theatro Municipal, ao som de muita música brasileira e latino-americana, para o que muitos de nós só agora nos damos conta ser uma surpreendente novidade: autodefinido como o primeiro bloco da madrugada paulistana, o Me Ocupa Que Sou da Rua vai desfilar em horário “proibido”, depois que o poder público local já empreendeu todos os esforços para encerrar o barulho do dia.

Como foi possível driblar conflitos como os que têm acontecido entre moradores e foliões nos carnavais da Vila Madalena? “Com relação ao poder público, podemos dizer que nosso bloco, para além da nossa vontade, se encontra ilegal, fora da lei”, reconhece um dos organizadores do Me Ocupa, Cesar Paciornik. Ele explica:

“Não que assim quiséssemos, mas o regramento que a prefeitura estabeleceu para o convívio pacífico e harmônico dos blocos respeitou não entrar em conflito com outras leis, como a do Psiu. Como o intuito do nosso bloco é propor uma reflexão sobre o uso do espaço público, sem abrir mão do lúdico, nós trabalhamos para que a existência do bloco não gerasse tensões com o poder público e para que o poder público. O centro antigo, com seus prédios comercias vazios, eliminaria a questão do Psiu.”

Cantando e tocando umas poucas marchinhas num carro de som de baixa potência, o bloco é seguido por uma multidão num trajeto que inclui a praça Ramos de Azevedo, o viaduto do Chá, a praça do Patriarca, os calçadões nas proximidades da praça da Sé. Nos detalhes, foliãs e foliões mais atentos vão percebendo que há algo mais no ar além de diversão e farra.

Cesar explica a trajetória do grupo: “O bloco nasceu da vontade de ser uma brincadeira entre amigos que gostam de carnaval de rua e do sentido democrático que essa modalidade de uso da cidade permite. Grande parte dos amigos desse grupo fazem parte de um coletivo chamado Coletivo Arrua, que desde outubro de 2012 pensa a questão do direito à cidade, de um uso mais libertário, humanizado, democrático e horizontal pelos moradores. Temas como mobilidade, fim da violência policial e uso dos equipamentos públicos eram algumas das pautas”.

Durante o cortejo, o cantor no carrinho de som dá ênfase total à campanha contra o assédio às mulheres durante o carnaval, sintetizada pela sentença “não é não”. “Respeita as minas!”, ele repete incansavelmente, aqui e ali ampliando o desafio para, também, “respeita os manos!”.

Cesar define o festejo ativista como um diálogo com “a São Paulo que desejamos”: “uma cidade realmente democrática, de usos diversos e que rompa com os paradigmas e contradições que alimentaram a cidade entre os anos de 2008 e 2012 com uma aura de ‘cidade proibida’. O nome Me Ocupa Que Sou da Rua nasce do desejo que temos de que a cidade seja de fato ocupada, usada, vivida. Que as ruas não sejam somente espaço de deslocamento, mas também de permanência”.

O espetáculo coletivo produzido pelo bloco e pelos seguidores que souberam de sua existência tem algo de terapia de choque. Na madrugada do domingo, os prédios do centro histórico da cidade velha não emanam nenhuma luz, nem há cidadãos andando para lá e para cá fora dos domínios do cortejo. Ou melhor, há, sim, cidadãs e cidadãos que habitam o local e estão sendo acordad@s em suas camas pelo carnaval extra-Psiu. São os integrantes do bloco do povo das ruas, enfileirados nos calçadões sobretudo da praça do Patriarca, que vão despertando conforme o som do bloco se aproxima.

Cada nova solução cria outros problemas, e Cesar explica o comportamento do bloco em relação aos sem-teto: “Os moradores em situação de rua também receberam nosso olhar. Um grupo da organização saiu antes de o bloco se movimentar, observando se a nossa presença disputaria com os espaços que já estavam sendo ocupados por eles. O objetivo era não entrarmos em disputa ou desrespeitar a permanência de quem já estava ocupando o local”.

Há, segundo ele, alguma adesão por parte da população sem-teto: “Contamos também com a espontaneidade da ajuda e participação desses moradores. Para além de dançarem e se integrarem ao bloco como foliões, foram incorporados à organização que conta com cerca de 30 pessoas, para ajudar no trajeto, criando entre eles próprios, segundo nossa percepção, um sentido de pertencimento com a festa. Somos um bloco libertário, feminista e democrático e trabalhamos ao longo do trajeto conscientizando participantes a respeitarem esses valores de convívio”.

Cada tribo indígena com suas etnias, cada bloco carnavalesco com suas peculiaridades: há o exemplo do bloco nômade e sem nome que não quer crescer, nem ficar famoso, nem arrastar multidões que se tornem opressivas e opressoras para a coletividade. Neste ano ele se chama Gran Coqueluche, pode ser que volte ano que vem sob outra identidade. Esse acende a fornalha às 16h da segunda-feira de carnaval, também em frente ao Theatro Municipal, com seção sonora modesta e poucas dezenas de desfilantes vestidos de verde.

O núcleo duro é constituído por três integrantes que tomam as principais decisões, definem o tema e o figurino etc.: a tradutora Marcela Vieira, a estilista Valentina Soares e o artista plástico Wallace Masuko.

Marcela conta a história: “O bloco começou em 2014, como Lambuza Lambida, cujo tema era ‘Idade Média’. A partir desse momento percebemos que, para não nos popularizarmos, seria interessante mudar de nome, tema e cores a cada vez, na tentativa de continuarmos sendo um bloco pequeno e despojado de grandes orçamentos. Em 2015 fomos o Rufos y Bufos, com o tema ‘Arca de Noé’, e, neste ano, o Gran Coqueluche. Nossa proposta é a de sempre recomeçar, também com a linguagem da fantasia e dos recursos que utilizamos”.

Há, sempre, uma pegada política nos enredos do núcleo. “Os temas escolhidos nesses três anos estavam em pleno acordo com o cenário do momento”, diz Marcela. “Em 2014 foi a Idade Média, quando se colocavam em questão decisões políticas de ultradireita e conservadoras. Em 2015, a Arca de Noé, quando São Paulo passava por uma de suas maiores crises hídricas. Agora, o contágio e a infestação da coqueluche em um circo de bacilos, sem esquecer do alastramento de doenças como dengue e zika”

Marcela dá a senha que talvez tenha sido percebida desde os antigos carnavais cariocas, e com a qual a sempre figadal São Paulo historicamente não se relaciona bem: “‘É bom lembrar que, ainda que as críticas estejam implícitas, preferimos que elas não se tornem literais: a relação está aí para que as pessoas façam, ou não”. Eis o ovo de Colombo: sem frascos de vinagre para cá e bombas de gás lacrimogêneo para lá, a festa hedonista também pode ser revolucionária.

O tom crítico não deixa de permear tampouco o discurso de Marcela: “A ênfase do bloco é estar na rua, divertir-se aí. Tememos a institucionalização do carnaval, e essa ameaça sempre existe. Neste ano, por exemplo, a nova instrução é a do uso de cavaletes, por aluguel terceirizado, para o controle do tráfego pela CET. A nosso ver, deveriam ser o próprio CET e a Prefeitura os responsáveis pela disponibilização do material. Um outro exemplo é a da marca Amstel ‘patrocinando’ o carnaval. A presença de ambulantes vendedores de cerveja é proibida em blocos, com exceção dos representantes da marca”.

Ainda nesse diapasão, o diferencial da versão 2016 do Bloco-Que-Muda-de-Nome está na participação de uma bateria que desafia os conceitos daqueles que têm o carnaval como gororoba anestesiadora das consciências. “Neste ano, contamos com a presença da bateria da Coração Valente do Recomeço da Cracolândia, que corresponde a um projeto de assistência a ex-usuários de crack”, descreve Marcela.

A Blocolândia se soma à diversão caseira do bloco Gran Coqueluche
A bateria Coração  Valente do Recomeço da Cracolândia se soma à diversão artesanal do bloco Gran Coqueluche – foto PAS

“Chegamos à bateria por meio de um amigo, Dudu Quintanilha, que trabalha no Complexo Prates, um abrigo de assistência a um público carente: moradores de rua, dependentes químicos etc. O Dudu nos convidou a fazer uma oficina de fantasias com o grupo que ele acompanha, o Mexa, formado por transexuais que se encontram nessas situações. Pela necessidade de encontrarmos uma bateria, Dudu se disponibilizou a fazer o contato com a bateria Coração Valente, que, até onde eu sei, ensaia o ano inteiro e tem um bloco, o Blocolândia“, conta Marcela.

Espontaneamente, Me Ocupa Que Sou da Rua e Gran Coqueluche representam faces distintas de uma mesma moeda, que talvez pudesse se chamar cidadania. O primeiro bloco leva vida passageira para o abandono noturno do centro da cidade “proibida”. O segundo traz para a luz a parte dessa mesma cidade que a sociedade se esforça por relegar à escuridão, ao anonimato e à marginalidade.

Do mainstream de Daniela Mercury à folia esquerdista do Bloco Soviético, o carnaval é d@s marginalizad@s apenas para que digam, ou melhor, digamos quem somos: gente como qualquer outra gente, com direito a dignidade, a voz, a cidadania, à luz do dia.

Invenção brasileira da maneira como o conhecemos e reconhecemos, o carnaval disse alto em 2016 que também pode ser – e é – paulistano e paulista, sim, senhora. Enquanto os desfiles das escolas de samba passavam engessados pela tela da TV, a revolução cidadã não precisava de tiro, faca ou bomba para evoluir e avisar que está diariamente nas ruas, 365 dias por ano, em São Paulo e em qualquer cidade, roça e tribo do Brasil.

 

(Reportagem completa em Outros carnavais)

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