“Sabíamos que não seria a toda hora que teríamos chances como essa, então atacamos a música de David Bowie como um exército a invadir o território inimigo.” A frase é do alquimista black-jazz-funk-disco-pop Nile Rodgers, 63 anos, na autobiografia Le Freak, escrita por ele há meia década e publicada neste ano no Brasil. “Era um cerco”, ele prossegue. “Depois de anos sendo impedidos de entrar pela porta da frente do rock’n’roll, nossa artilharia estava pronta para derrubar as paredes. Os músicos da seção rítmica, que eram todos negros e latinos, tocavam como se fossem animais fora da jaula, finalmente livres para levar o pop a níveis mais altos.”

Contextualizando. Nile é ideólogo e fundador da banda sem rosto Chic, com a qual encetou pequenas (e várias vezes grandes) maravilhas discothèque, como “Everybody Dance” (1977), “Le Freak”, “I Want Your Love” (1978) e “Good Times” (1979). Passada a disco fever, continuou a atividade de alquimista, agora no papel de produtor, inclusive em 1983, quando ajudou Bowie a multiplicar sua fortuna com os megahits (oh, palavra cafona) “Let’s Dance”, “Modern Love” e “China Girl”.

A frase sobre a invasão de um território inimigo (aquele supostamente reservado aos caucasianos no planeta Terra) sucede a constatação de Nile de que as fórmulas e regras que ele pôde empregar na gravação de “Let’s Dance” “se aplicavam apenas a roqueiros brancos e talvez Miles DavisPrince ou Michael Jackson“.

“Agora eu tinha liberdade para me aventurar além do pop, pelo território do jazz”, escreve. “Podia permitir que os músicos improvisassem – e numa música pop! Era o paraíso. Eu já havia tocado em bandas assim, bandas que cruzavam as fronteiras comuns do rhythm & blues e do pop, mas nunca conseguimos fechar um contrato com uma gravadora, que sempre mudava de ideia quando constatava que éramos negros. Com Bowie, eu finalmente poderia fazer o que muitos artistas brancos do rock podem fazer e nem percebem: música boa, sem me preocupar com categorias.”

Aqui no Brasil, nos acostumamos a falar da pérfida estrutura casa grande & senzala como característica típica nossa, de pretensos subdesenvolvidos – como se estadunidenses, ingleses e outros europeus não fossem coinventores da divisão do mundo em lugares para brancos e lugares para negros (ou não-brancos).

Davi Moraes à frente da "cozinha" do show "Noites do Norte" (2001), de Caetano Veloso
Davi Moraes à frente da “cozinha” negra do show “Noites do Norte” (2001), de Caetano Veloso

Aqui, nos habituamos a ver shows de Caetano Veloso dividindo o palco entre sala (para músicos não-negros) e cozinha (para negros), como se isso fosse natural – mas também como se gringos como Bowie, Mick Jagger, Bob Dylan, Deborah HarryPaul SimonCyndi Lauper, Duran Duran ou The B-52’s não fizessem coisa análoga em seus trabalhos com Nile Rodgers.

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O maestro Jaques Morelenbaum e Caetano (deitado) aplaudem a “cozinha” no show anti-escravidão do cantor

Embora extremamente sutil em seu texto elegante, o ex-líder da Chic (em dupla com Bernard Edwards, já morto) retira do armário esse baú de mágoas, ao descrever a relação com Bowie ou, logo a seguir, com Madonna, cujos, vá lá, megahits fundadores “Like a Virgin”, “Material Girl”, “Dress You Up” e “Over and Over” ele também produziu, em 1984.

Aos madonnamaníacos, Nile conta detalhes da relação de amizade que mantiveram naquele início (dela). Aos demais, deixa entrever mais uma guerra entre exércitos inimigos no encontro-colisão entre a loirinha e o negão.

“‘Ei, que lugar legal’, disse ela, Nile descreve uma das primeiras visitas que Madonna lhe fez durante a negociação para o que viria a ser o álbum Like a Virgin. “Meu apartamento era um misto de apartamento de solteiro e boate, com peças de decoração art déco e antiguidades japonesas, uma jukebox antiga e uma cegonha de néon multicolorida (inspirada na Neon Stork, uma famosa boate).”

Então ele narra a retribuição da visita: “Na primeira vez que fui ao apartamento de Madonna, no SoHo, fiquei um pouco surpreso com a modéstia. Claro que tudo isso é engraçado hoje em dia, porque ela é muitíssimo mais rica do que eu, mas, na época, na verdade, fiquei com pena dela. Ela estava prestes a receber um disco de platina, mas nada ali permitiria supor isso (…) Ela não tinha sequer um sofá decente para as visitas sentarem. A única mobília que me lembro de ter visto foi um colchão no chão, que me fez lembrar d(…)o lugar onde fiquei quando adolescente. (…) Alguns dias depois, pedi para meu faz-tudo levar um sofá de couro do meu escritório de Connecticut para ela.  Mais tarde, ele comentou comigo que não acreditava que Madonna vivia num lugar menos arrumado que sua casa nos subúrbios.”

Evidentemente, não se trata aqui de opor loas vitimistas entre mulheres versus negros ou entre negros versus gays. Nile Rodgers era milionário por conta do Chic e ficou multimilionário por conta de Bowie, Madonna, trilhas sonoras de videogame etc. Mas evidentemente nesse trecho ele quer dizer, de maneira elegante-enviesada, que seu know-how de alquimista negro foi instrumentalizado para erigir a fortuna incomensurável da ambição loura de Madonna, Bowie e um verdadeiro quem-é-quem da música branca mundial.

De alguma maneira a riqueza criativa saltou, por que não explicitar?, de contas bancárias negras para contas bancárias brancas, num processo em nada diferente daquele que historicamente tem acontecido da senzala à casa grande, do “Terceiro” Mundo ao “Primeiro” Mundo, dos países que (não) têm pré-sal para os países que (não) têm petróleo, das lajes de periferia às sacadas gourmet.

A imagem cravada por Nile para descrever seu trabalho para Bowie, “um exército a invadir o território inimigo“, é forte, contundente, embaraçosa. Remete a servidão e a escravização, valores tão “jovens” na linha do tempo humano como os anos de vida de duas pessoas. No Brasil de 1888, há ridículos 127 anos, a escravização de um dos exércitos pelo outro ainda era oficial.

As fábulas reproduzidas acima pertencem aos universos ostentatórios de obamas, ladies gaga e rainhas elizabeth. Mas não custaria  a nós, brasileiras e brasileiros, refletir 15 minutos warholianos sobre o efeito seca-pimenteira em terras brasileiras. Aqui, tal e qual nas terras do norte, talentos não-negros também drenam inventividade, inspiração e poder de cristalinas fontes não-brancas.

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Paula Lavigne, Criolo, Daniel Ganjaman + Seu Jorge, Regina Casé, Zeca Pagodinho
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Caetano Veloso + Emicida

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Alegria!, alegria!: Wilson Simonal cinco minutos antes da derrocada

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