Um rapaz caminha pelo asfalto do chamado Baixo Augusta, vestido apenas de sunga e revestido por uma fantasia que simula um chuveiro com box-cortina.
Uma criatura das florestas, rosa-choque, desfila num unicórnio-de-troia e espalha poeira azul celeste pelo matagal.
Uma imensa fila-de-paulista se arrasta que nem cobra pelo chão para entrar no paraíso semi-artificial e extra-oficial que já chamamos de Parque Augusta. Outra fila-de-paulista, consideravelmente menor, se arrasta no sentido oposto, para sair do parque que ainda não existe, mas já existe. O parque existe, em tons de verde-natureza, rosa-choque, azul-cintilante e cinza-concreto. E está cheio, lotado, abarrotado de gente neste domingo.
Trata-se de uma festa de aniversário: 461 anos da cidade de São Paulo, essa senhora sadomasoquista passivo-agressiva que na mesma manhã o diário decadente Folha de São Paulo decretou estar na UTI (por decerto alvejada de tiros, facadas e golpes de tacape por políticos não-tucanos, de acordo com o jornal velhote).
Não é só uma festa – são muitas, todas promovidas por ninguém (na medida em que você, eu e todo mundo possamos ser chamados de “ninguém”).
Paulistas e visitas estão exultantes, algo atrapalhados. Ainda não sabem se divertir direito – mas querem, e como querem.
(Dinâmica de paulista – o primeiro paulista forma fila – o segundo paulista se acha ~vip~ e fura a fila – a terceira paulista estressa com o segundo paulista que furou a fila formada pelo primeiro paulista – de braços dados, os três vão ao show do Criolo na praça Roosevelt para gritar que não existe amor em SP.)
Vestem-se de índios. Cospem para cima. Fazem a dança da chuva onde há seca transitória (enquanto as antenas de TV encenam a dança da seca onde não para de chover). Deixam barbas e sovacos crescerem.
Reclamam.
Reclamam (“tem muito bicho-grilo!”, reclama um bicho-grilo).
Reclamam (“só tem veado aqui!”, reclama outro, esquecido de que o parque nada mais é que uma amostra pequenina do mundo todo – ou confundindo unicórnio com veado – ou confundindo floresta com boate – ou chuva com seca).
Reclaaaaaaamaaaaaaaam.
Mas se pra fazer sucesso, pra vender disco de protesto, todo paulista tem que reclamar, eu também vou reclamar. Há música no aniversário de nenhum ano no inacreditável e verdíssimo parque que se escondia entre fumaças no coração da 461tona.
É o bloco pré-carnavalesco Tarado ni Você, que só toca e canta músicas de Caetano Veloso, o papai-tropicália – um bloco só e 100% caetenizado parece pesadelo, mas é só a realidade ~hipster~.
Nas redes sociais, integrantes da classe musical paulista (e/ou brasileira, braZileira) aproveitam o aniversário da cidade que os pariu para reclamar, reclamar, reclamar – “político é tudo ladrão”, grita um, berram dois, cala-se zangadíssima toda uma multidão de artistas-de-escritório.
DJ Marky e Eduardo BiD são dois que andam arretados com a igualdade ladrona dos políticos – talvez irritados porque o movimento artístico-músico-culturo-político incontrolável que toma o Parque Augusta, o Minhocão, a praça Roosevelt, o largo da Batata, o chão sujo-sagrado da Biblioteca Mário de Andrade prescinde de oráculos musicais, de líderes estéticos, de puxadores de som e de manada. Apenas com um bloco cover de (perdoai-os, pai) Caetano abrindo os braços sobre nós, a moçada paulista desacostumada de sacudir os quadris já faz um verão.
Pode ser o Movimento Sem Teto, o Fora do Eixo (alô, Rodrigo Savazoni!), o Movimento Passe Livre, a Zona Autônoma/Área de Proteção Ambiental autodeclarada do Parque Augusta, as Mães de Maio, a Marcha das Vadias, as Bichas Desunidas da Reclamolândia, o Food Truque, o Bloco Fúnebre dos Jornalistas-Ainda-Mais-Arrogantes-Que-os-Patrões – você pode odiar este ou aquele movimento coletivo – mas em 2015 o coletivo dos coletivos que derrama a(s) cidade(s) produz um contínuo que prescinde da sua (minha) opinião – como o movimento cultural prescinde dos artistas oraculares – e o papel surrado prescinde da lengalenga diária de reclamação dos donos de mídia, dos jornalistas, dos-técnicos-de-qualquer-futebol, de mim e de você.
(Os unicórnios somos nozes: foto de Zeca Gerace, do Estúdio Xingu, que formulou a intervenção e o lema #SonhaSP)
A floresta encantada de sacis, corujas, pirilampos & unicórnios rosa-choque pode se chamar São Paulo, se assim você o quiser – e parece que você (eu) (nós) quer(emos). A gente vai continuar reclamando – reclamando – reclamando, porque os ventos de mudança fazem mesmo os mais modernos marinheiros mareados vomitarem aliens reacionários (reacionarismo, resistência, reação às mudanças, queixume, chorume). Mas esta cidade já não é a mesma, e só Carolina não viu – se é que ela não viu.
Entre “A Banda” paroquial de Chico Veloso e a “Carolina” depressiva de Caetano Buarque, os Unidos da Eterna Caetanidade preferem o forró “Esperando na Janela” de Targino Gondim, que passa por cima de Gilberto Gil, atravessa o ex-secretário municipal de Cultura Juca Ferreira e diz vem-quente-que-eu-tô-fervendo aos unicórnios rosa-choque de 25 de janeiro de 2015.
https://www.youtube.com/watch?v=uw98Fvusp7Q&app=desktop
Pelo jeito o Parque Augusta está na mesma berlinda em que se encontra o Parque dos Búfalos, infelizmente a cidade não preserva as suas áreas verdes.