Aos 71 anos, Gilberto Gil aprofunda a jornada rumo às próprias origens, em sequência aos mergulhos anteriores nas obras lapidares de Luiz Gonzaga (em 2001) e Bob Marley (em 2002). O homenageado da vez é o conterrâneo baiano João Gilberto, num disco de composições de autorias variadas batizado Gilbertos Samba.
Desde antes de se ter tornado ministro da Cultura, o ponta-de-lança tropicalista anunciava que faria um disco de sambas. E o fato de este, quando concretizado, ser um álbum feito predominantemente de canções que João interpretou define o recorte ideológico a que Gil submete o gênero musical tido como predominantemente brasileiro. Samba, para Gilberto(s), é o que vem ao mundo filtrado e nutrido pela bossa nova.
Se é para falar de origens, parece haver raízes profundas na distância conceitual que Gil manteve e mantém dos modos sambistas de Cartola ou Nelson Cavaquinho ou Clementina de Jesus ou Paulinho da Viola ou Martinho da Vila ou Alcione ou Leci Brandão – a não ser que passem, antes pelo filtro baiano-carioca do triunvirato João-Tom Jobim–Vinicius de Moraes.
A peleja remonta, no mínimo, à época do AI-5 e do exílio que quebrou a tropicália em dois (se não muitos) pedaços, entre 1968 e 1969 e além. Expulso do Brasil pelo comando da ditadura civil-militar, em importante medida devido à rebelião comportamental que protagonizava, Gil ainda não se acostumara a domar a própria rebeldia em 1970, quando publicou no tabloide O Pasquim um artigo chamado “Recuso + aceito = receito” (leia a íntegra aqui).
Ali, ele se rebelava contra um prêmio Golfinho de Ouro que o Museu da Imagem e do Som (MIS) queria lhe pregar, em suposta honra ao samba “Aquele Abraço” (1969), o canto de cisne pré-exílio do Gil tropicalista. “Que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que ‘Aquele Abraço’ não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar'”, escreveu n’O Pasquim, num dos mais explícitos libelos antirracistas que jamais publicizou. “Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil.”
Num artigo que criticava o museu (da imagem, do som e outros) por comer no mesmo prato do nazifascismo, Gil definia o corte: o samba dele não era o samba do “bom crioulo” que integrou (integra?) como cordeiro de sacrifício o “contrato” de humilhação histórica a que o Brasil e o BraZil submeteram (submetem?) seus afrobrasileiros. Incorporar o samba sem o filtro de João significaria para Gil, provavelmente, uma capitulação. E ele resiste bravamente, até hoje, mesmo sob o ônus de algumas contradições.
Gilbertos Samba é um apanhado inequívoco de sambas, até mesmo de fibra mais tradicional, como os compostos por Zé da Zilda e Marino Pinto (“Aos Pés da Cruz”), Dorival Caymmi (“Milagre”, “Doralice”), Jaime Silva e Neuza Teixeira (“O Pato”), Janet de Almeida (“Eu Sambo Mesmo”), Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques (“Tim Tim por Tim Tim”)… O norte, no entanto, é a mistura de classes sociais germinada do encontro de João, baiano sertanejo de Juazeiro, com os moços cariocas de praia Tom, Vinicius, Carlos Lyra, Newton Mendonça – presentes no CD nas bossas novas “Desafinado” e “Você e Eu”, mas também na decupagem feita a partir das leituras de João para os sambas mais tradicionais.
Duas contradições, pelo menos, moram nessa gaveta. Em primeiro lugar, o libelo antirracista de Gil deságua num grau de submissão à viseira elitista e branca dos garotos de Ipanema que jazzificaram o samba (e/ou sambificaram o jazz) num vetor oposto ao de Johnny Alf ou Baden Powell.
Em segundo lugar, se é que o Gil de 2014 ainda conserva em si aquele Gil do texto 1970, de lá para cá o museu (nazifascista?) entronizou, sacralizou e santificou também a bossa nova. Passados tantos anos, talvez Cartola e Jobim sejam bem menos dessemelhantes do que já foram, ao menos no quesito do pertencimento à tradição e à conservação.
O que vai acima são meros comentários – não há que botar reparo às escolhas de Gil ou ao fato de ele conceber um trabalho francamente conservador aos 71 anos de idade. Se a origem das coisas como elas são é o racismo de que ELE foi vítima (e não você ou eu) e das marcas que ficaram NELE (e não em nós), quem sabe dele é ele e a nós nos resta ouvir.
Quanto às contradições, Gil é igual a qualquer das personalidades que mudam a história de seus tempos e deixam marcas indeléveis, transformadoras, nas coletividades que representam. Gil é daquelas figuras que só fazem crescer com o tempo, a ponto de representar muitos valores simultâneos, alguns deles até contraditórios com os outros.
Não é por outra razão que, por exemplo, o mesmo homem protagoniza desejos censores constrangedores como os que vieram à tona no caso Procure Saber, quase ao mesmo tempo em que volta à vanguarda do planeta ao se tornar a voz artística mais loquaz (senão solitária) na defesa do Marco Civil (brasileiro) da Internet.
Gil é ao mesmo tempo Lula, FHC e Dilma, Luiz Gonzaga, João Gilberto e Rita Lee, Zumbi dos Palmares , Gilberto Freyre e Jorge Ben Jor, preto, branco e amarelo. E a gente não consegue jamais decifrar quem está vencendo cada bateria dessa incrível corrida de tantos gilbertos.
Oi Pedro, bacana o teu texto, mas senti falta em saber qual o tratamento instrumental que Gil deu aos sambas. Será que rola?
Abraço, hombre.
É isso ai,a humilhação do racismo,quem sofreu foi ele,não eu ou você.