A pedido de um canal de TV, assisti ao novo filme dos irmãos Coen, Inside Llewyn Davis – Balada de Um Homem Comum. Achei um dos melhores pequenos filmes que vi sobre música em muito tempo. Uma pequena maravilha, um cult movie como há muito eu não via.

O ponto de partida é muito simples: representado em um gráfico, o mundo da música seria tipo um iceberg em cuja ponta estão aqueles ídolos que conhecemos, os que alcançaram sucesso. Na gigantesca parte submersa estão aqueles que não conseguiram superar os obstáculos e emergir. Os que estão na parte de baixo do iceberg são muitos mais e muitos deles mereceriam muito mais estar lá em cima, mas nunca estarão. Por falta de sorte, falta de oportunidade, falta de apelo midiático, falta de lobby, e até por escrúpulos, integridade demasiada. Llewyn Davis (Oscar Isaac) é um desses caras condenados à parte submersa do iceberg. É um cantor folk que tenta a sorte com todas as suas forças num tempo em que o folk é gênero dominante na música norte-americana. Algum lugar entre Woody Guthrie e Bob Dylan. Davis é um artista talentoso, incorruptível, consciencioso.

Essa sua obstinação vai fazer com que sua vida degringole cada dia um pouco mais – ele começa como homeless, dormindo em sofás alheios, e termina como homeless, mas saberemos que há um buraco ainda mais fundo nessa condição.O filme começa com Davis tocando no Gaslight Café, em 1961.Ele toca Hang me, Oh Hang me, e quando termina diz. “Essa vocês conhecem. Se nunca foi nova, e se nunca fica velha, então é uma canção folk”. Há alguns ruídos que me pareceram propositais no filme: Llewyn Davis não me parece um personagem de época, parece mal caracterizado. Está mais para os anos 1970 do que para os 1960.Os tempos parecem embaralhados às vezes.

No meio do filme, há um mini road movie. É quando Llewyn Davis vai a Chicago com dois caras que ele não conhece para tentar uma audição com o produtor mais afamado do pedaço.Os caras com quem ele viaja são Johnny Five (Garrett Hedlund) e Roland Turner (John Goodman). Ambos vivem num mundo de referências da beat generation e desprezam caras simplistas como Davis. Com crueldade, Turner destroça as ferramentas rudimentares de Davis, seu violão e seus parcos acordes. Fala da riqueza harmônica do jazz, e de como o parceiro de viagem é insignificante perto daquilo.Johnny Five (Garrett Hedlund) parece que ainda não tinha desembarcado de seu personagem em On the Road. Ele é lacônico, só murmura e fuma. O único momento do filme em que ele fala é para declamar um poema de Peter Orlovsky, beatnik menos proeminente.O poema é do livro Clean Asshole Poems and Smiling Vegetable Songs. Llewyn Davis acha aquilo tudo simplesmente ridículo – aqueles versos auto-indulgentes e aquela disposição de viver em algum lugar artificial criado pela sua comunhão com a arte (e pela percepção gerada pelos aditivos, como a heroína) pressupõem que a arte seria maior que a vida. Ele discorda, não se sente parte dessa patota. E ele ainda se sente sujo gravando um jingle para levantar uns trocados (Please, Mr. Kennedy, com a ajuda do personagem de Justin Timberlake). A sacanagem dos Irmãos Coen é que o jingle é delicioso, o que nos coloca numa sinuca de bico sobre o lance do comercialismo.

O tipo de músico que Davis é? Aquele tipo que acredita que a sua sinceridade, sua honestidade, sua capacidade de emocionar são suficientes. Que merece um lugar de destaque no mundo da música (ou na arte) simplesmente porque o que ele faz é algo intacto, puro, algo cuja motivação está em sua própria existência, na energia do seu espírito. É por isso que ele desanca uma dona de casa e um soldado do Exército que têm a música como um diletantismo. Ele não suporta esse tipo de “distração”, a música para ele é uma missão. E ele julga merecer o reconhecimento enquanto está vivo, e bem, não um reconhecimento póstumo.Naquele ponto ali me lembrei de um poema do Roberto Piva.“Abandonem finalmente a veneração por meio dos jubileus centenários, a homenagem por meio das edições póstumas! Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!” (Relatório pra ninguém fingir que esqueceu). Ele não quer compreensão, ajuda: quer Justiça. Por isso fustiga os professores universitários que lhe dão abrigo e o alimentam.

Diz-se que o personagem de Llewyn Davis é livremente inspirado num cantor folk dos anos 1960, Dave Van Ronk, que não alcançou a fama mas que era muito bom. Isso não faz a menor diferença. Acho que só tinha visto algo parecido no cinema sobre música recente em Sweet and Lowdown, filme de Woody Allen com Sean Penn, de 1999, sobre a figura ficcional do guitarrista de jazz Emmet Ray (Penn), que idolatra Django Reinhardt. Mas ali era uma farsa escancarada, mais sobre situações do que uma reflexão filosófica e comportamental.Os Irmãos Coen propõem, e não fecham, ao menos uma dúzia de debates.

A produção musical é de T-Bone Burnett, que vi em 2007 no palco com sua banda. O velho é um luxo. Fez também a trilha celestial de blues e R&B de O Brother!, com o George Clooney.

No meio de tudo isso, há um gato. Ou dois gatos. Que são personagens fundamentais de toda a trama.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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