FAROFAFÁ é um site jornalístico sobre música brasileira, com alcance em todo o território nacional (e além). O texto que se segue, no entanto, pretende ser mais que musical – e falar sobre cultura de modo geral – e menos que nacional – e tratar de uma pequena grande aldeia brasileira, situada a sudeste do país e batizada São Paulo (a cidade, não o estado). Aguardo você no último parágrafo para tentarmos entender juntos os porquês desse (aparente) desvio de rota.
Estamos na Biblioteca Mário de Andrade, no centro da cidade, no dia 18 de dezembro de 2013. O ambiente circunspecto está provisoriamente transformado, transtornado, virado de cabeça para baixo. Postado de pé no saguão, ao lado de um DJ de música eletrônica, o diretor da instituição, Luiz Bagolin, lamenta a conversão da potencialmente cosmopolita Mário de Andrade numa “biblioteca de bairro no centro” e sonha com a abertura do edifício, em breve, durante as 24 horas do dia. O sonho, quase-promessa, tem tudo a ver com o que está acontecendo aqui, agora.
Uma projeção acima das cabeças dos homens ali enfileirados (entre eles o secretário municipal de cultura, Juca Ferreira, e o vereador petista Nabil Bonduki) explica que evento é esse, pelo qual circulam também, ao redor da imponente estátua feminina que alegoriza a Leitura, cidadãos que trabalham e vivem a noite paulistana, DJs, personagens da moda, jornalistas jovens, integrantes do coletivo Fora do Eixo e copos de caipirinha. “Seminário da Noite Paulistana“, reluzem os dizeres projetados em letras azuis, róseas e roxas. É o evento de lançamento do tal seminário, que só acontecerá no ano que vem.
Estou por acaso com o povo da noite nessa noite pós-pós-tudo da Mário de Andrade. Cheguei quando ainda era dia, sem saber do seminário da noite, para observar um outro acontecimento, digamos, mais diurno. No garboso auditório da biblioteca, gestores da prefeitura, produtores culturais, rappers e outros (poucos) artistas participam do lançamento de uma consulta pública para a constituição de um Conselho Municipal de Cultura de São Paulo. Ali, Juca Ferreira e Guilherme Varella expõem, em nome da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), o processo que se assemelha, em certa medida, à consulta para a elaboração de uma nova Lei do Direito Autoral, levada a cabo quando Juca era ministro da Cultura, na etapa final do governo Lula.
Daqui até 18 de fevereiro, um projeto de lei para a criação do conselho, elaborado pela SMC, estará à disposição em http://minuta.cultura.prefeitura.sp.gov.br, para que qualquer cidadã e cidadão acrescente sugestões de mudança, correção, aprimoramento etc. O projeto, sintonizado com propostas de ampliar a participação popular encampadas pelo prefeito Fernando Haddad, do PT, estabelece a arrojada meta de instituir um processo eleitoral para definir os 42 representantes, alocados por critérios de georreferenciação e dos diversos campos de atuação cultural. Eleitos, os representantes, recrutados majoritarimanete na sociedade civil, terão vez e voz na definição de rumos da SMC, na elaboração de um Plano Municipal de Cultura, na dotação orçamentária da cultura na cidade, e assim por diante.
Não há jornalistas da mídia tradicional presentes ao anúncio do Conselho Municipal de Cultura, como também não haverá, daqui a pouco, no lançamento do Seminário da Noite. Nem para a noite, nem para o dia: os jornalistas culturais de Globo, Folha, Band, Estado etc. estão em nalgum outro lugar nesta quarta-feira paulistana pré-natalina.
Luiz, o diretor da Mário de Andrade, faz com Juca a ponte centre os dois eventos. Coloca a biblioteca à disposição dos presentes para a realização de reuniões intermediárias antes do dia 18 de fevereiro, para que os grupos debatam o projeto, contribuam para ele no âmbito da consulta pública – e, futuramente, venham a escolher seus candidatos a candidatos a representantes no conselho.
O vereador Nabil, outro a trilhar a ponte entre o dia e a noite, se vale do microfone da picape dos DJs eletrônicos para anunciar que o prefeito Haddad acaba de se comprometer com ele a sancionar o Parque Augusta, no chamado Baixo Augusta, a poucos quarteirões da Mário de Andrade. A novidade trazida por ele é ovacionada, minutos antes da foto oficial grupal que reúne diversos dos bichos diurnos e noturnos ali presentes. A estátua da Leitura, que tudo ouve, de tudo se cala.
Antes de apresentar a proposta de consulta pública, o secretário Juca aproveitou a oportunidade, perante não muitos espectadores, para descrever algumas das realizações da Secretaria de Cultura em quase 12 meses de governo. “Há uma quantidade enorme de problemas financeiros, mas nós conseguimos aumentar o orçamento para a cultura. Saímos de 0,89% para 1,3%, e o prefeito me prometeu que o orçamento chegará a 2%, como é nossa meta”, afirmou. “Nós destinamos mais de R$ 20 milhões para as ações culturais nas periferias da cidade de São Paulo, o que é um crescimento enorme da presença da Prefeitura no sentido de reduzir a desigualdade e ampliar a possibilidade de acesso pleno à cultura.”
Antes de se por a expor números, Juca lançou-se quase diretamente àquele que parece ter sido seu momento máximo de satisfação pessoal em 2013: “Nós reconhecemos o samba de São Paulo como patrimônio da cidade. Fizemos a festa de assinatura de homologação no Theatro Municipal. Foi a coisa mais emocionante de que participei este ano aqui em São Paulo. Os velhinhos choravam porque estavam entrando pela primeira vez no Municipal. Um me disse: ‘Eu tenho 92 anos, pensei que ia morrer sem fazer um sambinha aqui dentro deste teatro’. Foi emocionante, dava pra ver a emoção, de tão sólida que estava”.
O secretário se refere ao tombamento do samba paulista, concretizado numa cerimônia-show em 3 de dezembro passado, da qual participaram sambistas paulistas como Germano Mathias, Osvaldinho da Cuíca, Dona Inah e Quinteto em Branco e Preto e não-paulistas como Riachão, Beth Carvalho e Leci Brandão.
À parte, Juca me diz que nunca tantos pretos entraram ao mesmo tempo no Theatro Municipal de São Paulo. Funcionários da SMC contam, empolgados, que a apresentação terminou com uma invasão ampla, geral e irrestrita ao palco do “palácio” quase sempre ocupado predominantemente pela elite paulistana. Foi mais um evento que não contou com a participação da mídia cultural local (nem mesmo deste FAROFAFÁ).
Ao discursar, ele faz o elogio de instrumentos políticos, como os da consulta pública e do Conselho de Cultura, em consonância com as manifestações de rua: “Recebi muito bem as manifestações de junho no Brasil inteiro e aqui, que salvaram a democracia brasileira, que estava caminhando meio bovinamente para a degradação de todas as formas e instituições democráticas, de uma forma irresponsável, transformando em um circuito fechado de operadores, sem nenhuma sensibilidade para as demandas e necessidades da população. Mas a rua não resolve. A rua quebra a pasmaceira, mas a gente não pode viver a vida inteira na rua, porque inclusive é cansativo. É preciso que as instituições reajam positivamente”.
O prefeito Haddad e o secretário Ferreira têm mais a contar, no que diz respeito à cultura paulistana e à sua democratização – por vezes lado a lado com a esfera federal, na figura da ministra da Cultura, Marta Suplicy, e com a estadual, na figura do governador Geraldo Alckmin.
Todos eles estiveram juntos, por exemplo, em 31 de outubro passado na Praça das Artes, também no centro de São Paulo, no anúncio de criação da SP Cine – Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo, uma agência de fomento à cinematografia local, ao que parece inspirada na equivalente carioca, a Rio Filme. Com a presença de diretores de cinema como Fernando Meirelles e um punhado de atrizes e atores globais, foi certamente a cerimônia cultural mais concorrida da temporada. Na penúltima sexta-feira do ano, 20 de dezembro, Haddad sancionou o projeto de lei de criação da SP Cine, novamente na Mário de Andrade.
Em outro encontro entre Marta e Fernando na Praça das Artes, em 16 de dezembro, as esferas federal e municipal anunciaram a adesão (tardia) da prefeitura da maior capital do país ao Programa Cultura Viva, do MinC, criado e desenvolvido pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, atravancado por Ana de Hollanda e, ao que parece, retomado por Marta Suplicy. Juca tratou o dia como “histórico”, não sem cutucar as administrações municipais anteriores, da órbita do PSDB: “A cidade de São Paulo terá pela primeira vez Pontos de Cultura da própria cidade na cidade. Os Pontos de Cultura que já existiram na cidade eram fruto de convênios com o Ministério da Cultura ou com o governo estadual”.
Marta e Juca anunciaram a dotação de R$ 15,35 milhões para o projeto, R$ 9,35 milhões deles oriundos da Prefeitura. O montante instalará, até 2014, 85 Pontos de Cultura na cidade – e Juca afirma que até 2018 a prefeitura pretende chegar a 35o Pontos paulistanos. O prefeito mencionou, na presença de Marta, o prosseguimento de um projeto criado por ela quando prefeita (2001-2004), dos Centros Educacionais Unificados (CEUs): “Hoje (16 de dezembro) foi assinado o empenho de liberação de R$ 40 milhões para a construção de mais dez CEUs em São Paulo, com recursos do Ministério da Educação”.
Marta, ao final de seu discurso, procurou atiçar os artistas e produtores culturais que lotavam o saguão da Praça das Artes para que concorram ao edital de criação dos 85 novos Pontos de Cultura: “Entrem em todos os editais para ganhar!”.
Como você percebe, uma série de eventos e projetos tem sido colocada em locomoção no campo cultural paulistano nos últimos três meses, com apoio institucional do poder público, em maior ou menor grau: SP Cine, Pontos de Cultura, tombamento do samba, Pontos de Cultura, Conselho Municipal de Cultura, Seminário da Noite Paulistana, Parque Augusta. Todos, sem exceção, foram minimizados, quando não simplesmente ignorados, pelo jornalismo cultural (e também pelo político). FAROFAFÁ esteve presente em cada um deles (exceto o tombamento do samba), e tampouco os havia noticiado até agora. Noticiando, corremos o risco de ser considerados propagandistas do governo vigente em nossa cidade-sede (você decide). Se não noticiados, por nós ou por outros, aparecerão mais adiante, nas propagandas políticas do PT ou de outros partidos – e serão considerados “eleitoreiros”, pela mesma mídia que os subvalorizou ou simplesmente não os noticiou quando de seus nascimentos.
Chegamos, enfim, ao último parágrafo. Tudo que está dito acima se refere especificamente à cidade de São Paulo. Este texto cabe em FAROFAFÁ (e, por sinal, demorou demais a se concretizar) porque é bem provável que na SUA cidade estejam acontecendo agora mesmo realizações parecidas, com chamados semelhantes à participação coletiva – de que a mídia da SUA cidade nem sempre gostaria que você tomasse conhecimento. (Pode ser também que não estejam acontecendo, o que é mais grave.) FAROFAFÁ acredita que falar de nossa própria aldeia é falar do mundo – e nesse sentido convida a todos que tenha relatos jornalísticos musicoculturais sobre sua aldeia a fazê-los e publicá-los por aqui em 2014. Feliz ano novo.
Situado a sudeste do País está o Atlântico. Situado no sudeste do País está São Paulo. =)