“O problema é a Globo.”
“É a Globo, é a Globo.”
“Na verdade, todos os problemas são um só, que se chama TV Globo.”
“Globo. Globo. Globo. Globo.”
“A Globo comemora, bota manchete em jornal. Nós não temos acesso a jornal nenhum, nunca.”
A maior rede de televisão do Brasil povoa o discurso de Roberto Corrêa de Mello ao longo das duas horas e meia que passo na sede paulista da Abramus, a Associação Brasileira de Música e Artes, sociedade de titulares de direitos autorais que governa, empatada com a UBC (União Brasileira de Compositores), o sistema Ecad (o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).
O presidente Roberto e seu vice, o compositor paulista Walter Franco, são uníssonos em afirmar que está em curso um processo de “demonização” dos direitos autorais, dos compositores, do sistema Ecad. “O que está acontecendo em relação ao direito autoral é uma demonização, um trabalho paralelo que se faz contra o sistema”, afirma Walter, autor de discos históricos de MPB experimental, como Ou Não (1973) e Feito Gente (1975).
Roberto foi advogado de compositores como Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Paulinho da Viola, inclusive em ações contra a Rede Globo. Ao lado do saxofonista Demétrio Santos Lima (hoje afastado), foi um dos fundadores da Abramus, há 31 anos. Integrou o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) até o desmonte da instituição reguladora pelo presidente Fernando Collor (1990-1992).
Ao final de minha visita à sede da associação, a convite do presidente, ele me faz uma pergunta simples e difícil de responder, e que dialoga com a afirmação anterior de que “nós não temos acesso a jornal nenhum, nunca”: por que nenhum jornalista jamais visita a Abramus, nem demonstra nenhum interesse em conhecer o sistema Ecad por dentro?
A conversa toma o rumo das especulações, de que participamos eu e os representantes da associação, entre eles também o jornalista Ederaldo Kosa, da Linhas Comunicação, agência que atende a Abramus – e também, há 13 anos, da editora Abril. Eles aventam a hipótese de que os dirigentes não sabem se comunicar bem. “Talvez o Ecad não tenha se demonstrado aberto como a Abramus sempre se mostrou”, propõe Ederaldo. “Eles são burros”, arrisca-se Roberto, creio eu que se referindo ao Ecad (cuja assembleia geral é composta pelos representantes das diversas associações de autores).
Opino que a mídia, por razões que tenho dificuldade de decifrar, detesta abordar o tema Ecad e seus complicadores. E que nós, jornalistas, instigados ou não pelo desinteresse de nossos patrões e pagadores, padecemos de uma preguiça mortal de tentar destrinchar a tão falada “caixa preta” do direito autoral – um assunto que parece chato a principio, mas se revela fascinante e perturbador quando examinado de perto.
Lanço meu louco palpite: de um modo que não consigo compreender, há tempos desconfio de que o sistema Ecad é um setor da própria mídia, e que não é noticiado por ela porque ela não gosta de se autonoticiar. Não tenho certeza, mas acho que meus anfitriões sorriem amarelo para mim. Não deixei de mencionar, noutro momento, que também sou autor (de textos jornalísticos, que seja), e que (por incompetência e comodismo meus e de meus pares) nem sequer tenho um Ecad para me proteger.
Nos despedimos, com votos mútuos de que nos conheçamos melhor daqui por diante. “Você viu que isto aqui não é uma caixa-preta?”, me pergunta a gerente de comunicação Bia Nascimento.
Discussões de (não-)relação à parte, por que o advogado que administra direitos autorais em nome de Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Emicida, Fábio Jr., Ivan Lins, Nando Reis, Vanessa da Mata e Victor & Leo, , entre muitos outros, afirma com tamanha segurança que interesses privados da Globo estão por trás de atos públicos como a CPI do Ecad e o Projeto de Lei do Senado 129?
Por que vários dos artistas filiados da Abramus foram a Brasília pedir a aprovação do PLS 129, mesmo que seu presidente sustente tais opinões? “Será que são os artistas mesmo? Tenho cá minhas dúvidas”, ele lança a suspeita, sem explicitar o que pretende insinuar.
Para explicar seus porquês, o executivo cita uma resolução de 1981 do antigo CNDA, que normatizou o pagamento de direitos autorais por parte das redes de televisão. “A resolução número 26 de 1981 estipulava os percentuais em 3,5%, sendo 2,5% para música e 1% para os autores do próprio audiovisual, que nunca se organizaram.” Tentando decifrar: pelo regimento em vigor, emissoras de TV devem entregar ao Ecad 3,5% de seus faturamentos mensais, a título de direito autoral pela utilização de músicas em suas programações. Pense na centralidade da música nas trilhas sonoras de telenovelas, e fica fácil compreender.
Segundo Roberto, as TVs Record e Bandeirantes pagam o valor acordado. Outras, como SBT e Globo, contestam os valores na Justiça. “O SBT paga 1,7%. A Globo deposita em juízo 0,7%, só isso, mais nada! É uma merreca, cerca de R$ 5,4 milhões“, afirma. “Só a Globo deve ao Ecad R$ 1,57 bilhão.”
Ele justifica o canhão apontado para a Globo com algumas perguntas: “Por que tratar a Globo diferentemente dos outros canais? O que eles têm de diferente? É porque ganham mais? Quem ganha mais paga mais imposto, paga mais empregado, paga mais artista, paga mais direito autoral, paga mais tudo, não?”.
Pergunto o que há de efetivamente favorável aos interesses da Globo, ou dos portais de internet (outro dos vilões preferenciais do sistema Ecad), seja no corpo do PLS 129 ou nos resultados da CPI do Ecad. A resposta de Roberto é genérica: “Quanto mais desmoralizar, acabar com o sistema, criar o caos, deixar virar uma bagunça total, melhor será para eles”.
Walter, aparentemente desconfortável na posição de vice-presidente de associação no sistema burocrático dos direitos autorais, faz seu atalho: “Dentro desse processo de demonização, vão todos de roldão. Por lidar com direito autoral, como compositor, sinto que já sou demonizado. ‘Walter Franco, esse está bem!, não vai largar o osso'”.
Pergunto se megaempresas de internet como o Google movem-se nos bastidores para influir na condução do direito autoral brasileiro, como ecadianos frequentemente sugerem. Roberto responde com nova queixa: “Eles têm um contrato com a gente, com o sistema. O contrato é muito duro. Tem cláusula de confidencialidade, então a gente não pode comentar. Acontece que chega um momento da insuportabilidade, porque pagam uma titica para os autores. Para o artista que tem 18 mil acessos, equivale a R$ 1. O cara com 1,8 milhão de acessos tem R$ 100. Pô, peraí, tem limite, esses caras ganham uma nota. Dá aí os 2,5% de direito autoral, caramba“.
OK, mas empresas como Google são ou não são atuantes nos bastidores do PLS 129, por exemplo? Roberto responde-sem-responder: “A gente vê pela movimentação toda, que é no sentido de fragilizar, desconstituir o grupo dos autores, fazer com que os autores acabem discutindo entre eles. E favorecer os usuários”.
Há pouco, eu havia comentado que me sinto pessoalmente criminalizado quando leio ataques diretos aos “usuários” numa nota oficial emitida pelo Ecad (e depois tirada do ar e/ou modificada). Entendo que o escritório deve estar se referindo a “usuários” como Google, Globo etc., mas, ora bolas, usuário de música eu também sou.
Roberto, agora, me surpreende propondo um outro mote, que não me lembro de jamais ter ouvido com tamanha nitidez da boca de um integrante do sistema Ecad. “Este mote é legal de pegar: o que é que o povo tem a ver com isso? O povo tem direito a ter acesso a cultura, ponto. O que os autores têm com isso? Os autores têm direito de ser remunerados pelas suas obras. Quem tem que pagar? Quem ganha dinheiro com música. Ninguém está falando que é para o filho da senhorinha que foi trabalhar e deixou o filho fazendo download. Estamos falando que o pessoal que ganha dinheiro e faz disso um negócio, como Google, YouTube, Globo, quem quer que seja, tem que pagar o mesmo de direito autoral“.
Outro tópico para lá de misterioso: produtoras, gravadoras e editoras estrangeiras como Universal Music, Warner Chappell, EMI, Sony Music & Day 1 Entertainment compõem os quadros da Abramus. Pergunto se existem estimativas sobre qual percentagem dos direitos autorais brasileiros é escoada para o exterior. “Mandamos apenas 25% para fora”, responde Roberto, referindo-se, entendo, a repertório internacional consumido em nosso país, e não, como eu queria perguntar, a repertório brasileiro ancorado em etiquetas multinacionais tipo Warner, Sony, Universal e EMI. Não consigo me fazer entender, nem fazer o assunto progredir.
Quero saber se Ecad e Globo são realmente inimigos figadais como tudo faz crer, ou se os dois sistemas se interpenetram. “A Globo tem duas empresas, a Sigem, de edições musicais, que está na UBC, e a Som Livre, que é uma gravadora” (e perternce aos quadros da Abramus), o presidente responde. Ou seja, em alguma medida a Globo canibaliza a própria Globo, ao não pagar tudo que deve ao Ecad, certo? “Teve um presidente da Som Livre que disse: “Estou impedido de qualquer comentário. Eu aqui sou editora, gravadora e usuário. Não vou falar nada'”, Roberto limita-se a dizer.
Chega o momento de eu perguntar a Roberto sobre a CPI do Ecad. Ao lado de outros presidentes de associações autorais e de dirigentes do Ecad, ele é um dos nomes cujo indiciamento é surgerido no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito. Roberto pede que eu não aborde esse tópico nesta reportagem. ” Vou te dizer por quê: porque acho que não vai sair indiciamento nenhum. Mas se a gente falar é capaz de provocar.”
Não posso atender ao pedido. Explico que seria constrangedor para o jornalista estar dentro da Abramus e ignorar esse assunto. “Eu sei, mas você sabe por que foi pedido o indiciamento? Porque em 2004 houve um déficit de caixa no Ecad, e se pegou uma verba do direito retido e prescrito, que não tinha mais titulares, de uns R$ 6,8 milhões. Nós cobrimos o déficit com esses direitos que não tinham mais dono.” Crédito retido, no linguajar ecadiano, são valores arrecadados, mas cujos autores destinatários o sistema não consegue identificar – se não reclamados após cinco anos, pelas regras internas, são redistribuídos para todo o sistema.
Se o Ecad utilizou crédito retido para cobrir déficits internos, fez uma apropriação indevida, não fez? “Aquilo que não tem dono, em tese, serve aos próprios autores, que foi o que a gente fez. Tem que voltar, senão o sistema quebra. O sistema tem que andar. Então nós pegamos aquilo que não tinha mais dono e cobrimos o déficit operacional.” Mas, Roberto, foi certa a atitude? “Eu acho que nós não deveríamos ter feito isso. Propuseram meu indiciamento por ser presidente da Abramus, mas eu não estava na assembleia. Acho que a gente deveria ter suportado o déficit. Mas não é fácil.”
Esta reportagem não termina por aqui. Amanhã, FAROFAFÁ publica a entrevista de Roberto Corrêa de Mello e aborda mais tópicos levantados na visita à Abramus.