Preta Gil, no ataque e na defesa

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“Tem que ser branco, tem que ser alto/ tem que ser magro, tem que ter saldo no banco/ tem que ser sábio, tem que ser hétero/ tem que ter cabelo e tem que ter carro do ano/ tem que ser bilíngue, tem que ser beautiful/ tem que ser formado e tem que ter cartão de crédito/ tem que ser malhado, tem que ser católico/ tem que ser bem-dotado e nada de cabelo branco.”

Preta Gil cutuca um bocado de vespeiros nos primeiros versos de seu novo álbum, o pop-fútil-profundo-dançante Sou Como Sou. Os mandamentos acima constam da faixa-título composta por Alex Góes, mas que em grande medida dizem respeito à própria artista. Conhecendo apenas por cima a filha cantora do prócer tropicalista e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, podemos concluir sem perigo que ela não é branca, nem alta, nem magra, católica (é evangélica) ou hétero (costuma se afirmar bissexual).

 

 

Quem saca o jeitão aparentemente desmiolado de Preta sabe no ato que os mandamentos de comportamento-padrão são listados para ser desobedecidos, e não respeitados . O videoclipe de “Sou Como Sou” reforça a mensagem rebelde lançada por um olhar quase sempre triste.

“Olho pela janela e não é o que vejo, não/ seria muito mau se fosse essa situação/ chega de preconceito e viva a união/ de toda raça, toda cor, sexo e religião”, ela abre o jogo em seguida. E vem a conclusão de tom parecido com o adotado pela norte-americana Lady Gaga: “Quer saber?/ sou como sou/ não quero me encaixar em nenhum padrão”.

Os versos não chegam a ser brilhantes, mas o discurso é potente, de potencial explosivo. Justamente por não pertencer a padrões inequívocos de liderança branca, heterossexual, física, intelectual etc. e tal, Preta tem sido para-raio de todo tipo de preconceito, discriminação e insulto. Sou Como Sou, o disco, e “Sou Como Sou”, o pop-dançante que o abre, são declaração de intenções, mas também reação defensiva de quem já tomou muita pedrada nas estradas da vida.

Em meio a uma maioria de faixas leves-superficiais, de nomes como “Babado Forte”, “Batom”, “Chique” e “Relax”, acontece aqui a primeira contribuição explícita do pai Gilberto à obra musical da filha Preta. “Praga”, a primeira canção pop que ele compõe para ela lançar, segue a linha das canções de ódio, raiva ou pesar que vêm sido destiladas nos últimos tempos por artistas do núcleo baiano e/ou tropicalista, como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Rita Lee.

Gil se revela o mais novo adepto das canções de NÃO, numa faixa dedicada – ou melhor, apontada feito pistola de tiro de festim – a interneteiros que gastam horas vagas (ou não vagas) a xingar, insultar, agredir, ofender e espezinhar seus supostos ídolos (ou contraídolos) via internet.

“Estou pedindo a Deus/ que alguém descubra esse maldito calabouço digital/ onde tu vives enrolado com essa cobra/ os dois a fornicar e a falar mal”, vocifera a narradora, cometendo a temeridade de declarar guerra a tu, a mim, a nós todos que aqui na internet estamos. (A propósito, quem garante que uma cantora, um ministro, uma apresentadora de TV, um pastor evangélico ou uma jornalista econômica não possa usar perfis anônimos para extravasar e se vingar daquilo que ele próprio sofre todo dia?).

Gil e Preta se safam do baixo astral pela leveza e pelo humor. “Estou pedindo a Deus, rogando praga/ que esse nariz arrebitado que te estraga/ te traga nada mais que uma meleca”, “Praga” termina fazendo graça, esculhambando, transformando o rancor em birra de criança. Dos dois lados do front, está nua e reconhecível a filha do compositor, há um tempo menina fútil que roga pragas infantojuvenis e mulher sábia que sofre com as pragas alheias e se defende delas como pode.

 

(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil.)

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