Para lá do “vou apertar, mas não vou acender agora”, o samba de protesto de Bezerra da Silva (1927-2005) ainda não foi devidamente assimilado no asfalto. Por quê?

 

Nasceu em Recife, Pernambuco. Aos 15 anos, fugiu para o Rio de Janeiro, clandestino num navio, e foi morar no morro do Cantagalo. Aprendeu, desde então, que a favela é um problema social. Trabalhou como ajudante de pedreiro e pintor. A favela nunca foi reduto de marginais.

Em Recife, tocava zabumba e cantava coco. No Rio, encontrou-se no samba. Tocou pistom e percussão, trabalhou por oito anos na orquestra da Rede Globo. De 1975 em diante, ganhou existência artística sob a alcunha de Bezerra da Silva, primeiro como “o rei do coco”, em seguida como sambista, partideiro, bamba do partido alto. Ganhou adesão, fama e dinheiro interpretando os sentimentos e aflições de milhões de cidadãos iguais a ele.

Alguém – alguém de cor de pele bem diferente da dele, provavelmente – apelidou o estilo que praticava de “sambandido”. As coisas não eram exatamente assim, mas foi assim que ficou rotulado. Embora tenha sido eterno operário – na construção civil, na Rede Globo ou na indústria fonográfica multinacional –, a identidade de “malandro” foi a que se colou em Bezerra para sempre, até a morte em 2005, aos quase 78 anos.

O documentário Bezerra da Silva – Onde a Coruja Dorme, de Márcia Derraik e Simplício Neto, vem à tona em 2010 com o propósito sutil de recolocar algumas coisas em seus devidos lugares. Bezerra é menos protagonista que chamariz – na verdade não é sobre ele o filme, e sim sobre o círculo de compositores que o nutriram em três décadas de gravação de discos. Concede microfone irrestrito a eles, e essa é a delícia. “Os autores do morro dizem cantando aquilo que queriam dizer falando. E eu sou o porta-voz”, assinala ele logo na primeira cena. E, a partir daí, o filme vai descortinando aos poucos o sólido alicerce e o extraordinário imaginário que produziu Bezerra da Silva.

Exemplos? Pedro Butina é coautor de sambas como “Candidato Caô Caô” (1988), de crítica ao oportunismo de políticos que só sobem o morro em tempo de eleição, “O Bom Pastor” (1989), sobre um mercenário travestido de religioso, e “Aqueles Morros” (1982), “Saudação às Favelas” (1985) e “As Favelas Que Não Exaltei” (1987), todas dedicadas a celebrar o habitat de Bezerra e seus compositores. Pedro Butina é bombeiro, com larga experiência em ARC, Auto-Remoção de Cadáver, atividade que “desprende muito oxigênio do homem”, segundo ele. “Já delirei de terror, mas aprendi a conviver com ele”, completa.

Cláudio Inspiração assina sucessos bezerreanos como “Maloca o Flagrante” (1986), “Transação de Malandro” (1988), “Ele Cagueta com o Dedão do Pé” (1996). Apesar de versar sobre malandragem, caguetagem, violência e repressão policial, Cláudio Inspiração é trabalhador: nas “horas vagas” entre um samba e outro, dá duro numa bicicleta, como carteiro.

A marca do espirituoso Tião Miranda está impressa no primeiro sucesso arrasa-quarteirão de Bezerra, a satírica “Minha Sogra Parece Sapatão” (1983), e em “Língua de Tamanduá” (1986), outro samba sobre a difícil posição intermediária de um cidadão comum espremido entre os estereótipos de “polícia” e “bandido”. Tião Miranda trabalha numa oficina de instalação e conserto de refrigeradores.

Wilsinho Saravá participa de composições humoradas como “Garrafada do Norte” (1992), sobre uma certa “erva proibida”, e a autoexplicativa “Fofoqueiro É a Imagem do Cão” (1987). Wilsinho Saravá é pai de santo – a propósito, Bezerra sempre foi afeito aos temas da macumba, mas terminou a vida convertido à Igreja Universal do Reino de Deus e lançando um CD de samba-gospel.

“Malandragem Dá um Tempo” (1986) é, talvez, a canção de Bezerra que mais possui conhecedores e admiradores fora das favelas e da Baixada Fluminense. “Vou apertar, mas não vou acender agora/ se segura, malandro, pra fazer a cabeça tem hora”, diz a letra que bole no flerte entre asfalto e morro, entre favelados que vendem drogas e playboys que as compram. Um dos autores, Adelzonilton, aparece no documentário com uma pá de pedreiro na mão. Outro, não creditado no samba nem no filme, é camelô flagrado pela câmera na rua, vendendo discos de vinil de Olodum, Agepê, Agnaldo Timóteo, Roberto Carlos, Fagner e Egberto Gismonti. Outros dois são “malucos aposentados”, nas palavras de Bezerra: Popular P e Moacyr Bombeiro.

Em “Desabafo de Juarez da Boca do Mato” (1996), Bezerra cutuca a “elite selvagem marginal” que possivelmente se identificou com “Malandragem Dá um Tempo”: “Seu doutor só combate o morro/ não combate o asfalto também/ como transportar escopeta, fuzil, AR-15?, o morro não tem/ navio não sobe morro, doutor/ aeroporto no morro não tem”. “Vítimas da Sociedade”, de 1985, já fora direto ao ponto: “Se há um assalto a banco/ como não podem prender o poderoso-chefão/ aí os jornais vêm logo dizendo/ que aqui no morro só mora ladrão/ se vocês estão a fim de prender o ladrão/ podem voltar pelo mesmo caminho/ o ladrão está escondido lá embaixo/ atrás da gravata e do colarinho”.

O conflito ali estacionado foi sempre a questão de honra crucial para Bezerra da Silva. Porta-voz e porta-bandeira de um microcosmo que o senso comum preconceituoso e autocondescendente associa somente a tráfico e violência, ele teve de amargar o tal rótulo de “sambandido”. Longe disso, os que desfilam pelo filme são compositores anônimos, às vezes não nomeados, que são também pedreiros, carpinteiros, encanadores, lixeiros, camelôs, feirantes.

Em seus depoimentos, Bezerra adota tom sarcástico contra gente de gravadoras e dos meios de comunicação. De fato, a mídia branca sempre se relacionou de modo, digamos, esquisito com sua obra – jornalista musical há 16 anos, sou prova disso: nunca havia escrito a sério sobre Bezerra até conhecer Onde a Coruja Dorme. Hoje eu apostaria que, por trás de espessa cortina de fumaça (e de exceções do tipo “vou apertar, mas não vou acender agora”), o que afastou Bezerra da sociedade que não suporta olhar suas favelas de frente são títulos como “Legítima Defesa” (1984), “Vida de Operário” e “Violência Gera Violência” (1988), “Negro de Verdade” (1996), “Partideiro Indigesto” e “Preconceito de Cor” (1987). Como já dizia a letra do clássico “Eu Sou Favela” (1992), “sim, mas a favela nunca foi reduto de marginal/ ela só tem gente humilde, marginalizada/ e essa verdade não sai no jornal/ a favela é um problema social”.

 

 

(Texto publicado originalmente na coluna PAÇOCA, da revista Caros Amigos, em abril de 2010.)

 

Siga o FAROFAFÁ no Twitter
Conheça nossa página no Facebook


PUBLICIDADE

4 COMENTÁRIOS

  1. E Tem aquela: ..”na subida do morro me contaram que voce bateu na minha nega/isso não é direito bater numa mulher que não é sua/deixando a nega quase nua/ no meio da rua a nega quase que virou presunto/e eu não gostei daquele assunto/ e hoje vim decidido a lhe mandar para a cidade dos pés juntos/ voce vai virar defunto/…..
    Um artista jogado ao olvido pela fina inteligentsia por cantar as coisas de um mundo que o stabilishement sempre quis esconder. Não sei quem foi o autor do rótulo “sambandido’, mas certamente esse é um adjetivo que não coaduna-se com a obra de Bezerra da Silva. Esse documentário é uma iniciativa histórica sobre a arte de um homem que fez Música do Brasil. Quantos bons compositores anônimos esse País deve ter.Viva Bezerra da Silva.

    • Bom dia amigo, uma pequena correção, esse samba maravilhoso não foi gravado pelo genial Bezerra da Silva mas sim peli não menos genial Moreira da Silva, conhecido como o rei do samba-breque ou samba-rap.

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome