Por que o centenário Luiz Gonzaga (1912-1989), “rei” pernambucano do baião, gostava tanto de cantar asas-brancas, assuns-pretos, sabiás, acauãs e outros passarinhos?
O pernambucano Luiz Gonzaga (1912-2012) era o cantor dos passarinhos. Os exemplos são inúmeros, mas uma espiada superficial em sua obra é suficiente para que encontremos espécimes musicais de asa-branca, assum-preto, sabiá, acauã, araponga…
Puxados pela mais que emblemática “Asa Branca”, os passarinhos são excelentes mestres-de-cerimônia para introduzir o ouvinte à atmosfera agreste, árida, oprimida-e-opressora da obra genial de Gonzagão. A asa-branca é o pássaro-abre-alas. Anuncia no longínquo 1947 a estiagem e a migração do sertanejo para o sul-“maravilha”, assim como três anos mais tarde, em “A Volta da Asa Branca”, ensaia tratar do possível retorno e da chegada das chuvas ao Nordeste seco e sofrido.
O “Acauã” aparece em 1952, “no silêncio das tarde agoirando, chamando a seca pro sertão”. Seu canto “é penoso e faz medo” e traz consigo a sina de fome e morte. O “Sabiá”, de 1951, é a esperança do narrador de reencontrar um amor que se foi: “Tu que anda pelo mundo/ tu que tanto já voou/ tu que canta aos passarinhos/ alivia a minha dor/ tem pena d’eu/ diz por favor,/ tu que anda pelo mundo,/ onde anda o meu amor”.
São, todas essas, volteios em torno daquilo que define essencialmente Luiz Gonzaga e está exposto numa das mais tristes entre as canções brasileiras, “Assum Preto” (1950): “Tudo em vorta é só beleza/ sol de abril e a mata em frô/ mas assum preto, cego dos óio/ não vendo a luz, ai, canta de dor/ tarvez por inguinorança/ ou mardade das pior/ furaro os óio do assum preto/ pra ele assim, ai, cantar mió”.
Após soturnas apresentações, vem a chocante estrofe de conclusão: “Assum preto veve sorto/ mas num pode avoá/ mil vez a sina de uma gaiola/ desde que o céu, ai, pudesse oiá”. A fábula, aveludada pelos modos de falar dos sertanejos, gira em torno de duplo infortúnio: assum preto (Gonzagão, você, eu etc.) não tem remédio senão escolher entre perder a liberdade e perder a visão.
A alegoria, aqui, é aquela dos cantadores cegos do sertão, os repentistas, os cegos violeiros de porta de igreja, as gonzaguianas Ceguinhas de Campina Grande (lindamente retratadas no filme A Pessoa É para o Que Nasce, 2006).
Ter olhos ou ser livre, eis a questão: muito da obra monumental de Luiz Gonzaga e parceiros gira em torno disso. Em “ABC do Sertão” (1953), o gênio faz do limão uma limonada e festeja simultaneamente a identidade nordestina e a chance de obter educação num vasto território que historicamente nenhum governante queria educar: “Lá no meu sertão, pro caboco lê/ tem que aprendê um outro ABC/ o jota é ji, o ele é lê/ o esse ési, mas o erre tem nome de rê”.
Em outra série volumosa de baiões, xotes e xaxados, o exímio e emocionado sanfoneiro louvou o trabalho, mesmo quando se aproximasse mais da prisão-escravidão do assum preto que do trabalho em si.
Entre suas “work songs” inesquecíveis contam-se “Boiadeiro” (1950, “vai, boiadeiro, que a noite já vem/ guarde o teu gado e vai pra junto do teu bem”), “Algodão” (1953, “bate a enxada no chão/ limpa o pé do algodão/ pois pra vencer a batalha é preciso ser forte, robusto, valente ou nascer no sertão/ tem que suar muito pra ganhar o pão/ que a coisa lá não é brinquedo, não”), “A Morte do Vaqueiro” (1963), “Tropeiros da Borborema” (1964), a sensacional suíte teatralizada de 11 minutos “Samarica Parteira” (1974)…
Também dessa levada é “O Jumento É Nosso Irmão”, ou “Apologia ao Jumento”, gravada, com várias diferenças de texto, em 1968 e em 1976. Na primeira versão, o narrador satiriza amorosamente os inúmeros serviços prestados aos sertanejos pelos quadrúpedes: “Ele tem tantas virtudes/ ninguém pode carculá/ conduzindo um ceguinho/ porta em porta a mendigar/ os pobre vê no jubaio/ um irmão pra lhe ajudá”.
Na versão de 1976, também teatralizada, Gonzaga insere textos falados mais provocativos em termos políticos: “O jumento sempre foi o maior desenvolvimentista do sertão. Ajudou o homem na lida diária. Ajudou o Brasil a se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha. Fez açude, estrada de rodagem. Carregou água pra casa do home, fez a feira e serviu de montaria. E o homem, em retribuição, o que é que lhe dá? Castigo, pancada, pau nas perna, pau no lombo, pau no pescoço, pau na cara, nas oreia”.
De modo intuitivo ou proposital, Luiz Gonzaga mira ali em seu próprio microcosmo, mas acerta em vários alvos ao mesmo tempo. A relação homem/jumento como descrita por ele pode fazer lembrar, em várias escalas, outras relações de submissão e humilhação, como as entre Sudeste/Nordeste, Primeiro Mundo/Terceiro Mundo, branco/negro, homem/mulher, rico/pobre etc. É significativo demais que “O Jumento É Nosso Irmão” tenha nascido em 1968, quando a ditadura militar (que o artista apoiava) baixou o trator cerceador de liberdades chamado Ato Institucional Nº 5 – no dia 13 de dezembro, data exata do aniversário do rei do baião.
Entre descrições cataclísmicas de estiagens e apologias ao trabalho semi-escravo, a retórica de Gonzagão não raro soa depreciativa e/ou autodepreciativa. Mas não é esse o segredo do sucesso. Com o apoio de sanfona, zabumba, triângulo, chapéu de vaqueiro, trajes de cangaceiro, baião, xote, xaxado, prosódia nordestina e fortes doses de carinho e afeto, ele impôs seu Nordeste natal ao Brasil invariavelmente preconceituoso e desrespeitoso. (A bossa nova apareceria em 1958 para humilhá-lo como uma madame inculta do Leblon humilha uma empregada doméstica paraibana, mas essa é outra história.)
A empatia em negativo deve ter importância, é óbvio. Mas a série de canções de orgulho nordestino, também caudalosa, é a chave do laço indissolúvel entre o cantor e quem conhece os cenários pintados de poesia e afeto em “Estrada de Canindé” (1951, “quem é rico anda em burrico/ quem é pobre anda a pé”), “Paraíba” (1952), “Noites Brasileiras” (1954), “Riacho do Navio” (1955), “A Feira de Caruaru” (1957), “De Teresina a São Luís” (1962), “Nordeste pra Frente” (`968), “From United States of Piauí” (1972)…
“A Triste Partida” (1964, de Patativa do Assaré), uma plangente canção migratória de longa letra desoladora e nove minutos de duração, une todas essas pontas:. “Agora pensando ele segue outra tria/ chamando a famia começa a dizê/ ‘eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo/ nós vamo a São Palo vivê ou morrê/ nós vamo a São Palo que a coisa tá feia/ por terras alheia nós vamo vagá/ se o nosso destino não for tão mesquinho/ ai, pro mesmo cantinho nós torna a vortá’”.
Mesmo espezinhado por elitismos e preconceitos de classe, Gonzagão estabeleceu só com o gogó a mais límpida comunicação com quem mais lhe interessava: sua própria gente, os mais parecidos com ele mesmo entre os brasileiros. Sua música dizia e diz TUDO para quem viva no sertão ou tenha saudade dele, para quem saiba de seca e de cheia, para quem ame pássaros, flores, bichos e gentes, para quem seja migrante nordestino no eixo Rio-SP (ou brasileiro no eixo Nova York-Miami) sem qualquer reconhecimento e a paulada de todo tipo de humilhação, e assim por diante.
Gonzagão foi a voz de um Nordeste não-emancipado, falando fundo a ouvintes iguais a ele – mais cegos ou menos cegos, mais livres ou mais escravizados, mais desejosos de liberdade ou de amarras, mais ou menos independentes. Ouvi-lo no ano de seu centenário, depois dos governos de seu conterrâneo e discípulo Lula e dos deslocamentos para cima nas camadas da pirâmide social, é de arrepiar.
Ainda falta muito chão a trilhar na estrada do Canindé. Mas emancipação é palavra conhecida por cada vez mais nordestinos e brasileiros de cem anos para cá. Assum preto, de pouco em pouco, descobre que talvez bom mesmo seja não abdicar nem da visão nem da vida fora da gaiola. Eis um edifício (ou uma casinha de joão-de-barro) em que Luiz não chegou a entrar, mas ajudou a construir telha por telha, do primeiro ao último tijolo.
(Texto publicado originalmente no iG, como parte de especial comemorativo do centenário de Luiz Gonzaga.)
Belo texto, PAS!
provoca os iniciados com as metonímias, analogias e metáforas de Seu Luiz sem deixar de ser uma espécie de guia de entrada na obra do Rei do Baião para iniciantes.
Obrigado, João!!!!!
🙂
Luiz gonzaga talvez seja um caso isolado de artista com tamanha força popular e um certo prestígio com os críticos.Exceto Ruy castro que em seu tratado sobre a Bossa nova chama sua sanfona de cafona.