O HOMEM QUE MATAVA EMPRESAS


(um protoconto da era da reengenharia, do subprime, da tecnogenética e dos camelôs digitais)



o primeiro passo foi destruir toda e qualquer resistência.

os mais fracos e dóceis e manipuláveis foram sendo tornados chefes, e os que se opunham eram eliminados.

os que se opunham mas tinham boa reputação se mostraram os mais difíceis de cair, porque se orgulhavam de seu trabalho.

então, criaram-se situações para embaraçá-los ou envergonhá-los, e forçá-los a sair.

houve o caso de um auditor que tinha desvendado os casos mais escabrosos, mas era um sujeito que se vestia mal e cantava as office-girls. eles o ameaçaram com uma acusação de assédio sexual e ele saiu humilhado.

por fim, criaram-se novas autarquias para os mais fracos e dóceis, levando-os a crer que estavam sendo promovidos, que o pico da cordilheira era o limite.

a adulação e a cobiça fizeram os olhos desses últimos brilharem, e muitos se tornaram déspotas rapidamente.

mas eram descartáveis por vocação e iam sendo escanteados – finalmente, também demitidos.

novos canalhas iam sendo trazidos a peso de ouro, e o trabalho ia sendo suprimido em favor da hiper-hierarquização.

muitos cargos novos, consultores para escolher consultorias, muitos chefes novos, muitas circulares.

triplicaram o número de reuniões.

a adrenalina típica da profissão ia sendo trocada por um timing burocrático, pela prevalência da forma sobre o conteúdo.

foi quando chegaram os sujeitos de cabeça de PM e crachá à vista, e eles vistoriavam os computadores todo dia.

eles vieram e sumiram como que por mágica.

deixaram programas de autogestão e ex-hackers semianalfabetos para decifrá-los.

plagiários de revistas de design foram alçados à categoria de gênios.

institucionalizou-se um cinismo light, sem nicotina.

um gerente de área foi chamado à sala de um executivo-chefe, e este lhe disse:

“seu trabalho tem sido excelente, você deu uma contribuição inestimável, seu discernimento enobrece a nossa empresa”.

ao que o gerente de área respondeu:

“então por que estão me despedindo?”


então chegou o dia em que pouco restara.

não havia quase mais gente, só mesas com fios do que um dia foram ramais e desktops sobre elas.

foi aí que o fantasma de um executivo começou a surgir nos banheiros da empresa.

tinha algodão nas narinas.

tinha pó de maquiadora de estúdio de telejornal cobrindo-lhe as olheiras.

não conseguia descansar.

assustava os que mijavam mais ensimesmados.

reclamava que algo tinha saído errado em seu obituário publicado no house organ, o jornalzinho interno (achava ilegítimas certas aspas de colegas e artigos de ex-chefes, ponderava que não lhe fizeram jus, que aproveitaram sua morte para fazer proselitismo).

às vezes, tentava puxar conversa com os cagões distraídos sobre assuntos de política, mas o fantasma toda a vida errara em política (ajudara a patrocinar eleições de pulhas de discursos integralistas; ladrões de colarinho com advogados que tinham sido ministros da justiça; reacionários que defendiam o extermínio em massa de gays e sapatas).

todo mundo fugia do fantasma descontente e descontinuado (para usar um eufemismo em moda no Inferno).

o ectoplasma estava ficando mais eloquente, começou a berrar frases do coronel kurtz em apocalipse now:

– “eles treinam jovens para tocar fogo em gente! mas seus comandantes não permitem que escrevam a palavra FUCK nos seus aviões porque é obsceno”.


foi nessa época que começou a crescer o boato sobre a chegada iminente do homem que matava empresas.

ele era como galactus, o engolidor de mundos do gibi surfista prateado.

nunca o viam, mas contavam que tinha uma voz mansa que encantava âncoras de telejornal.

as secretárias, nas festas de fim de ano, narravam seus encontros com o gentleman.

elas saíam do buffet com a melhor impressão do mundo, acho que teriam lhe confiado suas filhas ali.

ele comia pão na chapa em padaria, ele usava ternos de segunda mão, testemunhavam alguns.

ele jantava com consultores de agências de risco em bistrôs de chelsea, diziam os que viajavam mais longe.

ele tinha sido reconhecido na missa do galo.

ele agradecia emocionado pelos anos de sacrifício.

ele usava o mesmo caixa automático dos office-boys, juravam os caras da manutenção.

ele tirou folga no dia em que demitiu o ascensorista que estava havia 57 anos na empresa para evitar embaraços.

era impassível como bryan ferry e esquivo e mal vestido como edward norton.

conhecia de cor o discurso do capitão do titanic, do qual pinçava trechos para seu teatro diário.



tradicionalmente, sua aparição triunfal a todas as retinas ordinárias só se dava no dia em que ele finalmente executava uma empresa.

ele então surgia, punha os óculos, lia um comunicado de apenas uma linha e se mandava.

no comunicado, sempre estava escrita a mesma coisa:

“o melhor de todos vocês não justificaria o sacrifício de apenas um dos nossos”.

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