vejam como é o mundo: o velho josé mindlin foi personagem involuntário de a morte engarrafada, eterno inédito de minha lavra de larvas que perpetrei há meia década. foi um tipo de homenagem, e mudei o nome para não incomodar (curioso: acho que ninguém lembra do mindlin moço, parece que ele já nasceu velhinho).
como o velho mindlin está agora buscando raridades nos sebos do céu, publico o trecho em que ele figura como uma saudação a um sujeito de fino tato.

Um antigo bibliófilo bem afamado costumava dizer que não abria mão da “sensualidade gráfica” de manusear livros em sebos. Não lembro o nome do tal papa-livros, mas sempre me vinha à cabeça essa definição quando esbarrava nos velhos volumes desse lugar, e tenho feito isso com certa frequência – embora não venha aqui pelos livros. Às vezes eu quase sou corrompido por essa tal de “sensualidade gráfica”. No momento em que ia me introduzindo no labirinto de estantes, movido talvez por essa espécie de fascínio tátil, detive-me frente a uma Bíblia que meu anfitrião disse, gabando-se, que era datada de 1537. Puxei da estante e quase consigo abri-la, mas, num tranco, uma mão severa arrancou o volume de meus dedos.

– “Largue isso! É uma edição integral em latim, em pergaminho!” – grunhiu, ríspido, o livreiro Ozymandias, meu anfitrião, o homem que tentou agarrar o gatuno e agora caminhava à minha frente, detendo-se vez por outra para regojizar-se ante uma de suas joias. Calvo como um pássaro recém-nascido, com tufos de cabelos finos espalhados irregularmente pelo cocuruto, ele se movia alternando pressa e vagareza.

– “Quando eu morrer, ninguém saberá dizer do que se trata isso aqui” – resmungou meu zangado interlocutor, acariciando o volume arrancado de minhas mãos e repondo na estante.

– “É sempre assim. Veja o caso da coleção de livros de Dioniso Merlin, o maior de todos os bibliófilos: começou a ser construída na década de 20, quando ele, ainda garoto, entrou num sebo e comprou o Discurso sobre a História Universal, escrito em 1740 pelo bispo francês Jacob Bossuet. Aos 70 anos, Merlin já possuía em sua brasiliana, entre outros, os originais de Grande Sertão: Veredas e de Sagarana, de João Guimarães Rosa; e também a gramática do padre José de Anchieta, escrita em 1595; e a primeira edição de O Guarani, de José de Alencar. Pouco disso se sabe o paradeiro hoje.”

– “Esse legado perdeu-se, assim como se perdeu a auto-estima desse País” – continuou o livreiro Ozymandias, que não se permitia pausas entre um raciocínio e outro.

– “Veja o caso do português, essa nossa língua moribunda. Eu vos pergunto: por que se diz sempre que o criminoso confessa, quando na verdade ele A-D-M-I-T-E seus crimes? Uma pessoa, vaticina Ozymandias, faz A-N-O-S, não faz aniversário, como se costuma escrever nos jornais. Em português, esclarece ele, não existe o adjetivo massivo. Isso é um desses anglicismos que tornaram nosso idioma um clandestino em seu próprio país. O certo é MACIÇO! E o correto é fim de semana, e não final de semana. Mas quem se importa?”, completou, dando de ombros.

Olhando os calcanhares do velhote à minha frente, tive a impressão que um salto do sapato era maior que o outro. Seria coxo, o senhor Ozymandias?

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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