foto: nana tucci
 
 
 

Começou com uns três manés tocando Raul de madrugada, mas de manhã já havia umas 50 pessoas em volta de um violão e uma percussão improvisada, no meio de um parquinho infantil, tocando e cantando Twist and Shout!
No playground roqueiro de Itu, as histórias corriam rápido. A gritaria no camping de madrugada? Bom, teve um namorado que encontrou os amigos no meio da muvuca e não teve dúvidas: largou a namorada na multidão e foi para o desfrute. Quando voltou, de madrugada, tentou entrar na barraca e ela o expulsou aos gritos e aos pontapés.

As pessoas perdem o perfume natural, mas não a classe. As meninas na fila do banheiro, que não demorava menos do que uma hora, tinham duas coisas em comum: havaianas e medo do espelho. A gaúcha confidenciava na fila que ela e os amigos fizeram as contas: eram 3 mil pessoas nas barracas, 10 chuveiros (mais 10 para os homens), e 8 horas por dia de disponibilidade para os banhos. Ou seja: a organização não fez contas direito: matematicamente, não dava para todo mundo se lavar. Se todas as 3 mil pessoas decidissem tomar banho, o último da fila levaria um dia e meio para conseguir. Sobrou Cascão nesse camping.

Sim, confesso, eu fui um Cascão. Meu primeiro banho, em três dias, só foi possível graças a três garrafinhas de água de 600 ml, na manhã de segunda-feira. Para quem for, algum dia, passar por situação semelhante, eu recomendo: esqueça o preciosismo, aquela história de lavar atrás dos joelhos e das orelhas. A insustentável dureza do banho gelado pode ensinar alguma coisa a um monge budista, mas a mim só ensinou umas crenças novas.

A velhinha que vende o sorvete veio de longe, 200 km, me contou, e tinha dificuldade com o troco. Não só ela; todo o povo das redondezas que foi empregado em Itustock não sabia como lidar com as hordas de comilões. Os urbanoides chiavam – esperavam talvez a mesma velocidade do McDonald”s da Avenida Rebouças? É dose tentar conciliar dois ritmos de vida tão diferentes.

O japonês hiperativo que ficava arrumando as mesas no restaurante do pesqueiro, que servia cafezinho, dizia pra todo mundo que se podia pegar o quanto quisesse de comida, mas só se fosse para comer tudo – estragar é desperdício, ensinava. Quase digo: fora a coxinha e o bolinho de queijo, quase todo o resto aqui é desperdício (de imaginação), especialmente os “sucos naturais” com a cor de cogumelos atômicos. Para mim, sobraram os espetinhos Mimi, refúgio da minha fúria carnívora.

O SWU mostrou-se um festival straight, hetero – não vi muitos casais gays, não encontrei bebuns admiráveis, só os chatos de praxe. Não vieram os doidões que buscam durante a noite estabelecer contatos com visitantes do espaço sideral. Ninguém veio propor meditação coletiva para fazer o Pentágono levitar. Poucas garotas ousaram no visual – não vieram para cá vestidas de forma diferente do que usam no domingo no Shopping Iguatemi.

Teve muita gente reclamando de maneira até meio agressiva da organização, alguns exageradamente, com palavrões sujos. Deve ser uma coisa geracional – há uns 30 anos, se me dissessem que eu teria de andar de 7 a 10 km para ver minha banda favorita e beijar uma menina linda de headband no cabelo, eu diria apenas: “Yeeeeah!”.

Foi um festival de utopias controladas, de receios, de suscetibilidades ameaçadas. “Se a rede de TV se recusou a transmitir, é porque estamos vencendo”, definiu o guitarrista Tom Morello, do Rage Against the Machine, em mensagem no Twitter, comentando a suposta proibição da Rede Globo de transmitir o discurso pró-MST da banda americana.

Há que se calibrar o discurso ecológico. Pouco antes de começar o show do Kings of Leon, o locutor apelou para um discursão. “Estamos em guerra. O planeta está em perigo. Daqui a pouco todos nós estaremos na fila por um copo de água.” A plateia, educadamente, vaiou. Ninguém duvida da emergência da situação. É preciso, antes de tudo, matar o clichê, fazer uma escolha melhor das palavras, trazer o panfleto para um nível de apelo, não convocação.

De madrugada, depois de 10 shows, descanso na Sala de Imprensa. Na minha frente, vejo o set list do Teatro Mágico. A primeira música é Amadurescência. Digam-me que não é verdade… Busco o último fôlego para dormir a última noite sob o frio de 10º na minha barraca Enterprise (“O espaço, a fronteira final…”) munido apenas de um cobertor amarelo do Bob Esponja.

PUBLICADO NO JORNAL O ESTADO DE S.PAULO
12 de outubro de 2010

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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