O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) não quer dar entrevistas. Afirma que sua argumentação “consta integralmente no processo do Cade”. É uma referência a um documento que, desde novembro passado, a superintendente Gloria Braga tem usado para tentar convencer empresários e políticos de que não há outro modelo possível para a cobrança dos direitos autorais no Brasil. Como FAROFAFÁ já noticiou, o Power Point do Ecad guarda semelhança de argumentação e estrutura com a nota técnica 039/2011 do Ministério da Cultura, enviada um mês depois ao Ministério Público Federal, que por sua vez emitiu na semana passada um parecer sugerindo arquivamento do processo que o Ecad sofre no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Mas, afinal, qual é a argumentação da entidade?
A linha de defesa do Ecad (clique aqui para ler o Power Point), também encampada pela gestão de Ana de Hollanda, é de que o Brasil segue a doutrina francesa e resguarda o direito de autor (autorização), diferentemente dos Estados Unidos que preservam o direito de reprodução (cópia, copyright). O documento lembra que o escritório foi criado pela Lei 5.988/1973 e que, três anos depois, uma resolução do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) unificou os preços da arrecadação. O CNDA seria extinto pelo governo Fernando Collor, e daí por diante restaria o Ecad, um conglomerado de compositores, produtores musicais, editoras e gravadoras cobrando e fiscalizando sozinho a cobrança pelas execuções públicas de seu patrimônio.
O ponto central da argumentação ecadiana é que cada música composta no país e suas inúmeras gravações têm de ser repartidas pelas chamadas associações efetivas, que atualmente são nove (Abrac, Abramus, Amar, Assim, Sadembra, Sbacem, Sicam, Socinpro e UBC) e formam o clube fechado do Ecad. Também afirma que não se pode falar em concorrência nesse setor porque as várias associações acabam por fazer a repartição de um mesmo repertório (a música ou o fonograma).
Segundo exemplo oferecido no documento do Ecad, Roberto Carlos é dono de 45% da música “Detalhes”, Erasmo Carlos de outros 40% e a editora EMI Songs do Brasil de 15%. Já o fonograma original, que equivale à interpretação gravada da composição, possui nada menos que 22 donos. Roberto Carlos detém 41,7% dos direitos do fonograma gravado em 1971, a mesma percentagem de sua produtora, a Amigo Produções Fonográficas, e outros 20 profissionais (entre músicos acompanhantes, produtor e mixador) possuem 0,83% de direito cada.
O Ecad operacionaliza de forma diferente essa divisão. Os recursos arrecadados pela execução pública da música “Detalhes” são repassados a duas de suas associadas, a UBC (à qual são filiados Erasmo e EMI Songs do Brasil) e a Sadembra (Roberto Carlos). Quando é executada publicamente, a gravação de “Detalhes” tem a Socinpro (Roberto e Amigo Produções Fonográficas) como a principal sócia, detendo 83,4% dos direitos. Os 16,6% restantes, correspondentes aos demais participantes do fonograma, estão divididos entre Abramus, Amar, Sicam e, novamente, UBC.
Outro exemplo
“Como Uma Onda”, hit de 1983 de Lulu Santos, possui três titulares de direitos autorais. Se alguém quer tocá-la em público, tem de pagar 45% dos direitos ao cantor e autor da canção, outros 45% ao jornalista Nelson Motta (coautor) e 10% à Mix Criação e Produção. Se um boteco ou uma rádio quiser executar a gravação original, a conta é outra. No total, sete titulares dos direitos sobre a gravação dividem o valor arrecadado. Lulu levará 41,7%, mesmo percentual da gravadora multinacional Sony Music, enquanto os outros cinco titulares dividem 16,6% do valor arrecadado. Para o Ecad, contudo, a composição “Como Uma Onda” tem dois representantes de seus titulares, a Abramus (Lulu Santos) e a UBC (Nelson Motta e Mix Criação e Produção), e a gravação original inclui outras cinco de suas associadas (Abramus, Amar, Sbacem, Socinpro e UBC).
E por que o Ecad afirma que o modelo proposto pela Secretaria de Direito Econômico (SDE, do Ministério da Justiça, que apresentou denúncia contra o escritório junto ao Cade) não pode ser aplicado no Brasil? No entender da instituição (e ao que tudo indica também para o MinC e o para o Ministério Público Federal), se um usuário (boteco, TV ou rádio, por exemplo) negociasse valores distintos com cada associação, os compositores poderiam não receber valores iguais, devido a um suposto desalinhamento entre preços cobrados por cada associação.
O Ecad afirma que um sistema concorrencial (isto é, com as associações que o integram concorrendo entre elas, ou se existisse outra entidade equivalente a enfrentá-lo) causaria aumento de custos das associações. Haveria uma proliferação de novas associações, desalinhamento de preços e a complicação do sistema todo. Como consequência, os autores perderiam o controle da cobrança pelas execuções públicas de seu repertório. “O modelo proposto pela SDE esfacela a gestão coletiva dos direitos de execução pública musical”, afirma o documento. Na prática, o esfacelamento é inevitável, devido ao grande número de profissionais envolvidos em cada composição ou gravação – mas hoje o Ecad controla e centraliza o sistema, impedindo, por exemplo, o direito a voto de novas associações que queiram se incorporar.
Um compositor ou uma banda que gravou uma música e quer receber direito autoral se vê obrigado a entrar numa das nove associações que compõem o Ecad e a esperar para ver quanto essa entidade privada vai lhe retornar, que será sempre o mesmo percentual, independentemente de a qual associação se filiar. A SDE questiona como o escritório atua, afirmando que é praticamente impossível que uma nova associação passe a atuar fora dos tentáculos da entidade. E mesmo para integrar o escritório há exigências impossíveis de serem cumpridas, estabelecidas no estatuto do órgão, o que também é questionado pela SDE.
Na prática, o Ecad impede o maior fracionamento do bolo, enquanto centraliza o controle sobre todas as (muitas) fatias. As associações são obrigadas a funcionar “dentro” do Ecad. Como elas praticam os mesmos valores e repassam os mesmos percentuais aos titulares, não haveria concorrência e sim um cartel, segundo a SDE, já que os valores únicos são decididos de comum acordo entre as associações nas assembleias gerais do Ecad.
Do alto do monopólio, o Ecad mantém um banco de dados com cerca de 2,4 milhões de obras musicais, mais de 860 mil gravações e 342 mil autores. Com suas associadas, criou uma sofisticada plataforma de arrecadação, vasculhando o que toca em salões de cabeleireiros a espetáculos musicais (daí a piada: “Estava na rua cantando uma música e o Ecad me multou”). Do total arrecadado, 17% ficam com o Ecad, 7,5% com as associadas e os 75,5% são distribuídos aos detentores dos direitos da obra. A distribuição por amostragem privilegia os autores, editores e associações que já estão no topo, enquanto asfixia a presença percentual de novos autores, editores e associações. Um ou outro Michel Teló pode penetrar a parada de sucessos, mas o sistema fechado favorece os mesmos Caymmi, Jobim, Buarque de Hollanda etc. de décadas.
É justamente no percentual destinado às associações, que praticamente já têm todo o seu trabalho feito pelo Ecad, que a SDE vê espaço para haver concorrência. Dessa forma, as associações poderiam negociar tanto com usuários como titulares, respectivamente, valores mais baixos cobrados e percentuais mais altos distribuídos. No entanto, o Ecad argumenta que o trabalho de arrecadar e distribuir valores pela execução pública de obras e fonogramas não é uma atividade econômica, não se sujeitando à Lei de Defesa da Concorrência, argumento questionado pela SDE.
Enquanto atividade econômica, os agentes econômicos, neste caso os titulares, devem buscar a maximização de seus ganhos, o que significa que se uma associação ficar com os 7,5%, repassando sempre os mesmos percentuais para os titulares, ela acabará perdendo titulares para uma outra associação que, por exemplo, cobre 5% de taxa de administração (a diferença dos 2,5% poderia reduzir em 1% o preço cobrado e o 1,5% aumentaria o ganho dos titulares). Neste caso, por cobrar menos a associação teria seu repertório mais executado e acabaria recebendo mais, ao mesmo tempo que aumentaria seu repertório, já que pagaria mais aos usuários. No entanto, este tipo de raciocínio não é aceito pelo Ecad, que sugere ser o seu modelo de sistema atual “imutável”.
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