“Eu sou sua menina, viu. Ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz.” Nesta noite, não são Marieta Severo, Elba Ramalho, Alcione, Cláudia Ohana, Tetê Espíndola ou Rebeca Matta que cantam a primeira pessoa feminina de “O Meu Amor”, da “Ópera do Malandro” (1979) de Chico Buarque. É o próprio autor.
Na casa de espetáculos HSBC Brasil, é quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012, por volta de 21h. Falta-lhe o chapéu do malandro, mas Chico está vestido de preto dos pés à cabeça, camisa, calça e sapatênis. Trata-se de uma passagem de som para a estreia da perna paulistana do novo show do cantor, compositor e ativista político de 67 anos. No jargão técnico do show business, “passagem de som” é o momento (às vezes longo, às vezes curto), antes do espetáculo propriamente dito, em que cantor, banda e técnicos testam, acertam e afinam instrumentos, equipamentos, vozes, jogos de luz, cenário, som.
Em muitos casos, a passagem de som pode ocorrer na ausência do artista propriamente dito, mas não é o caso hoje. Chico está presente, embora não seja possível ter certeza se é realmente para passar o som. Seu assessor de imprensa, Mario Canivello, convocou a “imprensa” interessada para testemunhar e documentar um trecho dessa etapa do trabalho.
Mais precisamente, Chico mostraria duas músicas. A primeira delas seria cantada duas vezes, “para vocês pegarem detalhes”, segundo orientou Canivello, do alto do palco, segundos antes de dar partida ao ato. Estavam presentes dezenas e dezenas de fotógrafos, poucos cinegrafistas e pouquíssimos repórteres, alguns deles com microfone com logotipo de TV em punho, outros gatos pingados (como eu) de bloquinhos ou iPads no colo.
Embora a convocação fosse para a “imprensa”, era nítido que se tratava de um evento dedicado principalmente aos fotógrafos — já que hoje, na estreia paulistana, não serão permitidas câmeras de foto ou vídeo nas mãos de profissionais da “imprensa” credenciada pelo HSBC, segundo me explicou por e-mail um assessor do assessor do cantor.
Quanto a câmeras caseiras e celulares de propriedade dos fãs do cantor, só saberemos na hora do show qual será o procedimento-padrão. Mas é difícil imaginar que a plateia que desembolsou algo entre R$ 60 (em meia-entrada para estudantes, sejam eles verdadeiros ou fraudados) e R$ 320 (o “camarote A”) seja proibida de praticar um de seus esportes prediletos, a tietagem (agora também em imagem e som). A “imprensa” credenciada, só para você saber, não pagará um tostão pelo ingresso (muitos tampouco terão cadeiras para sentar).
Canivello orienta os fotógrafos a ficarem ao pé do palco, à esquerda ou à direita — nunca ao centro. Eu, que não tenho câmera, me sento numa das cadeiras vazias bem em frente a Chico, mas distante do mito, não sei, 50 metros ou mais. É o mais perto que chego dele desde 1998 (quando, trabalhando na “Folha de S. Paulo”, fui convidado a entrevistá-lo na sala de jantar de seu próprio apartamento, ele jantando, eu entrevistando). É o mais perto que provavelmente vou chegar dele até o dia de nossas mortes (agora trabalho no Yahoo! Brasil e num monte de outros lugares, sempre como repórter, entrevistador e/ou crítico free-lancer).
“Pode ir, Mario?”, pergunta Chico. “Pode”, responde Mario. Chico vai.
Canta primeiro “O Meu Amor”: “O meu amor/ tem um jeito manso que é só seu/ e que me deixa louca/ quando me beija a boca minha pele toda fica arrepiada/ e me beija com calma e fundo até minha alma se sentir beijada, ai”. Parece rouco, tem os olhos tristes como os de um Roberto Carlos.
Terminada a rodada, Canivello o orienta a repetir, para os tais detalhes tão pequenos de nós todos. “Quem quiser mudar de lado, por favor”, propõe aos fotógrafos. À esquerda ou à direita, nunca ao centro.
“O meu amor/ tem um jeito manso que é só seu/ que rouba os meus sentidos/ viola os meus ouvidos com tantos segredos lindos, indecentes/ depois brinca comigo, ri do meu umbigo e me crava os dentes, ai”, o ídolo canta e recanta, os olhos fundos, negros (apesar de azuis, ou verdes) como as noites que não têm luar. Na segunda passagem, a voz já não está tão rouca. Será que, tantos anos depois, o mais amado, idolatrado e respeitado de nossos compositores populares ainda fica amedrontado diante do encontro forçado com a “imprensa”?
Chico, irmão da atual ministra da Cultura do Brasil, Ana de Hollanda, ainda deixa vazarem ecos da loquaz e brechtiana “Ópera do Malandro” em seus shows. Não faz o mesmo com o romance “Fazenda Modelo” (1974), inspirado n'”A Revolução dos Bichos” de George Orwell, nem com “Roda Viva”, musical teatral que escreveu antes dos 23 anos e que antecedeu em poucos meses e muitas pancadas o Ato Institucional No 5, de 13 de dezembro de 1968.
Chico não permite reencenações nem reedições de “Roda Viva”, de acordo com Canivello porque “ele considera que as deficiências do texto ficam ainda mais evidentes à medida que o tempo passa”.Relatei essa história (que já era sabida pelos mais atentos) aqui no Yahoo! mesmo e, antes disso, em reportagem de 2 de fevereiro no jornal “O Estado de S. Paulo”. Depois da publicação, um dos editores do “Estadão” me informou que precisaríamos “dar um tempo” nos meus “frilas” (aquele era apenas o segundo), porque Canivello havia feito um “escarcéu” no jornal.
Que eu saiba, Canivello não fez nenhum escarcéu aqui no Yahoo! (fez?). Mas no dia da publicação me escreveu, por e-mail, que sou “o velho Pedro Alexandre Sanches de sempre”, e complementou: “O que uma pessoa não faz na tentativa de voltar à grande mídia, hein…”.
O atual Ministério da Cultura sucedeu a gestão do tropicalista libertário adepto do “copyleft” (em oposição ao “copyright”, direito de autor) Gilberto Gil. A gestão da irmã de Chico promove intensas discussões (internas, fechadas) sobre a necessária atualização da legislação autoral brasileira.
Não seria de espantar se Chico dissesse que se sente estuprado, violentado, violado pelas dezenas, centenas, milhares de fotógrafos, cinegrafistas, repórteres, críticos, empresários, assessores, encenadores teatrais, acadêmicos, estudantes universitários, fãs, pretendentes etc. que o assediam diariamente. Canivello deve me achar um canalha, eu muitas vezes acho Canivello um canalha, há de fato canalhas aos montes abrigados nos interstícios da mídia e do show business. “Canalhas” dirigem, orientam, documentam e criticam o trabalho dos “heróis”. São artistas frustrados, segundo diz Rita Lee — mas ela não vive sem eles.
O diabo é que a fortuna de chicos e ritas é construída às custas de todos nós, de empresários ladrões a críticos recalcados, de assessores dominadores a fãs ensandecidos de amor & despeito. Temos, cada um de nós, maneiras por vezes cruéis de cobrar o que achamos que nossos ídolos nos devem. Tampouco os “heróis” são bonzinhos o tempo inteiro.
Não sabemos por que, mas Chico, que era amigo íntimo de Tarso de Castro, do tabloide “O Pasquim”, há vários anos parou de apreciar e/ou de querer dar entrevistas. Dá pouquíssimas, quase nenhuma. O recente lançamento do CD “Chico Buarque” (2011) foi acompanhado de apenas um bate-papo extenso, com direito a foto na capa — foi concedido à franquia brasileira de uma revista norte-americana, “Rolling Stone”. Chico sempre trabalhou em multinacionais do disco, primeiro a Philips, depois Ariola, BMG… Hoje trabalha numa gravadora nacional, Biscoito Fino, pertencente à banqueira Kati Almeida Braga, do Banco Icatu.
“Tipo um baião?”, Chico pergunta à banda enquanto levanta do banquinho pela primeira vez. Canivello convida os fotógrafos a virem para o centro. Fotografam-no por poucos minutos. Ele está de pé, eles e elas estão frenéticos nos flashes. Chico permanece sério, quase carrancudo. Canivello encerra a oportunidade, fazendo sinais e empurrando delicadamente os convivas para a esquerda ou para a direita — ao centro, não.
Canivello me olha de soslaio, eu olho Canivello de soslaio — à entrada, ele se recusou a apertar minha mão ou a conversar comigo. Mas deixou que o HSBC Brasil deixasse eu entrar. No “Estadão”, não, mas aqui eu estaria gritando que fui barrado, se ele me barrasse. Nossas profissões são uma orgia triste e castiça de pequenas (ou grandes) chantagens?
A segunda canção é “Tipo um Baião”, que no CD recente Chico canta em duo com Thaís Gulin (*). Além da intelligenzia e da mídia dita “séria”, a imprensa sensacionalista, de fofocas e celebridades, também persegue Chico incansavelmente, por conta do propalado namoro com Thaís. Devemos, todos, representer um aborrecimento sem tamanho para ele — e, quando olho Canivello no alto do palco, me pergunto se Canivello não é a solução “perfeita” para tanto desgosto.
Sozinho, Chico canta para nós o dueto de Thaís: “Não sei pra que/ outra história de amor essa hora”. Sorri pela primeira vez, melancólico, não sabemos se por prazer ou para conceder fotografias iluminadas à mídia que hoje já infesta o mundo de fotos de Chico na virada paulistana de seu novo show.
“É São João, vejo tremeluzir/ seu vestido através da fogueira”, “é carnaval, e o seu vulto a sumir/ entre mil abadás na ladeira”, terminada a canção tenuemente luizgonzagueana, “logo você que ignora o baião”, Canivello não precisa dizer nenhuma palavra. Já sabemos que é hora de ir embora. Alguém entre os fotógrafos ensaia um assovio, um arremedo de aplauso, um soslaio de tietagem. O sistema se auto-refreia. O aplauso não vem. Nós, da imprensa “séria”, viemos ao mundo para torturar artistas, não para tietá-los.
Enquanto saímos, Chico esboça algumas palavras, quase as únicas que nos concede nesse estranho e extremamente hierarquizado convescote. “Eu errei”, “ah, foi você que errou?, oba”, “ô, sorte”, “felicidade, hein?, cês viram?, foi o maestro que errou”, aquelas frases todas que costumam encerrar “reportagens” como esta. “Tá um calor aqui, tô doido pra tirar a roupa”, graceja Chico, quando já estamos de costas. Lá fora está mais calor ainda. Quando me viro para o palco pela última vez antes de passar pela porta, meu ídolo (um entre muitos) já sumiu.
Eis aqui uma partícula do esqueleto por trás de tanta felicidade pop, de tanto glamour, de tanto hype (depois de 18 anos como jornalista, gosto de fazer esse tipo de texto, como fiz meses atrás em meu site, Farofafá, sobre outro artista, o Criolo. Deixo o HSBC deprimido, angustiado, mordido de pernilongos e doido para ir embora. E me mando sem escalas para o… Capão Redondo — mas esta é outra história rocambolesca, que acho melhor nem começar a contar.
(*) Erro do autor do texto: no novo disco de Chico Buarque, não é “Tipo um Baião”, mas sim “Se Eu Soubesse”, que o artista canta em dueto com Thaís Gulin.
(Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil, em 1o de março de 2012.)
Ai.Subiu um gosto de fel. Um amargo figadal.E veio de você, Pedro.Os outros personagens do texto me pareceram de papel.Fiquei triste.
Só tem gente triste nessa história, Luiza – inclusive eu e você…
Mas a gente é triste, e a gente é alegre também, né? Nós e o Chico, a Rita, o Caetano, o Roberto…