foto: nana

Seu som contém tudo: uma floresta inteira, uma gata parindo, um bando de maritacas na janela pedindo comida, revoada de cigarras, arroto de coca-cola, picapau devassando uma árvore podre, máquinas caça-níqueis. Yusef Lateef é a revolução permanente na música. Tem 90 anos, mas raros garotos conseguem mostrar um décimo de sua atitude revolucionária.

Lateef é como se fosse o curandeiro da tribo. Hipnotizou, acalentou, ensandeceu e encantou o teatro do Sesc Pompeia lotado esta noite! Uma música medicinal – sou testemunha de que interrompeu até um surto de tosse comprida.

Lateef tocou sax, musette, flautas africanas, oboé, teclados e cantou um blues. E depois ainda foi brincar com o filho da fotógrafa do Sesc que passeava pelos bastidores. Esse garoto de touca e écharpe, aos 90 anos de idade, não tem tempo a perder com o comércio e a vaidade.

Brincou com o roadie enquanto cantava versos como “Crossing the river and getting to the other side ”e “Taking my brothers and sisters with me”, como uma conclamação de fraternidade. Entre as canções, com as quais não sou familiarizado, parece que estavam Three Faces of Balal, última de seu famoso disco Eastern Sounds, de 1961, e Chandra, do disco The Diverse Yusef Lateef. A elegância do fraseado do seu sax é única, e os diálogos com o trompete foram de babar.

No contrabaixo, William Parker dava o tom funky. E o absurdo Jason Adasiewicz, vibrafonista, parecia em transe tocando. Usava arcos de violino, baquetas, o diabo. O nosso Mauricio Takara, na bateria, parecia um tanto assustado, mas a História o colocou no ponto.

Quando Lateef voltou para o bis, às 22h20, sob um aplauso endoidecido, começou uma outra viagem cheia de debates filosóficos no interior – por exemplo: ele parece se empenhar em mostrar que o ato de soprar um instrumento é tão importante quanto o som que se obtém com esse ato. E o mais legal é que uma música dele pode durar a vida inteira, e ele não oferece pausas para aplausos entre uma e outra música.

Curioso: tinha pouca gente filmando o show. Era como se, por um momento, a música tivesse feito o povo esquecer os celulares e a vontade de permear a experiência pela intermediação da máquina. Yusef Lateef é um milagre.

PUBLICIDADE
AnteriorJOYMOBIL
PróximoMOBY DICK
Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

6 COMENTÁRIOS

  1. Pena que este filho da fotógrafa antes de ir juntar-se à mãe ficou atrás de mim no colo do avô Danilo Miranda, presidente do SESC, reclamando e falando. Como qualquer criança que não devia estar onde estava. De resto o show foi lindo.
    Lucia

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome